Anotações no coletivo
Submitted by felipefonseca on Sun, 16/11/2003 – 11:09.
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Autor (a):
Felipe Fonseca
Anotações no Coletivo
Artigo escrito em novembro de 2003, na seqüência de uma palestra que dei junto com Hernani Dimantas no Cybercultura 2.0, no Senac, a convite de Lucia Leão.
Aí uma costura das anotações tomadas na linha Lapa – Santo Amaro, quinta-feira passada, a caminho do Cybercultura 2.0, com algumas coisas que realmente cheguei a comentar na mesa redonda com o Hernani, e mais algumas elucubrações posteriores. Meu nome é Felipe Fonseca. Dizem que fui co-fundador do Projeto MetaFora junto com o Hernani. Mas outros dizem que o Projeto MetaFora nunca existiu, foi uma espécie de alucinação coletiva.
A cultura brasileira como uma cultura hacker (ou poderíamos definir: a ética hacker nas culturas populares brasileiras*).
Em primeiro lugar, quero me desculpar porque vou avançar em alguns assuntos sobre os quais não sou especialista. Não me preocupar muito com isso é uma das coisas que aprendi com os hackers com quem trabalho. Bom, vamos adiante.
A era das grandes verdades
Até há pouco tempo, a comunicação concentrava-se em torno das fontes “oficiais” de informação e conhecimento: a igreja, o estado, a escola e a academia, e no último século a mídia de massa. As estruturas de comunicação eram facilmente identificadas. Um mapeamento dos fluxos de comunicação revelariam três grandes vertentes:
* as “fontes oficiais” propriamente ditas;
* as derivações das fontes (aquele tiozinho que repete no boteco o argumento do padre ou do âncora do telejornal), paráfrases das grandes verdades;
* as vozes contrárias, antíteses das grandes verdades.
Essas últimas eram responsáveis por uma espécie de equilíbrio e um movimento de renovação. Podem ser identificadas aqui as vanguardas do século XX e a contracultura do pós-guerra, que, de alguma forma, acabavam impedindo uma total tirania na comunicação.
A era das múltiplas verdades
Nas últimas décadas, entretanto, as fontes “oficiais” começaram a se multiplicar e pulverizar. Acredito que alguns fatores influenciaram bastante nesse movimento:
* os questionamentos sobre a ciência no século XX;
* os questionamentos sobre a arte e seu papel;
* o intenso desenvolvimento e a facilitação do acesso í s Tecnologias de Informação e Comunicação;
* o acirramento da competitividade nos mundos corporativo e acadêmico, e entre as empresas de mídia de massa.
Um hipotético mapa da comunicação nos dias de hoje revelaria um cenário complexo, tendendo ao caos. Apesar de o ambiente da comunicação continuar dominado pelas mesmas estruturas (hoje, sobremaneira, as megacorporações), não é tarefa simples identificar onde se encerra esse poder. Em tal cenário, o papel de uma suposta contracultura precisa necessariamente se reinventar. Há 30 anos, era fácil identificar “o inimigo”: a ditadura no Brasil, a guerra do Vietnã e as estruturas militares nos EEUU, etc. Hoje, para onde devem apontar as armas da contracultura?
Aliás, ainda existe uma contracultura?
Eu acredito que não haja uma resposta objetiva.
Mas a comunicação tem papel fundamental na aceitação e manutenção dessa realidade. Em O Sistema dos Objetos, Jean Baudrillard identifica que a dominação através da manipulação publicitária não se dá no âmbito de cada peça de comunicação influenciando uma decisão do “consumidor”, mas no contexto do conjunto das peças publicitárias seguindo fórmulas assemelhadas e ratificando um modo de vida ocidental, branco e consumista. Uma situação claramente emergente, em que a ação de cada parte é menos importante do que a ação do conjunto.
