“firemen… are your friend.. firemen are… big men..strong men… hairy men… ham & eggs…Come and touch… yer granpa’s lunch… ‘cause everyday… is a hollyday, hollandaise, holocaust… ham & eggs..”
Alice Donut – Hang the dog – The Untidy Suicides of your Degenerate Children – 1992 – Alternative Tentacles
Author: occam
o corpo e suas relações
Cultura: um conceito reacionário
O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas, í s quais os homens são remetidos. Isoladas, tais atividades são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante – ou seja, elas são cortadas de suas realidades políticas.
Toda a obra de Proust gira em torno da idéia de que é impossível autonomizar esferas como a da música, das artes plásticas, da literatura , dos conjuntos arquitetônicos, da vida microssocial nos salões.
A cultura enquanto esfera autônoma só existe em nível dos mercados de poder, dos mercados econômicos, e não em nível da produção, da criação e do consumo real.
“O que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da subjetivação, que eu chamaria de “cultura de equivalência” ou de “sistemas de equivalência na esfera da cultura”. Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar í cultura enquanto conceito de equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. E quando falo em sujeição subjetiva não me refiro apenas í publicidade para a produção e o consumo de bens. É a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder da subjetividade.
Cultura de massa e singularidade
O título que propus para este debate na Folha de S. Paulo foi “Cultura de massa e singularidade”. O título reiteradamente anunciado foi “Cultura de massa e individualidade” ââ?¬â? e talvez esse não seja um mero problema de tradução. Talvez seja difícil ouvir o termo singularidade e, nesse caso, traduzi-lo por individualidade me parece colocar em jogo uma dimensão essencial da cultura de massa. É exatamente este o tema que eu gostaria de abordar hoje: a cultura de massa como elemento fundamental da “produção de subjetividade capitalística”.
A cultura de massa produz, exatamente, indivíduos: indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos, como na etologia animal, ou como nas sociedades arcaicas ou pré-capitalistas, mas sistemas de submissão muito mais dissimulados. E eu nem diria que esses sistemas são “interiorizados” ou “internalizados” de acordo com a expressão que esteve muito em voga numa certa época, e que implica uma idéia de subjetividade como algo a ser preenchido. Ao contrário, o que há é simplesmente uma produção de subjetividade. Não somente uma produção de subjetividade individuada – subjetividade dos indivíduos – mas uma produção de subjetividade inconsciente. A meu ver, essa grande fábrica, essa poderosa máquina capitalísticas produz, inclusive, aquilo que acontece conosco quando sonhamos, quando devaneamos. Em todo caso, ela pretende garantir uma função hegemônica em todos esses campos.
Eu oporia a essa máquina de produção de subjetividade a idéia de que é possível desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de “processos de singularização”: uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos. Há assim algumas palavras-cilada (como a palavra “cultura”), noções anteparo que nos impedem de pensar a realidade dos processos em questão.
A palavra cultura teve vários sentidos no decorrer da História: seu sentido mais antigo é o que aparece na expressão “cultivar o espírito”. Vou designá-la “sentido A” e “cultura-valor”, por corresponder a um julgamento de valor que determina quem tem cultura, e quem não tem: ou se pertence a meios cultos ou se pertence a meios incultos. O segundo núcleo semântico agrupa outras significações relativas í cultura. Vou designá-lo “sentido B”. É a “cultura-alma coletiva”, sinônimo de civilização. Desta vez, já não há mais o par “ter ou não ter”: todo mundo tem cultura. Essa é uma cultura muito democrática: qualquer um pode reivindicar sua identidade cultural. É uma espécie de “a priori” da cultura: fala-se em cultura negra, cultura underground, cultura técnica, etc. É uma espécie de alma um tanto vaga, difícil de captar, e que se prestou no curso da História a toda espécie de ambiguidade, pois é uma dimensão semântica que se encontra tanto no partido hitleriano, com a noção de volk (povo), quanto em numerosos movimentos de emancipação que querem se reapropriar de sua cultura, e de seu fundo cultural. O terceiro núcleo semântico, que designo “C”, corresponde í cultura de massa e eu o chamaria de “cultura-mercadoria”. Aí já não há julgamento de valor, nem territórios coletivos da cultura mais ou menos secretos, como nos sentidos A e B. A cultura são todos os seus bens: todos os equipamentos (casas de cultura, etc.), todas as pessoas (especialistas que trabalham nesse tipo de equipamento), todas as referências teóricas e ideológicas relativas a esse funcionamento, enfim, tudo que contribui para a produção de objetos semióticos (livros, filmes, etc.), difundidos num mercado determinado de circulação monetária ou estatal. Difunde-se cultura exatamente como Coca-cola, cigarros “de quem sabe o que quer”, carros ou qualquer coisa.
Retomemos as três categorias. Com a ascensão da burguesia, a cultura-valor parece ter vindo substituir outras noções segregativas, antigos sistemas de segregação social da nobreza. Já não se fala mais em pessoas de qualidade: o que se considera é a qualidade da cultura, resultante de determinado trabalho. É a isso que se refere, por exemplo, aquela fórmula de Voltaire, espécie de palavra de ordem no final de Candide: “Cultivem seus jardins”. As elites burguesas extraem a legitimidade de seu poder do fato de terem feito certo tipo de trabalho no campo do saber, no campo das artes, e assim por diante. Também essa noção cultura-valor tem diversas acepções. Pode-se tomá-la como uma categoria geral de valor cultural no campo das elites burguesas, mas também se pode usá-la para designar diferentes níveis níveis culturais em sistemas setoriais de valor ââ?¬â? aquilo que faz com que se fale, por exemplo, em cultura clássica, cultura científica, cultura artística.
E aí, passo a passo, vai-se chegando í definição B, a da cultura-alma, que é uma noção pseudocientífica, elaborada a partir do final do século XIX, com o desenvolvimento da antropologia , em particular da antropologia cultural. No início, a noção de alma coletiva é muito próxima de uma noçao segregativa e até racista; grandes antropólogos como Lévy-Bruhl e Taylor reificam essa noção de cultura. Falava-se coisas do tipo que as sociedades ditas primiticas têm “mentalidade primitiva” – noções que serviram para qualificar modos de subjetivação que, na verdade, são perfeitamente heterogêneos. E, depois, com a evolução das ciências antropológicas, com o estruturalismo e o culturalismo, houve uma tentativa de se livrar desses sistemas de apreciação etnocêntricos. Nem todos os autores da corrente culturalista fizeram essa tentativa. Alguns mantiveram uma visão etnocêntrica. Outros, em compensação, como Kardiner, Margaret Mead e Ruth Benedict, com noções tais como “personalidade de base”, “personalidade cultural de base”, “pattern cultural”, quiseram livrar-se do etnocentrismo. Mas, no fundo, pode-se dizer que se essa tentativa constituiu em sair do etnocentrismo – renunciar a uma referência geral em relação í cultura branca, ocidental, masculina – ela, na verdade, estabeleceu uma espécie de policentrismo cultural, uma espécie de multiplicação do etnocentrismo.
