Retiro

hospicio

Logo naqueles primeiros dias do ano eu entrava em depressão profunda. Um psiquiatra tratou-me até meados de fevereiro, quando determinou que me internasse no Hospital Psiquiátrico Bom Retiro; já que continuava e se aprofundava a depressão agravada agora pela inclinação ao suicí­dio.
Lá chegado, em acolhedores sorrisos os plantonistas meteram-me na Ala Greca daquele Hospital. Minha namorada temia por mim, insistia que bastava que receitassem remédios, ela me vigiaria em casa mesmo. Mas, os afáveis plantonistas peroravam: “fica tranqüila moça, nesta ala é só particular ou plano de saúde, não atende pelo SUS, fica tranqüila moça”. Entrei.
As instalações prometiam. Corredores largos revestidos do piso ao teto com pastilhas de boa qualidade. Quartos, mesmo que um pouco tristes, mas, com apenas duas camas individuais em cada um, um banheiro para cada dois quartos et cetera.

O truque lá era dificultar a Alta:

A alta só era fácil quando quem tivesse internado o doente a pedisse. Porém, invariavelmente, esses eram persuadidos a prolongar o internamento. Habilmente falam-lhe da “gravidade” do caso, das melhoras já alcançadas etc. O motivo do engodo era o alto lucro que o hospital obtinha por cada dia de internação.

Assim que entrei recebi um crachá. Destacava-se nele um número “1”. Para obter alta precisaria alcançar o “5”.
A classificação “2” foi fácil conseguir, contudo, para merecê-la, tive de comprometer-me a limpar o chão do refeitório. Deprimido que estava, aceitava tudo.
A classificação “3” obtive pela boa conduta (não há deprimido que não seja dócil e – eu ardia já pela alta). Porém, aí­ as tarefas se multiplicaram: obriguei-me a limpar o refeitório em 3 das 4 refeições (péssimas) servidas e varrer um pátio. Tive ainda de cuidar, em horários alternados com os demais colegas de “3”, da portaria interna que dá para aquele pátio.
Eu então era “guarda” de pacientes que não haviam alcançado o “3”, e que, portanto, deveriam ficar confinados ao corredor. Ser hierarquicamente superior a pacientes com comprometimento psiquiátrico me gelava. A tal Ala Greca deveria atender apenas deprimidos ou eufóricos, mas, efetivamente havia de tudo lá.
Observei que quem alcançava o ní­vel “4” ficava tão atarefado que raro era vê-lo parado ou andando. Geralmente estava correndo, azafamado por dar cabo das tarefas exigidas. Sabiam que para sair daquele inferno era esta a única maneira. Qualquer vacilo e algum funcionário o rebaixaria o número.

O castigo fí­sico como mantenedor da ordem

Caso um médico, uma psicóloga, uma enfermeira ou uma servente viesse a sentir-se ofendid(o)a com qualquer palavra ou ato do paciente, poderia tocar uma campainha e, ato-contí­nuo, vinham oito pessoas que formavam um grupo eufemisticamente denominado: “grupo de ajuda” e faziam o que eles chamavam de “contenção”.
A contenção consistia em amarrar o paciente í  cama, de maneira que ele não pudesse fazer nenhum, nenhum movimento com o dorso ou membros. Mal comparando, seria o equivalente a uma camisa-de-força associada a uma “calça-de-força” e ambas rijamente atadas í  cama. Isto feito, eles o largavam lá, de castigo, por até seis horas ininterruptas (o mí­nimo eram duas horas). Soube mais tarde que no SUS os pobres diabos ficavam por até 24 horas “contidos”.
Ora, se algum interno entrasse em surto e ameaçasse a própria integridade fí­sica e/ou a dos demais em volta dele, este procedimento seria aceitável, necessário até. Mas, ao contrário, só o via sendo aplicado como castigo moral. Geralmente causado por algum palavrão que eventualmente havia escapado dentre os dentes de um infeliz que não percebeu atrás de si uma auxiliar de enfermagem, uma faxineira ou quaisquer que as valham.