A mídia tática surge nesse cenário, também como uma força emergente, potencializada com o novo ativismo que surge ao fim da década passada, nos protestos em Seattle, Gênova, Davos, Washington e tantos outros. Grupos de ativistas midiáticos e artistas de todo o mundo passam a utilizar ferramentas í s quais anteriormente só as elites tinham acesso para questionar a credibilidade da comunicação. Usam, camuflados ou não, as próprias armas do inimigo para conscientizar as pessoas sobre o que se passa no mundo. A mídia tática pode ser vista como a retomada do “social” na comunicação. Sua estrutura como sistema descentralizado e emergente encontra justificativa em Steven Johnson, no Emergência:
(…) se você está tentando lutar contra uma rede distribuída como o capitalismo global, é melhor mesmo se tornar uma rede distribuída.
A ética hacker
No mundo do desenvolvimento tecnológico, uma contracultura atuante desde os anos 70 construiu colaborativamente a Ética Hacker. Não vou entrar em detalhes, mas alguns dos princípios postulados pelos hackers encontram eco e respaldo na mídia tática:
* a descentralização coordenada;
* ênfase na reputação pessoal, baseada no histórico de ações, ao invés de hierarquia baseada em títulos ou honras;
* colaboração e conhecimento livre e aberto;
* questionamento profundo sobre a validade da propriedade intelectual;
* Release Early, Release Often – é mais importante realizar do que ter um plano perfeito;
* informalidade.
Hackerismo brazuca
Estive em setembro no Next5Minutes, festival internacional de mídia tática realizado em Amsterdam. Alguns dias antes de embarcar, comecei a debater com o pessoal no MetaFora sobre o que falar por lá. As primeiras idéias circularam em torno da ética hacker e uma apresentação do grupo MetaFora. Na manhã da partida (ou a manhã anterior, não estou certo), acordei com a opinião de que tal linha de argumentação tinha duas falhas. Em primeiro lugar, eu não havia sido chamado para representar o MetaFora, e sim o Mídia Tática Brasil, festival realizado em março de 2003 do qual participamos. Além disso, não faria sentido simplesmente fazer côro a diversas outras vozes que já apregoam os princípios da descentralização e da colaboração. Já há algum tempo, tínhamos percebido que, em termos de colaboração, nós, elite cultural revoltadinha brasileira, temos mais a aprender do que a ensinar com as culturas populares* no Brasil.
O hackerismo tecnológico tem grande aceitação no Brasil, como pode detalhar o Hernani. O governo está adotando Software Livre, o país é um dos maiores em volume de ataques de crackers. Sexta-feira, Maratimba comentou comigo que ouviu da boca de Miguel de Icaza que o Brasil tem o maior parque instalado do ambiente gráfico Gnome. No N5M, alguns programadores de Taiwan que estavam na mesa redonda New Landscapes for Tactical Media, da qual eu e Ricardo Rosas também participamos, vieram a mim perguntar, maravilhados, se tudo o que se falava sobre Software Livre no Brasil era verdade. Assenti, orgulhoso. Eu vejo algumas raízes culturais hackers no Brasil desde muito antes da criação do primeiro computador.
Os mitos afro-brasileiros**
Durante alguns séculos, pessoas de várias regiões da ífrica foram violentamente seqüestradas e trazidas ao Brasil, comerciados como escravos e encarcerados a uma vida de trabalho duro, restos de comida e praticamente nenhum direito. Não bastassem as agressões físicas e a humilhação contínua, eles eram proibidos de exercer suas crenças, originalmente anímicas. Alguns convertiam-se í “verdadeira fé” católica, mas muitos desenvolveram uma alternativa, análoga í engenharia social hacker: o tal sincretismo religioso. Camuflando seus orixás com vestes católicas, puderam continuar praticando seus rituais e venerando seus deuses da guerra, do trovão e do vento. Embora tenham aparecido diversas lideranças na Umbanda, não havia uma centralização de poder ou dogma. Assim, as linguagens espirituais afrobrasileiras foram se desenvolvendo de maneira colaborativa. Têm uma base comum (o kernel hacker) e diversas adaptações locais (a customização descentralizada hacker), chegando a abarcar elementos do kardecismo, de culturas indígenas, de tradições ciganas, do budismo e outras crenças orientais.