Essa “cultura-alma”, no sentido B, consiste em isolar o que chamarei de uma esfera da cultura (domínios da cultura como o do mito, do culto ou da enumeração) í qual se oporão outros níveis tidos como heterogêneos, como a esfera do político, a esfera das relações estruturais de parentesco – tudo aquilo que diz respeito í economia dos bens e dos prestígios. E assim acaba-se desembocando numa situação em que aquilo que eu chamaria de “atividades de semiotização” – toda a produção de sentido, de eficiência semiótica – é separado numa esfera que passa a ser desfinida como a da “cultura”. E a cada alma coletiva (os povos, as etnias, os grupos) será atribuida uma cultura. No entanto, esses povos, etnias e grupos sociais não vivem essas atividades como uma esfera separada. Da mesma maneira que o burguês fidalgo de Molií¨re descobre que ele “faz prosa”, as sociedade ditas primirivas descobrem que “fazem cultura”; elas são informadas, por exemplo, de que fazem música, dança, atividades de culto, de mitologia e outras tantas. E descobrem isso sobretudo no momento em que pessoas vêm lhes tomar a produção para expô-la em museus ou vendê-la no mercado de arte ou para inseri-la nas teorias antropológicas científicas em circulação. Mas estas sociedades não fazem nem cultura, nem dança, nem música. Todas essas dimensões são inteiramente articuladas umas í s outras num processo de expressão, e também articuladas com sua maneira de produzir bens, com sua maneira de produzir relações sociais. Ou seja, elas não assumem, absolutamente, essas diferentes categorizações que são as da antropologia. A situação é idêntica no caso da produção de um indivíduo que perdeu suas coordenadas no sistema psiquiátrico, ou no caso da produção das crianças quando são integradas ao sistema de escolarização. Antes disso, elas brincam, articulam relações sociais, sonham, produzem e, mais cedo ou mais tarde, vão ter que aprender a categorizar essas dimensões de semiotização no campo social normalizado. Agora é hora de brincar, agora é hora de produzir para a escola, agora é hora de sonhar, e assim por diante.
Já a categoria cultura-mercadoria, o terceiro núcleo de sentido, se pretende muito mais objetiva: cultura aqui não é fazer teoria, mas produzir e difundir mercadorias culturais, em princípio sem levar em consideração os sistemas de valor distintivos no nível A (cultura-valor) e sem se preocuar tampouco com aquilo que eu chamaria de níveis territoriais da cultura, que são da alçada do nível B (cultura-alma). Não se trata de uma cultura a priori, mas de uma cultura que se produz, se reproduz, se modifica constantemente. Assim sendo, pode-se estabelecer uma espécie de nomenclatura científica, para tentar apreciar essa produção de cultura, em termos quantitativos . Há grades muito elaboradas (penso naquelas que estão em curso na Unesco), nas quais se pode classificar os “níveis” culturais das cidades, das categorias sociais, e assim por diante, em função do índice, do número de livros produzidos, do número de filmes, do número de salas de uso cultural.
A minha idéia é que esses três sentido de cultura que apareceram sucessivamente no curso da História continuam a funcionar simultaneamente. Há uma complementaridade entre esses três tipo de núcleos semânticos. A produção dos meios de comunicação de massa, a produção de subjetividade capitalística gera uma cultura com vocação universal. Esta ée uma dimensão essencial na confecção da força coletiva de trabalho, e na confecção daquilo que eu chamo de força coletiva de controle social. Mas, independentemente desses dois grandes objetivos, ela está totalmente disposta a tolerar territórios subjetivos que escapam relativamente a essa cultura geral. É preciso, para isso, tolerar margens, setores de cultura minoritária – subjetividades em que possamos nos reconhecer, nos resgatar entre nós numa orientação alheia í do Capitalismo Mundial Integrado. Essa atitude, entretanto, não é apenas de tolerância. Nas últimas décadas, essa produção caítalística se empenhou, ela própria, em produzir suas margens, e de algum modo equipou novos territórios subjetivos: os indivíduos, as famílias, os grupos sociais, as minorias, e por aí vai. Tudo isso parece ser muito bem calculado. Poder-se-ia dizer que, neste momento, Ministérios da Cultura estão começando a surgir por toda parte, desenvolvendo uma perspectiva modernista na qual se propõem a incrementar, de maneira aparentemente democrática, uma produção de cultura que lhe permita estar nas sociedades industriais ricas. E também encorajar formas de cultura particulares, a fim de que as pessoas se sintam de algum modo numa espécie de território e não fiquem perdidas num mundo abstrato.
Na verdade, não é bem assim que as coisas acontecem. esse duplo modo de produção da subjetividade, esssa industrialização da produção de cultura segundo os níveis B e C, não renunciou absolutamente ao sistem ade valorização do nível A. Atrás dessa falsa democracia da cultura continuam a instaurar os mesmos sistemas de segregação a partir de uma categoria geral da cultura, de modo completamente subjacente. Nessa perspectiva modernista, os Ministros da Cultura e os especialistas dos equipamentos culturais declaram não pretender qualificar socialmente os consumidores dos objetos culturais, mas apenas difundir cultura num determinado campo social, que fuincionaria segundo uma lei de liberdade de trocas. No entanto, o que se omite aqui é que o campo social que recebe a cultura não é homogêneo. A difusão de produtos como um livro ou um disco bão tem absolutamente a mesma significação quando veiculada nos meios de elites sociais ou nos meios de comunicação de massa, a título de formação ou de animação cultural.
Trabalhos de sociólogos como Bordieu mostram que há grupos que já possuem até um metabolismo de receptividade das produções culturais. É óbvio que uma criança que nunca conviveu num ambiente de leitura, de produção de conhecimento, de fruição de obras plásticas, não tem o mesmo tipo de relação com a cultura que teve alguém como Jean Paul Sartre, que nasceu numa biblioteca literalmente. Ainda assim se quer manter a aparência de igualdade diante das produções culturais. De fato, conservamos o antigo sentido da palavra cultura, a cultura valor, qe se insceve nas tradições aristocráticas de almas bem nascidas, de gente que sabe lidar com as palavras, as atitudes e as etiquetas. A cultura não é apenas uma transmissão de informação cultural, uma transmissão de sistemas de modelização, mas é também uma maneira de as elites capitalísticas exporem o que eu chamaria de um mercado geral de poder.