Era chegada a minha vez

A minha contenção se deu por outro motivo. Haví­amos sido levados a uma sala onde uma psicóloga nos aplicaria a “terapia ocupacional”.
Quando percebi que a “terapia ocupacional” consistia-se em colorirmos uma figura que nos era fornecia desenhada, julguei-a excessivamente pueril. Resolvi virar a página e escrever um poema no verso do tal desenho.
Como naqueles últimos dias eu havia visto colegas “contidos”, escrevi um soneto, onde lamentava este tipo de procedimento. Achei que assim, com fumos de arte, poderia criticar a instituição.
O pus num mural destinado aos internos, onde só constavam alguns lugares-comuns de cunho evangélico. Aí­ me empolguei, e, uma vez no quarto, escrevi outro texto no qual fazia reclamações dos trabalhos aos quais éramos sujeitos. Li este último em voz alta na refeição seguinte, como que concitando os colegas de martí­rio a reagir ou, pelo menos, refletir: pagaria caro por tanta ingenuidade.

Por acaso, não havia muito, eu havia ficado impressionado, nauseado mesmo, ao ler em O Tempo e o Vento de Érico Verí­ssimo, essa forte passagem:

“… há muitos, muitos anos um Caré roubou um cavalo dum Amaral. Para castigar o ladrão o estancieiro mandou seus peões costurarem o pobre homem dentro dum couro de vaca molhado e deixarem-no depois sob o olho do sol. O couro secou, encolheu e o Caré morreu asfixiado e esmagado.”

Mal sabia que passaria por “quase” isso:

Oito trogloditas me amarraram í  cama, entretanto, o fizeram com uma tensão absurdamente acima da usual. Ou por ver em mim um perigo, ou por estarem estressados com o fato de que eu não me calasse durante a operação, a exigir uma explicação para o que estava acontecendo, ou ainda porque a psicóloga fazia sinais com a mão direita “como quem estivesse a parafusar o ar com uma chave de fenda fictí­cia” instigando-os.
Lá fiquei por três horas amarrado, tendo severamente limitada í  respiração. Meu peito e meu diafragma estavam inteiramente comprimidos. A única respiração possí­vel era aquela curta e rápida, como a de um cachorro em dia de verão.
Lastimava o Caré do Verí­ssimo. Pensava nas histórias de “enterrados vivos” que ouvira na infância… Fui internado para que não me suicidasse e estava agora sendo exterminado lenta e perversamente?
Repercutiam-me as gargalhadas dos trogloditas que me amarraram: imagens fantásticas se me afiguravam e explodiam coloridas no ar, ouvia os gritos baldios do Caré, podendo jurar que ele jamais havia roubado cavalo algum, quanto mais daquele canalha do Velho Amaral. Via-me já num esquife.
Depois, voltando um pouco í  razão pesava: na última hora estes crápulas me salvam. Não vão querer enfrentar a polí­cia e a imprensa por minha causa.
Quando estava amarrado havia 15 minutos aproximadamente, veio uma enfermeira e sem proferir palavra tascou-me duas injeções na parte anterior da coxa direita, meio que por cima das ataduras. Negou-se a dizer do que se tratava. Talvez fosse apenas de “efeito moral” para causar a dor de tomar duas injeções praticamente no osso da coxa. Se fosse calmante eu deveria sentir o efeito, mas não senti.
Depois de mais de uma hora entrou no meu quarto um paciente, o amigo Jair. Arregalou os já grandes olhos azuis e (como se isso fosse possí­vel) gritou sussurrando: “Cara, … tá loco!? Cê tá roxo pra caralho…”. Por sorte minha, ele – mesmo arriscando o “4” que tinha no peito – ousou mexer nas ataduras e diminuir quanto pudesse a pressão. Pouco me valeu tanta coragem. Continuava muito, muito comprimido e ofegante.
Até hoje, quando me vem a imagem daquela psicóloga que me ordenou a contenção, um instinto primitivo emerge de não sei onde. O primeiro texto que escrevi ao voltar pra casa era impublicável, era mesmo mais um vômito que um texto. Decidi deixar passar o tempo para que amainasse o espí­rito.
Estava naquela condição e nenhum enfermeiro, muito menos um médico ou psicóloga me aparecia. Porém, não deslembraram de reduzir o “3” que eu havia alcançado para “1”.
Logo que fui desmaneado, sem sequer levantar os olhos a quem me dirigia a palavra eu ia obedecendo, cega e covardemente, aterrorizado pela hipótese de ser “contido” novamente.
Ainda neste dia, ao final da tarde, minha namorada promoveu a “alta a pedido”, sob os argumentos e ameaças do costume.

Neste mesmo dia houve uma fuga (o Thiago). Enquanto outro paciente (o Casa-Grande) com celular emprestado tentava alta através do 190 da polí­cia, pobre infeliz.

