“Quanta”, por Mathieu Struck
WINDOWS MEDIA PLAYER, WINAMP ou VLC? – Considerações sucintas sobre o background técnico, formal e legal da questão (e, mais do que isso, sobre os aspectos ontológicos da pergunta).
A mostra artístico-tecnológica ConSerto (19/03/2007 a 01/04/2007, Curitiba, Brasil), protagonizada pela Orquestra Organismo, está, no momento de redação deste ensaio, a todo vapor.
Ainda em seu início, a mostra já pode se considerar pródiga em ter demonstrado – experimental e empiricamente – o amplo espectro de possibilidades da produção audiovisual em ambientes operacionais complexos arquitetados em software livre e/ou open source.
Um dos experimentos mais eloqüentes do ConSerto é a Rádio Pulso Maestro, uma estação experimental de rádio, transmitida por streaming digital. Toda a cadeia de software necessária para a sua viabilização técnica – do sistema operacional propriamente dito aos programas mais específicos voltados para a transmissão – está construída em código aberto/livre, desmistificando conceitos ainda largamente vigentes a respeito da usabilidade de tais ferramentas.
Ao vivo, a rádio tem ofertado uma programação muito consistente, com transmissões musicais de artistas locais e dôoutras bandas, recitações poéticas e literárias (notadamente a leitura de trechos selecionados de O Tempo e o Vento, por Sálvio Nienkí¶tter), entrevistas, rodadas de debate, além do próprio fluxo de ambientação sonora e verbal da instalação. Todo esse conteúdo é disponibilizado ao público sob licenças de livre compartilhamento, das quais se destaca a GFDL.
Dado o caráter intencionalmente experimental da mostra ConSerto – e as questões palpitantes nela veiculadas – muitas dúvidas tem surgido na sua comunidade de experimentadores (artistas e público). A Rádio Pulso Maestro, como um dos mais emblemáticos exemplos de tal interação alquímica, não poderia ser a exceção.
O presente ensaio pretende abordar topicamente – e sob perspectivas diversas – algumas dificuldades conceituais sentidas pelos usuários da rádio em questão – e pelo próprio autor.
Primeiramente, deve-se observar que a recepção do sinal de streaming da Rádio Pulso Maestro, exatamente como em outras iniciativas de código aberto, depende de uma postura [cri]ativa do usuário. Longe de disponibilizar um cômodo player de áudio embutido em sua própria página (no qual o usuário apenas apertaria singelamente algumas teclas para receber passivamente o sinal transmitido), a rádio, com certa crudeza, oferta unicamente um espartano hiperlink para a recepção de seu sinal.
Conceitualmente, isso se justifica, pois de acordo com a proposta de ConSerto, cabe ao usuário livremente decidir a melhor forma – dentre diversas disponíveis – de acessar dita hiperligação e escutar a rádio. Apenas como uma sugestão descompromissada, a página da Rádio Pulso Maestro indica o programa de execução de áudio e vídeo VLC, desenvolvido pelo projeto Videolan.
Como intencionalmente se previa na concepção de ConSerto, diversos usuários da rádio mostraram-se perplexos e em dúvida. Muitos deles – alguns quase que a arrancar os cabelos – questionaram se não poderiam acessar a rádio mediante, por exemplo, o programa Windows Media Player (incluído no sistema operacional homônimo) ou mesmo mediante o relativamente popular player de áudio Winamp, de distribuição gratuita na rede (ao menos em sua versão mais básica).
Levados a experimentar o VLC, mesmo após alguns previsíveis périplos, tais usuários se surpreenderam com sua própria capacidade de rotear sponte proprio, o acesso í informação antes considerada inacessível por um hermetismo apenas aparente.
Tais questionamentos suscitaram, sob demanda, uma rodada interdisciplinar de discussões em ConSerto com o propósito de compartilhar subsídios técnicos, simbólicos, legais e filosóficos com o público da mostra. Há, nesse particular, uma dupla hélice argumentativa a considerar.