Um poder não apenas sobre os objetos culturais, ouy sobre as possibilidade de manipulá-los e ciar algo, mas também um poder de atribuir a si os objetos culturais como signo distintivo na relação socuak com os outros. O sentido que uma banalidade pode tomar, por exemplo no campo da literatura, varia de acordo com o destinatário. O fato de um aluno ou um professor primário de uma cidadezinha qualquer do interior dizer banalidades sobre Maupassant não altera seu sistema de produção de valor no campo social. Mas se Giscard dââ?¬â?¢Estaing, num dos grandes programas literários da televisão francesa, falar de Maupassant, ainda que uma banalidade, o fato se contitui imediatamente em um índice, não de seu conhecimento real acerca do escritor, mas de que ele pertence a um campo de poder que é o da cultura.
Tomarei um exemplo mais imediato, situado naquilo que estou considerando como contexto brasileiro. Costuma-se insinuar que Lula e PT são pessoa e empreendimento muito simpáticos, mas que vão sem dúvida se revelar completamente incapazes de gerir uma sociedade altamente diferenciadaa como é a brasileira, pois ele snão têm competência técnica, não têm níveis de saer suficientes para tanto. Recentemente estive na polônia e constatei que esse mesmo tipo de argumentação é usado contra Walesa. Dirigentes do Partido Comunista Polonês empregam rodos os meios possíveis para tentar desconsiderá-lo. Especificamente um sujeito asqueroso que se chama Racowski, e que declara í imprensa ocidental que simpatiza muito com Walesa, esse personagem sedutor, tão charmoso, mas considera que, separado de seus conselheiros, de se entourage habitual, ele não é nada, é um incapaz.
Na verdade, o que está se colocando em jogo não são esses níveis de competência, mesmo porque, para começo de conversa, é notório o nível de incompetência e corrupção das elites no poder. Aliás, nos agenciamenteos de poder capitalístico em geral são sempre os mais estúpidos que se encontram no alto da pirâmide. Basta considerar os resultadis: a gestão da economia mundial hoje conduz centenas e milhares de pessoas í fome, ao desespero, a um modo de vida inteiramente impossível, apesar dos progressos tecnológicos e das capacidades produtivas extraordinárias que estão se desencolvendo nas revoluções tecnológicas atuais.
Assim, não podemos aceitar que o que esteja sendo efetivamente visado ou tendo um certo impacto na opinião seja a competência. Além disso, esse argumento promove uma certa função encarnada do saber, como se a inteligência necessária nesta situação de crise que estamos vivendo pudesse encarnar algum suposto talento ou saber transcedental. Esse argumento simplesmente escamoteia o fato de que todos os procedimentos de saber, de efiiência semiótica no mundo atual participam de agenciamentos complexos, que jamais são da alçada de um único especialista . Sabe-se muito vem qye qyalquer sistema de gestão moderna dos grandes processos industriais e sociais implica a articulação de diferentes níveis de competência. Nesse sentido, não vejo em que Lula seria incapaz de fazer tal articulação. E quando eu falo de Lula, na verdade estou falando do PT, de todas as formações democráticas, de todas as corrente minoritárias que estão se agitando neste momento de campanha eleitoral no Brasil. Então, não á para entender por que essas diferentes potencialidade de competência nõ poderiam fazer o que fazem as elites hoje no poder – tão bem quanto ou até melhor. Acho que o ponto-chave dessa questão não está aí, e sim na relação de Lula com a cultura, como quantidade de informação. Não a cultura-alma ââ?¬â? pois é óbvio que, nesse sentido, ele tem a cultura de São Bernardo ou a cultura operária, e não vamos tirar isso dele –, mas sim com u certo tipo de cultura capitalística uma das enrgenagens fundamentais do poder. As pessoas do PT, em particular o Lula, não participam de determinada qualidade de cultura dominante. É muito mais uma questão de estilo e de etiqueta. Poder-seia dizer até que é algo que funciona num nível anterior ao término de uma frase, í configuração de um discurso. Tais pessoas não fazem parte da cultura capitalística dominante. A partir daí desenvolve-se todo um vetor de culpabilização, pois essa concepção de cultura impregna todos os níveis sociais e produtivos. Daí tais pessoas não poderem pretender uma legitimidade para gerir os processos capitalísticos, idéia que elas próprias acabam assumindo.
O que dá então um caráter de estranhamento í ascenção política e social de pessoas como Lula é o fato de sentirmos muito bem que não se trata apenas de um fenômeno de ruptura em relação í gestão dos fluxos sociais e econômicos. Mas sim de colocar em prática um tipo de processo de subjetivação diferente do capitalístico, com seu duplo registro de produção de valores universais por um lado, e de reterritorialização em pequenos guetos subjetivos, por outro lado. Colocar em prática a produção de uma subjetividade que vai ser capaz de gerir processos de singularização subjetiva, que não confinem as diferentes categorias sociais (minorias sexuais, raciais, culturais e quaisquer outras) no esquadrinhamento dominante do poder.
Então a questão que se coloca agora não é mais “quem produz cultura”, “quais vão ser os recipientes dessas produções culturais”, mas como agenciar outros modos de produção semiótica, de maneira a possibilitar a construção de uma sociedade que simplesmente consiga manter-se em pé. Modos de produção semiótica que permitam assegurar uma divião social da produção, sem por isso fechar os indivíduos em sistemas de segregação opressora ou categorizar suas produções semióticas em esferas distintas da cultura. A pintura como esfera cultural refere-se antes de mais nada aos pintores, í s pessoas que têm currículo de pintoras e í s pessoas que difudem a pintura no comércio ou nos meios de comunicação de massa. Como fazer com que essas categorias ditas “da cultura” possam ser, ao mesmo tempo, altamente especializadas, singularizadas, como é o caso que acabei de mencinar da pintura, sem que haja por isso uma espécie de posse hegemônica pelas elites capitalísticas? Como fazer para que esses diferentes modos de produção cultural não se tornem unicamente especialidades, mas possam articular-se ao conjunto dos outros tipos de produção (o que eu chamo de produções maquínicas: toda essa revolução informática, telemática, dos robôs, etc.)? Como abrir, e até quebrar, essas antigas esferas culturais fechadas sobre si mesmas? Como produzir novos agenciamentos de singularização que trabalhem por uma sensibilidade estética, pela mudança da vida num plano mais cotidiano e, ao mesmo tempo, pelas transformações sociais em nível dos grandes conjuntos econômicos e sociais?
Para concluir, eu diria que os problemas da cultura devem necessariamente sair da articulação entre os três núcleos semânticos que evoquei anteriormente. Quando os meios de comunicação de massa ou os Ministros da Cultura falam de cultura, querem os meios de comunicação de massa nos convencer de que não estão tratando de problemas políticos, e sociais. Distribui-se cultura para o consumo, como se distribui um mínimo vital de alimentos em algumas sociedades. Mas os agenciamentos de toda espécie implicam sempre, correlativamente, dimensões micropolíticas e macropolíticas.