A cultura burguesa brasileira
Não é novidade que, no início do século XX, a incipiente intelectualidade brasileira, composta em sua maioria pelos jovens filhos das elites que estudavam na Europa e voltavam ao país, passava por uma crise de identidade, como ocorreu com todas as ex-colônias européias emancipadas entre os séculos XVII e XX ao redor do mundo. Duas perspectivas levavam a um impasse: de um lado, a cultura européia, moderna, vibrante, mas associada í ex-metrópole colonial. De outro, uma cultura bruta, neonaturalista e sertaneja, quase crua. Os modernistas resolveram o paradoxo com a antropofagia, basicamente hacker: não renegaram nenhum dos dois mundos para criar novas formas de expressão. Pelo contrário, ao invés de tentar começar uma nova cultura do zero, misturaram elementos da cultura européia com a cultura brasileira. Vestiram a cultura popular de raiz com a experimentação formal do primeiro mundo.
Fenômeno semelhante ocorreu no final dos anos 70 com a Tropicália. Uniram o samba ao roquenrou, adaptando a linguagem comum da contracultura mundial com o sotaque local.
A economia pirata
Premida por uma situação econômica em condições cada vez piores, pressionada pela dificuldade de encontrar colocação e subsistência na economia formal, grande parte da população no Brasil migrou nas últimas duas décadas para a economia informal. Caracterizada por um dinamismo e por uma espécie de empreendedorismo na gambiarra, esse mundo alternativo de trabalho, que possui seu próprio círculo de produção e distribuição, envolve hoje praticamente metade da população considerada “economicamente ativa” no Brasil, e mais uma grande quantidade de jovens e idosos. Possui suas formas de uma mídia mambembe que, se não se assemelha í mídia tática do primeiro mundo, também chega, de maneira emergente, a questionar os domínios da propriedade intelectual e do poder da mídia de massa, em especial o branding corporativo. Outros elementos da ética hacker presentes na economia pirata:
* colaboração;
* descentralização;
* ênfase na reputação;
* informalidade.
O mutirão
Maratimba descreveu uma analogia do puxadinho feito em mutirão com o princípio do Release Early, Release Often, que corre um certo risco de ser uma visão estereotipada, mas que funciona como símbolo:
Começo | Barraco – “Vamo botar essa porra em pé!”
Sabe como é? Menos é mais. Minimalismo funcionalista.
Expansão | Puxadinho – “Chame os amigos e ponha água no feijão”
Contemplar o máximo de necessidades. Refinamento e oferta de adicionais.
Refundação | Alvenaria – “Tá na hora de botar ordem na casa”
Revisão de erros e melhoria da qualidade geral. Consistência de dados e de interface E agora? Subi um barraco? Puxei um quarto pras crianças e um banheiro do lado de fora? Troquei os aglomerados e madeirites por tijolo e telha? Basta seguir a vida e esperar. Se precisar de mais teto, você pode construir a famosa casa nos fundos ou o mais popular segundo andar.
Comunidades periféricas interconectadas
As autoridades, a academia e a sociedade civil já acordaram para as possibilidades de transformação que as tecnologias de informação e comunicação trazem para a melhoria de vida das populações periféricas. As duas primeiras fases da “inclusão digital” tinham lá suas falhas, mas podem ser encaradas como um bom começo. Há um paralelo com um movimento que Mario de Andrade fez no século passado, de planejar expedições ao Brasil rural em busca de uma suposta cultura brasileira. Hoje, sabendo que cerca de 70% da população brasileira vive na periferia das grandes cidades, esses projetos têm o potencial de mapear e consolidar as características de cada comunidade e integrá-las í s conversações mundializadas. É questão de adaptar as tecnologias í s necessidades das pessoas, e não o contrário. Vamos nos esforçando.
* Observações da moderadora Rita de Oliveira. Obrigado, Rita.
** Lucia Leão comentou que o site preferido de Roy Ascott é um site sobre Umbanda. Não tenho o link aqui, vou pedir í Lucia.
Comentários
Lucia Leão
O site indicado pelo Roy é: http://www.umbandaracional.com.br/
nessa Ã?©poca eu ainda escrevia pior que hoje 😛
bacana o texto, boa leitura nessa tarde chuvosa, pensar essa pr�©-disposi�§�£o brasileira ao hackerismo.. valeu ff