De um lado, ConSerto tem como objetivo demonstrar ritualisticamente, mediante processos em andamento em permanente e camaleônica transformação simbólica, a viabilidade de acesso e manipulação de conteúdos culturais e artísticos com ferramentas de software livre ou de código aberto. Por essa razão conceitual, sugeriu-se, na página da Rádio Pulso Maestro, o uso – meramente exemplificativo – do programa VLC, um software livre.
De outro lado, deve-se considerar que a execução de arquivos de áudio e vídeo em computadores pessoais é absolutamente massificada e é exponencialmente crescente. A principal suite proprietária do mercado (Microsoft Windows) disponibiliza um player de áudio e vídeo integrado simbioticamente ao seu sistema operacional. Há literatura técnica suficientemente disponível para listar uma série de limitações técnicas e de segurança de tal programa, mas este não é o propósito do presente ensaio.
O fato é que um percentual significativo dos usuários de computadores pessoais se mostra satisfeito com o que tal programa lhes oferece, sem maiores questionamentos ou mesmo presumindo a inexistência de outras opções. Outro contingente de usuários, ao se dar conta da efetiva existência de alternativas, passa a ter acesso a uma série de programas rivais ao Windows Media Player, dos quais se poderia citar, exemplificativamente, Winamp, Sonique, Musicmatch, BSPlayer, entre uma infinidade de outros exemplos disponíveis em rede. Todos esses programas podem ser obtidos gratuitamente na internet, seja em suas versões completas ou parciais, conforme o caso.
Embora gratuitos, esses programas não são exemplos de software livre ou mesmo de código aberto. Associar a gratuidade í liberdade de uso ou ao acesso í fonte, nesse particular, é um equívoco conceitual de conseqüências dramáticas.
Nestes exemplos de programas de obtenção gratuita na rede, ao usuário se permite obter, sem custos, um mero pacote executável do programa, não se fornecendo qualquer acesso í s entranhas propriamente ditas do programa (o código-fonte ou source do programa) e nem se conferindo ao usuário certos direitos de modificação e redistribuição. Do que se conclui que tais programas podem ser gratuitos, mas não são livres.
Além disso, não raro tais programas – ao manterem seu código na condição de mistério arcano – trazem em seu âmago dispositivos maliciosos não-autorizados pelo usuário (ou que este razoavelmente não autorizaria se soubesse de sua existência), tais como monitoradores de tráfego, hábitos ou conteúdo, geradores de estatísticas, cookies para observação de padrões de uso ou mesmo disseminação de spam por meio de anódinos (?) registros para recebimento de mailing.
É nesse ponto (e não apenas do ponto de vista estritamente funcionalista ou técnico) que se tornam intuitivas as vantagens de se estimular uma cultura de uso dos programas livres ou de código aberto, não apenas para executar arquivos de áudio e vídeo, mas para muitas outras necessidades do quotidiano computacional, especialmente no que se refere í necessidades relacionadas í geração e ao compartilhamento de dados.
No caso que veio a ilustrar o presente ensaio, o programa VLC é apenas uma dentre as diversas opções de software livre para a execução de arquivos de áudio e vídeo. Considerando que novas iniciativas nesse segmento surgem todos os dias, elaborar uma lista seria ilusório, mas poderiam ser citados, exemplificativamente, os programas Kaffeine, KPlayer, Ogle, Songbird, Audacious (disponibilizados sob a licença GPL), Banshee (licenciado sob MIT) e MusikCube (licenciado sob BSD) e o próprio VLC, que tem a vantagem de ser facilmente instalável na plataforma Windows.
Cada um desses exemplos tem um conjunto de funcionalidades e atrativos distinto, mas tem em comum com os demais o acesso irrestrito e total ao código fonte, aliado (em maior ou menor grau conforme a licença) í livre possibilidade de modificações, alterações ou melhorias por quem se sentir habilitado para tanto.