Eu poderia, eventualmente, falar dos efeitos dessa concepção, hoje na França, com o governo Mitterrand, para tentar descrever a maneira pela qual os socialistas estão girando em falso com essa categoria de cultura. E isso porque sua tentativa de democratização da cultura não está realmente conectada com os processos de subjetivação singular, com as minorias culturais ativas, o que faz com que se restabeleça sempre, apesar das boas intenções, uma relação privilegiada entre o Estado e os diferentes sistemas de produção cultural. Neste momento, algumas pessoas na França, entre as quais me incluo, consideram muito importante inventar um modo de produção cultural que quebre radicalmente os esquemas atuais de poder nesse campo, esquemas de que dispõe o Estado atualmente, através de seus equipamentos coletivos e de sua mídia.
Como fazer para que a cultura saia dessas esferas fechadas sobre si mesmas? Como organizar, dispor e financiar processos de singularizaçao cultural que desmontem os particularismos atuais no campo da cultura e, ao mesmo tempo, os empreendimentos de pseudodemocratização da cultura?
Não existe, a meu ver, cultura popular e cultura erudita. Há uma cultura capitalística que permeia todos os campos de expressão semiótica. É isso que tento dizer ao evocar os três núcleos semânticos do termo cultura. Não há coisa mais horripilante do que fazer a apologia da cultura popular, ou da cultura proletária, ou sabe-se lá o que do gênero. Há processos de singularização em práticas determinadas e há procedimentos de reapropriação, de recuperação, operados pelos diferentes sistemas capitalísticos.
No fundo, só há uma cultura: a capitalística. É uma cultura sempre etnocêntrica e intelectocêntrica (ou logocêntrica), pois separa os universos semióticos das produções subjetivas.
Há muitas maneiras de a cultura ser etnocêntrica, e não apenas na relação racista do tipo cultura masculina, branca, adulta. Ela pode ser relativamente policêntrica ou polietnocêntrica, e preservar a postulação de uma referência de cultura-valor, um padrão de tradutibilidade geral das produções semióticas, inteiramente paralelo ao capital.
Assim como o capital é um modo de semiotização que permite ter um equivalente geral para as produções econômicas e sociais, a cultura é o equivalente geral para as produções de poder. As classes dominantes sempre buscam essa dupla mais-valia de poder, através da cultura-valor.
Considero essas duas funções, mais-valia econômica e mais-valia do poder, inteiramente complementares. Elas constituem, juntamente com uma terceira categoria de equivalência ââ?¬â? o poder sobre a energia, a capacidade de conversão das energias umas nas outras ââ?¬â? os três pilares do CMI.
fonte:http://zepower.wordpress.com/cultura-um-conceito-reacionario/
texto do livro Cartografias do desejo do Félix Guattari com a Suely Rolnik e foi produzido em 1982 com a vinda do primeiro.
21/3/2008 (morning) K�¸benhavn
Subtropicalismo Tardio
NBP largado í deriva na Cachoeira dos Descartógrafos, desviante de uma planejada rastreabilidade de circulação. Sem destinatário e/ou com destino incerto – na eterna atemporalidade do meio-dia (o videoregistro assim o imortaliza, provisoriamente). O idílico ambiente – sem olfato – onde o não-objeto sumiu do mapa: 6m de queda d’água num bairro de Curitiba, cachoeira secreta, desacreditada, duvidada ao ponto cego de lenda urbana, não-lugar. Sítio florestal mestiço de mata atlântica, araucárias e plantas exóticas; fragmento subtropical na internet. Situação aberta ao redescobrimento, no desafio da comprovação do ver pra crer, do percurso por trilhas reais. A Odisséia de fluxos indefinidos repousa no sumidouro geográfico, túnel do tempo e submidialogia dos fatos. Relato do Eldorado, imagem do Paraíso: desejo de lugar utópico com o qual todos ou muitos querem se relacionar. O não-objeto cai na real da ficção, habita o mito do acaso, desloca-se da segurança nominada do circuito de arte, onde é autoridade e até fetiche, para a concretude da natureza & território do imaginário, espaço onde a experiência pode estar desvinculada de uma expectativa prévia, ser surpresa pura e simples. Da cultura ao caos. Matéria-mistério sem rumo. Perder-se e achar-se, no encontro com o outro: vizinhos e internautas existem. Os dados do não-sei-o-quê specific estão lançados. Um não-lugar para o não-objeto, mas não um não-lugar para não-relações, pois restam bases, relacionais, e desejam-se outras, e outras mais virão mesmo sem serem desejadas, í sorte dos acontecimentos, í revelia de monitoramentos, ao destino das dúvidas. É a vida. E agora, desejou-se a incerteza, para encontrar-se, quem sabe, ou para ir além. Será o NBP resgatado e reinserido num circuito de arte? Estaria ele perdido para sempre na lembrança da última aparição? Tornou-se memória de um desejo de lançar-se ao desconhecido? O abismo e o buraco negro cruzaram sua órbita?
Cosmogonia da deriva: NBP na Cachoeira dos Descartógrafos. Meio-dia, Memelucovich.
ovo de colomba
” Chamas meu nome, e mal sabe que estou tão perto pois meu nome sou eu. Eu mesma nasci das pequenas ordens, das organizações casuais dos elementos juxtapostos. Hoje me multiplico com o que acumulo: nata cum omnia, domina sed summum aenigma. Que oráculos são? Séculos? É tarde… Tarde demais para esquecer, lembrar: abolir o presente num gesto ausente. Governo um ôvo. Reino ali. Sou a ordem interna, a circulação dos humores e a perfeição geométrica. Eu sou o processo. Controlo um encontro. Demonstro um contranste. Desatrelo um desastre. Corrijo um esconderijo. Escondo um juízo. Justiço um crime. Justifico uma crise. Judio dum cristo. Eu sou a crise. Interesso-me por isso. Isolo uma ilha. Anulo um zero. Eu sou a crise do processo. Tornado e transformado. De Formatura Naturae, formalis adequatio: sinal de perigo, lúmina sublústria. Os fundamentos estão sólidos, tudo durará. Dura muito, demora mais. Repetrifício: axiomas desprováveis de sentência. Anule as essências, sou mesmo uma negação. In illis dialecticae gyris et meandris, tudo serve: faço tábula da fábula rasa. Isso é mau anúncio. Volto í s origens da ordem. Peço proteção a um poder geométrico. Disponho de pouco. Perdão, senhores animais: perdi o mundo num lapso. Minha educação não me permite ver essas coisas. Um mal estar tomou conta do meu ser, um mal entendido contra o bom senso: estou í vossa disposição. Ponho um pé fora do caminho. ACONTECEU ALGO INACONTECíVEL. ”
o latido da harpa
Assim falou o velho feiticeiro; depois olhou maliciosamente ao derredor e pegou na harpa.