“nel mezzo del cammin, di nostra vita” Aprendi, sentindo na pele, o óbvio (quase um anexim): se você entra são no hospí­cio: sai louco. Se entra louco: sai com um comprometido psiquiátrico muito maior do que tinha quando entrou. Se você entrar lá por um diagnóstico relativamente comum (depressão) e ficar o perí­odo mí­nimo que eles exigem (trinta dias) vai virar freguês, et factum est.
Fiquei com a impressão de que os hospitais psiquiátricos, absolutamente, não servem para e nem buscam curar. Servem para “proteger a sociedade” dos depressivos ou maní­acos ou esquizofrênicos; mantendo-os presos. Os pacientes lá mais que receber um tratamento cumprem uma pena.

A tal Psicóloga, no dia seguinte, na “terapia de grupo” me pediu para retirar os textos que pus no mural. Os tirei. Mas, mesmo assim, uma hora depois começara o meu martí­rio.

Sálvio Nienkí¶tter

9 comments

  1. A ciranda da instituicionaliza�§�£o:

    “(..)Em 1903 a cidade vÃ?ª inaugurar o HospÃ?­cio de Nossa Senhora da Luz, no Ahu(..) Embora destinado prioritariamente ao internamento e tratamento dos alienados, jÃ?¡ no dia seguinte Ã?  inauguraÃ?§Ã?£o o mesmo DiÃ?¡rio da Tarde noticia que um acordo firmado entre o prefeito, o chefe de polÃ?­cia e a administraÃ?§Ã?£o do Nossa Senhora da Luz prevÃ?ª a criaÃ?§Ã?£o de um espaÃ?§o destinado ao recolhimento dos mendigos, tanto o das ruas quanto aqueles que se encontram nas cadeias da cidade(..).”

    GRUNER, ClÃ?³vis. Em torno Ã?  ââ?¬Å?boa ciÃ?ªncia: debates jurÃ?­dicos e a questÃ?£o penitenciÃ?¡ria na imprensa curitibana (1901-1909). Revista de histÃ?³ria regional. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2005. p.75

  2. “se algum interno entrasse em surto e ameaÃ?§asse a prÃ?³pria integridade fÃ?­sica e/ou a dos demais em volta dele, este procedimento seria aceitÃ?¡vel, necessÃ?¡rio atÃ?©.”
    penso que n�£o, que nada justifica semelhante tortura. j�¡ fui submetido a tal m�©todo -inculusive no bom retiro. se a qu�­mica (sossega le�£o e similares) n�£o for suficiente, creio que o assassinato puro e simples seja mais piedoso.

  3. haroldo, esses dias est�¡vamos discutindo exatamente isso l�¡ em ConSerto. se consideradas algumas torturas psicol�³gicas e pavlovianas, a morte poderia ser para alguns um al�­vio. claro que chegar a essa horrenda conclus�£o (horr�­vel porque um minuto a mais pra viver, de qualquer jeito, �© sempre melhor do que mais nenhum minuto a viver), tamb�©m faz parte do processo de tortura ou dos sinistros des�­gnios do torturador.

    acho que vale ilustrar isso com aquela cena de “1984” em que Winston, jÃ?¡ cerebralmente “lavado”, ao se deparar com ratos terrÃ?­veis a quase lhe devorar o rosto, oferece sua namorada Julia aos seus captores para que seja ela a devorada: “FaÃ?§am isso com ela!”. Sem que soubesse que ela, na cela vizinha, fizera a mesma coisa.

  4. lucio: nÃ?£o creio em viver a qualquer custo. nunca acreditei estar em um “vale de lÃ?¡grimas”. poupem-nos.

  5. Ã?© Haroldo, agora vejo, como a gente pode se conformar fÃ?¡cil. XÃ?´. Como a gente cai na lÃ?¡bia “deles”. Ã?â?° o diabo do cristianismo que nÃ?£o me larga completamente nunca. XÃ?´.

  6. Certo, tudo isso aconteceu com voc�ª, e o que voc�ª faz? Escreve um texto. Voc�ª n�£o acha que esse tipo de coisa pede uma resposta mais en�©rgica n�£o companheiro?

  7. lucio, nÃ?£o , escrever nÃ?£o Ã?© enÃ?©rgico o suficiente nÃ?£o. tem Ã?© que meter um processo, rolar IP, coisas assim. escrever? Pfff… Sim, os caras devem estar mesmo com muito medo de um artigo.

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