Mesmo para o usuário que não se interesse por códigos de programação, a simples garantia de que o acesso í fonte será possível já representa uma vantagem conceitual de vulto (inclusive do ponto de vista da privacidade, da individualidade e do anonimato legal, valores sob ameaça constante na contemporaneidade), já que passa a ser possível saber exatamente o que está sendo executado no ambiente operacional do usuário e, com isso, prevenir a execução de códigos ou ordens parasitárias, nocivas ou invasivas. Isso apenas no que se refere ao fato do código ser aberto, sem mencionar outras possibilidades e potencialidades geradas pelo licenciamento livre.
É oportuno ilustrar que a maioria dos programas mencionados conta com comunidades de usuários extremamente ativas e férteis que, de forma orgânica e colaborativa, encontram soluções e incrementos técnicos que garantem a evolução de sua usabilidade e, por conseguinte, da própria cultura de uso de tais ferramentas.
Dada a massificação espetacular do uso dos computadores pessoais para o acesso í cultura e ao entretenimento, players de áudio e vídeo livres são apenas o exemplo mais óbvio e imediatista do crescimento de um ambiente de produção e manipulação de informação voltado prioritariamente para a liberdade do usuário e a preservação de seus direitos fundamentais. Dentre os quais se destacam o acesso í cultura e ao conhecimento, a personalidade, a privacidade, a intimidade, a originalidade e a inventividade, a autonomia, a autodeterminação e, last but not least, o direito natural í customização (o consagrado do it yourself) e í fuga, por conseguinte, da massificação e da standartização. Massificação e stardartização estas que podem até ser coerentes e viáveis para a produção de Fords Modelo T ou latas de sopa, mas que destoam completamente da criação intelectual, artística, inventiva e cultural, mais afeitas ao cuidadoso, paciente e laborioso ofício de artesãos e alquimistas.
Colateralmente, tais ferramentas livres demonstram ter um potencial surpreendente de estimular seus usuários a agirem como manipuladores de códigos não apenas computacionais, matemáticos e/ou lingüísticos, mas a integrarem uma verdadeira comunidade de uso de tais utensílios, colaborando (em maior ou menor grau) de forma sígnica, reativa e comportamental com o florescimento de complexos arcabouços culturais, transcendendo o uso meramente utilitarista e instrumental de tais ferramentas e integrando tais usos e costumes no conjunto de valores permanentes da Civilização.
Na opinião particular do redator, tais comunidades, longe de se submeterem a reduções socializantes (como poderia parecer ou como chega a ocorrer em casos documentados de apropriação ideológica de tal discurso libertário), também podem ser analisados sob outras perspectivas simbólicas, por exemplo, do ponto de vista cívico (não na acepção da vulgata, mas no entendimento clássico do termo – a cives grega), conferindo valor meritocrático í iniciativas de seus membros que se revelem úteis para o código grupal.
A individualidade, conforme se observou, não se dissolve, antes é ludicamente cultuada sob a perspectiva de contribuições que se revelem profícuas para a sobrevivência e fertilidade do grupo. É uma cultura em construção ritual permanente, fundada no respeito mútuo, no compartilhamento e na abertura. Este também é o ConSerto.
Como conclusão, talvez se revele útil ao leitor uma rápida enumeração dos lineamentos conceituais formais que distinguem software proprietário, livre, semi-livre, open source, freeware e shareware.
- Software proprietário: programas que não são livres nem semi-livres. Seu uso, redistribuição ou modificação são proibidos, ou requerem permissão do titular, ou tal permissão, se concedida, não açambarca um uso propriamente livre de todas as funcionalidades do programa. O uso de cópias não-autorizadas de tais programas sujeita o usuário, na quase totalidade dos países, a sanções judiciais e pecuniárias. Praticamente todos os software proprietários não permitem acesso ao seu código fonte (source code) ou ainda que o permitam parcialmente, vedam o acesso a núcleos considerados vitais do programa.