“Na serena atmosfera, quando já o consolo do rocio desce í terra, invisível e silencioso ââ?¬â? porque o rocio consolador veste delicadamente como todos os meigos consoladores, ââ?¬â? então recordas tu, coração ardente, como estavas sedento de lágrimas divinas e gotas de orvalho, quando te sentias abrasado e fatigado, porque nos erbosos caminhos amarelos corriam em torno de ti através das escuras árvores, maliciosos raios de sol poente, ardentes olhares de sol, deslumbrantes e malévolos.
“Pretendente da verdade! tu? ââ?¬â? Assim chasqueavam. ââ?¬â? Não. Simples poeta. Um animal astuto e rasteiro que mente deliberadamente; um animal ansioso de presa, mascarado de cores vivas, máscara para si próprio, presa para si mesmo. Isto… pretendente da verdade?… Um pobre louco! um simples poeta! um palrador pitoresco que perora por detrás de uma máscara de demente que anda vagueando por enganosas pontes de palavras, por ilusórios arco-íris; que anda errante e bamboleante de cá para lá em
ilusórios zelos! Um louco, nada mais!
(…)
Foi isso que despertou o cão. Que os cães acreditam em ladrões e fantasmas.
E quando o tornei a ouvir uivar, tornei a sentir dó dele. Que fora feito, entretanto, do anão, do pórtico, da aranha e dos segredos? Teria sonhado? Teria acordado? Encontrei-me de repente entre agrestes brenhas, sozinho, abandonado í luz da solitária lua.
Mas ali jazia um homem! E o cão, a saltar e a gemer, com o pêlo eriçado ââ?¬â? via-me caminhar ââ?¬â? começou a uivar outra vez, e pôs-se a gritar. Nunca ouvira um cão pedir socorro assim.
Nunca vi nada semelhante ao que ali presenciei. Vi um moço pastor a contorcer-se anelante e convulso, com o semblante desfigurado, e uma forte serpente negra pendendo-lhe da boca.
Quando vira eu tal repugnância e pálido terror num semblante? Adormecera, de certo, e a serpente introduziu-se-lhe na garganta, aferrando-se ali?
A minha mão começou a tirar a serpente, a tirar… mas em vão! Não conseguia arrancá-la da garganta. Então saiu de mim um grito: “Morde! Morde! Arranca-lhe a cabeça! Morde!” Assim gritava qualquer coisa em mim; o meu espanto, o meu ódio, a minha repugnância, a minha compaixão, todo o meu bem e o meu mal se puseram a gritar em mim num só grito.
Valentes que me rodeiais! Exploradores, aventureiros! Vós outros que apreciais os enigmas, adivinhais o enigma que eu vi então e explicai-me a visão do mais solitário.
Que foi uma visão e uma previsão: que símbolo foi o que vi naquele momento? E quem é aquele que ainda deve chegar?
Quem é o pastor em cuja garganta se introduziu a serpente? Quem é o homem em cuja garganta se atravessara assim o mais negro e mais pesado que existe?
O pastor, porém, começou a morder como o meu grito lhe aconselhava: deu uma dentada firme! Cuspiu para longe de si a cabeça da serpente e saltou para o ar.
Já não era homem nem pastor; estava transformado, radiante; ria! Nunca houve homem na terra que risse como ele!
“
o impensável
Não tentei arruinar o sentido da sentença, tampouco o da metáfora: pelo contrário, tentei torná-los mais fortes. Atacar o sentido rebelando-se contra a sentença não significa que a mesma seja destruída. Pelo contrário, ela é preservada porque um caminho para o outro sentido foi aberto. Tudo isso me parece como se eu tivesse sido confrontado por dois discursos opostos igualmente persuasivos. Isso resulta na impossibilidade de privilegiar um em detrimento do outro, o que, por sua vez adia constantemente o controle do sentido sobre a sentença. Talvez o impensável seja pura e simplesmente a suspensão mútua de dois pensamentos opostos e definitivos.
login: rb.restambases@gmail.com / senha: nbpnbpnbp
18:19 rb.restambases : ola
restam bases
eu: buenas
habla hombre
rb.restambases: estou mandando um email
18:20 eu: opa
rb.restambases: conctando as propostas de novas bases
eu: massa
ta chegando?
rb.restambases : foi
18:21 eu: blz
vou abrir
rb.restambases: ok
minha senha é nbpnbpnbp
é só entrar
abraço
eu: valew
rb.restambases: té mais
eu: abraço
18:22 não chegou
rb.restambases: hmm desculpe
faltaram bases
eu: hehe
18:24 rb.restambases: pronto
eu: opa chegou!
18:25 Tem um amigo meu
que tem uma companhia de teatro
ja bastante antiga aqui na cidade de ctba
18:26 que se chama nbp
rb.restambases: opa
deve haver alguma conexão com as bases
eu: É Nautilio (o B bão tenho certeza ) Portela
18:27 rb.restambases : de qualquer maneira NBP 🙂
eu: sim, de certeza
rb.restambases: Você gostaria de participar de uma experiência artística?
eu: NBP produções teatrais
ja dei olink
hehe
18:28 rb.restambases: basta levar pra casa o seguinte objeto
(NBP)
posso documentar esse processo?
eu: sim, tenho participado com a orquestra
no e/ou
vou te passar
18:29 o curriculum da produtora do nautilio
guenta que3 eu vou pedir pra ele
rb.restambases: a NBP?
eu: sim
existe a mais de 20 anos
muita peça feita
aqui na cidade
18:30 rb.restambases: Existem mais peças de NBP circulando?
eu: durante esses 20 anos
a NBP realizou muitas peças
18:31 rb.restambases: então era uma boa eu te passar o login e senha, pra você documentar sua experiência artística com NBP.
eu: sim
assim que eu tiver a lista delas
vou subindo
nbp por nbp
rb.restambases: ok
login: rb.restambases@gmail.com
senha: 814fh2_rb
18:32 no site
http://www.nbp.pro.br
eu: hehe
massen
rb.restambases: tem também em
18:33 http://nbp.organismo.art.br
la é só clicar na interrogação
e logar com
user:RB
18:34 login:nbpnbpnbp
eu: divertido
rb.restambases: de qualquer maneira não esqueça de documentar
eu: pó dexa
jamais perdemos um documentosinho
z
18:35 rb.restambases: precisamos amarrar o conceito e criar pra ele um sentido que realmente compense nosso tempo investido
eu: de que maneira?
rb.restambases : isso
poderia começar documentando essa pergunta
eu: ja tá
p- google fez isso por rb
18:36 rb.restambases: vou enviar a proposta dessa discussão para os outros interessadfos que no momento estão com NBP em mãos
eu: opa
maravilha
rb.restambases: o google é só um robô
nós vamos contextualizar
eu: necas
ótimo
19:37 ta no teu mail
19:38 rb.restambases: isso
vou repassar a conversa
um bom começo
eu: blz
sobe lá
rb.restambases: grande abraço
eu: outro
19:39 rb.restambases: não esqueça também de divulgar minha senha:
eu: opa
rb.restambases: rb.restambases@gmail.com
eu: gostei da ideia
rb.restambases: senha:nbpnbpnbp
eu: vou circular
rb.restambases: isso
NBP
tem que circular
mas nao deixe de documentar ok?
eu: não
rb.restambases: você ja tem as senhas.
eu: jamais esquecerei
pode deixar
rb.restambases: obrigado por sua colaboração
19:40 eu: valew rb
FJ+7=NBP
“Ela esta morta, 7. Vou buscar a pá.”
“você gostaria de participar de uma experiência artística” – “Do you like to participe of an artistic experience?” – live in HRVTSKA
nbp de bigode *NOVAS BASES PARA PERSONALIDADE
set -> pela_paz_de_todos_os povos_na_vida_e_a_morte
set-> for peace of all people in life and death
um muro separa este cemitérios de religiões “diferentes”. todos iguais perante a morte?
a wall that separates this cemetery of “different” religions. Everyone is equal in death?
{
Vai ficar aqui a caneta em cima deste muro
em ato simbólico a todos aqueles que escreveram,
disseram e tentaram fazer algo melhor da sua vida
do que simplesmente usar os DENTES com os quais nasceram…
fica aqui neste cemitério então ( e os mortos sabem disso melhor do que ninguém )
de que nada adiantam muros…
e que não é possível dividir…
This Pen Will Stay here Up in this wall
in a simbolic act to all whom that have written,
said and tried to make something better in their lives
than simply use the TEETH wich they born…
Will stay in this cemetery then (and the death know that better than no one)
that there’s no use for walls,
and it’s impossible to divide…
-> PELA PAZ NO MUNDO
assinado:
Octavio Camargo, Simone Azevedo e Guilherme Soares
(em performance web-site specific )
}
Borges Jazzzzzzz :
Rapsodos trabalhando – Ilíada Canto XVI com Richard Rebelo e direção de Octávio Camargo – Curitiba, 26/07/2007
Confira aqui fotos do espetáculo e outros documentos em produção colaborativa a partir de 27/07/2007.
Clique aqui para ver as fotos de Gilson Camargo, em Olhar Comum.
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Da nau fervia o prélio, e ao divo Aquiles
Vem Patroclo a verter cálido choro,
Como de celsa rocha em fio brota
Fundo olho d’água. Comovido o encontra
O amigo velocípede: “Patroclo,
Pranteias molemente? És qual menina
Que, da mãe apressada após, retêm-na
Pelo vestido, e em lágrimas olhando,
Insta-lhe até que em braços a receba.
Aos Mirmidões, a mim, que novas trazes?
Veio de Ftia um núncio? Vivem, consta,
Menetes e Peleu, cujo trespasso
Tinha de entristecer-nos. Ou lamentas
Os que ante as cavas naus ingratos morrem?
Não me ocultes, amigo, as mágoas tuas.”
Gemente assim Patroclo: “Não te agastes,
Aqueu sem par; dor grave oprime os nossos:
Os mais valentes já feridos jazem,
De lança o Atrida e Ulisses, e frechados
Na coxa Eurípilo e no pé Diomedes.
Médicas mãos os curam cuidadosas;
Mas não se dobra teu rancor, Pelides.
Nunca ira tal me cegue, herói funesto!
Quem mais em teu valor fiar-se pode,
Quando não livras da ruína os Gregos?
Nem te gerou, cruel, Peleu nem Tétis;
Filho és do turvo mar, de broncas penhas.
Se agouros temes, se de Jove arcanos
Declarou-te a mãe deusa, ao menos dá-me
Teus Mirmidões, e aos nossos lume escasso
Talvez serei. Tua armadura emprestes:
Crendo-te em liça os Teucros, é factível
Cessem do assalto, e aos márcios Gregos deixem
Útil breve respiro em tanta lida;
Frescos nós outros, o inimigo lasso
Fácil do campo e naus rechaçaremos.”
Ai! Néscio implora, e o fado e a morte chama.
Suspira Aquiles: “Como! Eu, bom Menécio,
De agouros me temer! De Jove Tétis
Nada me revelou. Mas dói-me o agravo
De um prepotente par, que o prêmio ganho
Por minha lança na invadida praça,
A jovem bela escrava, arrebatou-me;
Dói-me sim que esse Atrida ma tirasse,
Como das mãos de ignóbil vagabundo.
Olvide-se o passado, nem perpétuo
Âdio quero nutrir: de não depô-lo
Voto fiz, sem primeiro í minha esquadra
Chegar o estrondo e a pugna. O arnês que pedes,
Veste-o, conduz os Mirmidões fogosos:
De Teucros nuvem basta as naus circunda;
Pouca ourela da praia aos Dânaos resta;
ílio em peso concorre e afouta inunda.
Oh! Não vêem mais luzir meu capacete:
Se o rei me fora justo, em fuga tinham
O fosso de cadáveres enchido;
Ora, opugnando, o exército encurralam.
Não mais braveja a Diomédea lança,
Os Dânaos resguardando; a voz calou-se
Das goelas do Atrida abominável:
A de Heitor homicida aos seus troveja;
Guerreiros vivas o triunfo aclamam.
Sus, Patroclo, das naus remove a peste,
Anda, acomete; a frota não se abrase,
Que nos deve repor na doce pátria.
Ouve e do meu conselho não te olvides,
A fim que honras os Dânaos me prodiguem,
E a cativa gentil me restituam
Com magníficos dons: repulsos, volta;
Embora o esposo altíssimo de Juno
Te apreste a glória, os bélicos Hectóreos
Não combatas sem mim, que me é desdouro;
Nem ávido exultando na carnagem,
Aos muros de ílio o exército avizinhes;
Pois descerá do Olimpo um dos Supremos,
Talvez o Longe-vibrador que os ama.
Salva as naus e retorna; eles pleiteiem
Em raso campo. Â sempiterno Padre,
Minerva e Apolo, a morte a nenhum Teucro
E a nenhum Grego poupe; escapos ambos,
Sós ílio sacra derribar nos caiba.”
De rojões, entretanto, Ajax vexado,
Mal se sustinha, que o domava Jove
E o dardejar contino; em torno í s fontes
O elmo hórrido rouqueja, que o brilhante
Artífice cocar alvo é dos tiros.
Do pavês o ombro esquerdo já tem lasso,
Mas quedo apara a chuva de arremessos;
De anélito açodado, os membros todos
Escorrendo em suor, nem resfolgava,
Aumentando um perigo outro perigo.
Musas do Olimpo, recontai-me como
O fogo se ateou na Argiva armada.