- Freeware (software grátis): termo usualmente associado a programas que podem ser obtidos gratuitamente na internet e que, em alguns casos, podem ser redistribuídos a terceiros, mas que quase sempre não permitem modificações ou não disponibilizam o código fonte. Não se trata de software livre, mas software grátis, uma variante de software proprietário, na qual não há contrapartida econômica, mas se mantém o controle da fonte. Em muitos casos, tais programas seduzem seus usuários com a gratuidade, podendo, em contrapartida, serem a aplicação prática do brocardo “dar com uma mão para tirar com outra“ (especialmente no que se refere í execução de códigos nocivos í privacidade). Além disso, sua standartização gera comunidades de usuários famélicas em compartilhamento e melhoramentos, sendo tais ambientes mais voltados, por exemplo, para a mera troca de skins ou plugins, sem maiores reflexões com relação í avanços nas funcionalidades, ainda controladas por gestores proprietários do código.
- Shareware: Trata-se também de uma variante de software proprietário e um intermediário com relação ao freeware. A obtenção e redistribuição de cópias de demonstração são gratuitas, assim como o uso por um prazo limitado (ou uma limitação de certas funcionalidades). A continuidade do uso é vinculada í aquisição de uma licença paga. Ainda assim, não há acesso ao código fonte e não se permite a sua modificação e redistribuição, na absoluta maioria dos casos. Só há duas formas práticas de se usar tais programas: pagando por uma licença ou obtendo acesso ilegal e não-autorizado í s suas funcionalidades, normalmente mediante cracks ou geradores automáticos de senhas.
- Software semi-livre: Trata-se de programas que normalmente não são gratuitos, mas incluem uma permissão para indivíduos usarem, copiarem, distribuírem, modificarem e redistribuírem versões modificadas para uso doméstico ou sem fins lucrativos. Em contextos mais complexos, como a associação e conjugação de programas para fins múltiplos, os software semi-livres podem gerar problemas de compatibilidade com o software livre propriamente dito, maculando o conjunto.
- Software livre: Programas que são licenciados e disponibilizados ao público de modo a permitirem o livro acesso ao código-fonte, associado í liberdade de executar para qualquer fim, estudar, modificar, melhorar, copiar, distribuir (e redistribuir com modificações), inclusive comercialmente, em maior ou menor grau conforme o tipo de licença de uso que estiver associado ao programa. Há uma infinidade de licenças disponíveis, das quais se destacam a GPL, a BSD e a MIT, cada qual com um teor maior ou menor de permissões a elas associadas.
- Software Open Source (código aberto): Programas nos quais o código-fonte está livremente e publicamente disponível (permitindo a compreensão total das conseqüências de sua execução pelo usuário), ainda que o específico licenciamento de uso, redistribuição ou de modificações de tais programas possa variar conforme o caso.
- Software privado: Situação em que alguém contrata particularmente um desenvolvedor para a elaboração de um programa particular, para uso interno e sem divulgação ao público. A autonomia contratual e a autodeterminação privada das partes regula este tipo de programa, inclusive no que se refere ao acesso ao código fonte, que comumente nestes casos passa a ser de titularidade do contratante, assumindo o desenvolvedor o papel de prestador de serviços.
- Software comercial: Programas desenvolvidos por indivíduos ou empresas com o objetivo de gerar e multiplicar riquezas com a sua disseminação na sociedade. Ainda que esteja intuitivamente e historicamente associado ao software proprietário, o software livre também pode se revestir de uma conotação comercial (coisa, aliás, absolutamente natural e que não é necessariamente contraditória com os princípios de liberdade de uso inerentes ao software livre). Apenas para recordar, software grátis não é software livre e nem necessariamente o inverso. A liberdade de que se trata neste ensaio está associada a valores mais amplos do que aqueles estritamente econômicos.
Curitiba, 21 de março de 2007.
Mathieu Bertrand Struck
(Artigo licenciado sob Creative Commons 2.5 [BY])
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