Onde a espiga se encava, de montante,
Corta o Priâmeo o freixo ao Telamônio,
Que mutilado vibra hastil inútil,
E cai no chão tinindo a cúspide ênea.
Treme o indômito Ajax reconhecendo
Que obra é celeste, que o senhor do raio
Decide e quer aos Teucros a vitória;
Enfim recua. A infadigável chama,
Remessada ao baixel, inextinguível
Pega de popa a proa; então veemente
Bate Aquiles na coxa: “Eia, Patroclo,
Vejo lavrar tenaz o hostil incêndio;
Não se nos tolha o meio í retirada;
Já já te arneses, e eu reúno as hostes.”
Cinge o Menécio deslumbrante saio;
Com prata afivelando, as finas grevas
Ajusta í s pernas; estrelada e vária
Aos peitos liga a do veloz Pelides
Érea couraça; o claviargênteo gládio
Pendura; o grã pavês, sólido ombreia;
Põe í forte cabeça o casco insigne,
De nutante penacho e horrente crista;
Válidas lanças a seu pulso adapta,
Que a do Eácida exímio, por disforme,
Argeu nenhum, só ele, manejava:
Cortou Quiron seu freixo no alto Pélion,
De heróis futuro dano, a Peleu dado.
A Automedon manda aprontar o coche,
A quem mais preza após o rompe-esquadras,
Pajem fiel, no afogo das batalhas.
Este junge os ligeiros Xanto e Bálio,
Ao vento iguais: Podarga harpia, ao sopro
De Zéfiro num prado os concebera
Junto ao rio Oceano. Ata í boléia
Com imortais corcéis Pédaso fero,
Preia de Aquiles d’Eetion nos muros.
O filho de Peleu, de tenda em tenda,
Arma os seus. Quando crus vorazes lobos,
O estômago a instigá-los, dilaceram
Montês cervo ramoso, em alcatéia,
Rubros os queixos, com delgadas línguas
Lambem de cima a funda escura fonte;
E, teso o ventre, a impar, cruor vomitam,
Mais gana inda os instiga e os acorçoa:
Dos Mirmidões os príncipes, não menos,
O amigo audaz famintos e animosos
Do Eácida ladeiam, que os ginetes
E adargados belígero afervora.
Cinqüenta lestes naus a Tróia Aquiles,
Caro ao Satúrnio, trouxe, com cinqüenta
Remos em cada uma, e a cabos cinco
Diviso o mando, presidia a todos.
Menéstio encouraçado era o primeiro,
Que a Espérquio rio, gênito de Jove,
Polidora pariu, de Peleu filha,
Gentil mulher que ao deus se unira assíduo:
Nado o criam de Bóros Periério,
Que lhe esposara a mãe com dote imenso.
Era Eudoro o segundo, que houve oculta
A de Filas garbosa Polimela:
O Argicida Mercúrio amou-a, vendo-a
Cantos guiar e danças da auri-archeira
Diana estrepitosa, e manso ao quarto
Subindo virginal, teve este egrégio
Rápido campeão; mas, dês que ao lume
Do sol o deu cruíssima Ilitia,
Casou com Polimela o Actório Equecles,
Dotando-a com mil dons: o avô cuidoso
O criou como seu. Era o terceiro
Pisandro Memalides, que excedia
Na lança os Mirmidões, Patroclo exceto.
Quarto, o équite Fênix; era o quinto
Alcimedon famoso Laerceio.
Tudo Aquiles ordena, e diz severo:
“Não vos esqueça, Mirmidões, que a bordo
Ameaçáveis os Troas; que freqüente,
Condenando meu ódio, me exclamáveis:
– De fel a mãe te amamentou, Pelides;
Tirano, os sócios í inação constranges;
Pois que a ira fatal caiu-te n’alma,
De volta í casa o pélago sulquemos. –
Ei-lo o conflito pelo qual bramíeis:
Quem tiver coração, corra aos Troianos.”
A voz régia afogueia as filas todas.
Como, a prova dos ventos, o arquiteto
Em parede superba ajunta as pedras;
Ajuntam-se, elmo a elmo, escudo a escudo,
Lado a lado, os varões: tocam-se e ondeiam
Indistintos penachos e cocares.
Sós dois, Patroclo e Automedon, concordes
Em ferir a batalha, os precediam.
Vai logo í tenda Aquiles, abre a tampa
Da que a mãe argentípede, í partida,
Lhe dera arca louçã, de agasalhados
Capotes cheia, e túnicas e mantas
E tapetes felpudos: copa tira
De alto lavor, em que ele só bebia
E a Jove só libava; com enxofre
Untada a expurga e em água a purifica;
Também lavando as mãos, purpúreo vinho
Despeja, e em meio dos guerreiros posto,
Nos céus a vista, ao fulminante Padre,
A seus rogos atento, assim brindava:
“Jove Pelasgo, tu que longe habitas
E imperas em Dodona hiberna e fria,
Dos Selos teus intérpretes cercado,
Que de pés andam nus e em terra dormem,
Perfaze ora os meus votos, já que os Dânaos
Por honrar-me afligiste: eu permaneço,
E de muitos í testa envio o sócio;
Dá-lhe vitória, altíssono, e a coragem
No peito lhe confirma; Heitor aprenda
Se é de si forte o amigo, ou se invencível
É só quando combate í minha ilharga.
Mas, depois que do assalto as naus liberte
E do tumulto, incólume aqui volte,
Com meu arnês inteiro e os meus soldados.”
Previsto Jove, anui somente em parte:
Salve Patroclo as naus, mas não se salve.
Depois que liba súplice, o Peleio
Entra na tenda, e a copa na arca fecha;
à porta volve, e espectador ainda
Quis ser da atroz mortífera batalha.
Como Patroclo bizarro as hostes marcham,
Té que aos Troas remetem corajosas.
Quando as vespas, que encelam-se na estrada,
Insensatos meninos irritando,
Público mal preparam buliçosos,
Por descuido se as toca o viandante,
Elas com forte coração rebentam
Em defesa do enxame: assim prorrompem
Os Mirmidões, e a cuquiada ruge.
Grita Patroclo: “Â sócios do Pelides,
De quem sois recordai-vos, com façanhas
Esse herói dos heróis honremos hoje:
O amplo-dominador confesse a culpa
De agravar o fortíssimo dos Gregos.”
Com tal estímulo, adensados ruem;
Das naus em torno o alarma horrível soa.
Vendo ao Menécio coruscar nas armas
E o mesmo auriga, trépidos os Teucros
Se desconcertam; cuidam congraçado
O Eácida veloz, e olhando em roda
Cada qual busca efúgio í instante Parca.
Patroclo estréia, com fulgente lança,
Onde mais tumultuam, junto í popa
Do Grã Protesilau: fere o armo destro
A Pericmeu, que os équites Peônios
Caudilha de Amidon e do íxio largo;
Vai de costas, no pó gemendo rola,
E a flor de seus espavoridos fogem.
Remove e extingue o fogo, e atropelados
Da nau já semi-ardida os Frígios deita:
Por entre as outras, com ruído enorme
Derramando-se os Dânaos, os repulsam.
Se alquando espalha Júpiter fulgúreo
O negrume do cimo da montanha,
Aberto o máximo éter, aparecem
Rocas, píncaros, bosques; tais os Dânaos,
Livres do incêndio, um pouco respiraram:
Porém dura ainda a pugna; que os Troianos
Costas não davam todos, mas forçados
Iam deixando o campo e resistindo.
Cada chefe um contrário acossa e mata.
Logo a bronze o Menécio de Areilico
Fratura o fêmur e o debruça em terra.
A Toas, que do peito arreda o escudo,
Prosterna Menelau. Na arremetida,
Meges lanceia a perna, onde há mais polpa,
Ao nobre Anficlo, e os nervos lhe descose;
Letal escuridão lhe cega os olhos.
Antíloco Nestório de érea ponta
A Atínio espeta o lado e o prostra. Máris,
Ante o fraterno corpo, ao Grego vibra;
Mas Trasimedes, prevenindo o golpe,
No ombro lhe mete a cúspide, e lhe corta
Os músculos do braço e o osso escarna:
Baqueia Máris em medonha treva.
E dois irmãos a Dite assim remete,
Ambos hasteiros, a Sarpédon caros,
Filhos de Amisodar, que, infensa a muitos,
A Quimera nutria insuperável.
Na baralha a Cleóbulo impedido
O Oiliades empolga, e na garganta
Lha ensopa toda e em sangue a espada aquece:
Purpúrea morte o imerge em noite escura.
Lícon e Peneleu, que se entrechocam,
Botes errando, í s lâminas recorrem:
Lícon no hostil cocar imprime o gládio,
Que pelo punho estrala; sob a orelha,
Peneleu de um revés lhe fende o colo,
E a cabeça, da pele só retida,
Lhe dependura e os órgãos lhe desata.
Merion desenvolto após Acamas,
Ao montar, o escalavra no ombro destro:
Ofusca-se-lhe a vista e rui do coche.
De pique atroz Idomeneu, de Erimas
Por sob o cérebro atravessa a boca,
Racha alvos ossos e desloca os dentes:
Os olhos dois infiltram-se de sangue,
Sangue das ventas bolha e abertas fauces;
Da nera morte o envolve a nuvem baça.
Cada herói Grego assim talha uma vida.
Como lobos roazes que, de espreita,
A mães roubam cabritos ou cordeiros,
Cujo pastor os descuidou no monte,
E aos balantes imbeles despedaçam;
Dão sobre os Troas, que olvidando o brio,
Só na horríssona fuga se afiúzam.
Ansioso o grande Ajax a Heitor procura;
Que, adargando experiente os ombros largos,
Dos tiros o zunido ou silvo observa,
E inclinada a vitória, inda constante
Vela nos companheiros. Qual do Olimpo
Ao céu vai nuvem, se o nimboso Padre
O éter sereno tolda, as naus expedem
O trépido Tumulto: os de Heitor passam
Em debandada, e os rápidos ginetes
Apartam-no dos seus, que o fosso embarga.
Quantos corcéis, na escarpa escorregando,
Quebram temões, donos e coches largam!
Uns alenta o Menécio, outros acossa
Com ignito furor: em gritos fogem,
As estradas enchendo, e os corredores,
Por turbilhões de pó que os ares turvam,
Das naus e tendas í cidade voam.
Trota e se envia onde há maior distúrbio,
E minaz urra: sob os eixos muitos
Rolam dos voltos clamorosos carros.
Os imortais ungüíssonos dos deuses,
Dom preclaro a Peleu, transpõe o fosso
De um pulo; e de ir o impulso tem Patroclo
Sobre Heitor, que é de biga arrebatado.
No outono, quando Júpiter, sanhudo
Contra o julgar dos homens que a justiça
Do foro banem sem temor dos numes,
A negra terra agrava de chuveiros,
Com tal fúria desfecha, que em dilúvio
Rios dos montes, sementeiras e agros
Arrasando, a gemer se precipitam
No vasto mar purpúreo: assim nitrindo
Iam na desfilada as Teucras éguas.
Rotas as hostes, para as naus Patroclo,
De ílio tolhendo o ingresso desejado,
As repulsa, e entre a praia e o Xanto e o muro
Gira a vingança e a morte. Nu de escudo
Fere a Pronos o peito; os membros laxa,
E fragoroso expira. De outro bote
Prostra o Enópio Testor, que perturbado
No assento encolhe-se e demite as rédeas:
Pela destra maçã lhe fisga os dentes,
A si contrai a lança; e, qual se pesca
De linha e anzol, de cima de um rochedo,
Grã sacro peixe, pela boca hiante
Do carro abaixo o tira inanimado.
Joga uma pedra a Eríalo que arrosta,
O elmo parte a cabeça racha em duas;
Por terra se debruça, e a morte o cinge.
Patroclo, um após outro, ao chão derriba
A Erimas e Anfotero, Epalte e Pires,
Équio e Ifeu, Tlepolemo Damastório,
A Polímelo Argeiades e Evipo.
Dele Sarpédon vendo os seus domados,
Repreende os nobres Lícios: “Que vergonha!
Onde, Lícios, fugis? Como sois ágeis!
Corro a provar o armipotente braço,
Que a tantos campeões tolhe os joelhos.”
Do carro eis salta e apeia-se Patroclo.
Quais, de bico recurvo e garra adunca,
Sobre alta penha aos guinchos dois abutres,
Travam-se eles gritando. – Ao contemplá-lo,
Para a consorte e irmã suspira Jove:
“Dos homens o mais caro, ai! Meu Sarpédon,
à lança do Menécio está votado:
Hesito n’alma se na Lícia o ponha,
Subtraído ao combate lutuoso,
Ou se ao cruel destino o deixe entregue.”
Mas a augusta olhitáurea: “Que proferes,
 formidável Júpiter? Salvares
Mortal í triste Parca já fadado!
Salva-o, porém do Céu não tens o assenso.
Digo mais, e reflete, í pátria vivo
Se envias teu Sarpédon, outros numes,
Da injustiça irritados, hão de os filhos
Muitos livrar que ante ílio estão pugnando.
E do teu predileto se hás piedade,
Mal do Menécio a mão do alento o prive,
Consente í Morte e ao Sono que o transportem
à opulenta alma Lícia: irmãos e amigos
Façam-lhe exéquias e lhe sangrem pios
Túmulo e cipo, aos mortos honra extrema.”
O pai de homens e deuses resignou-se;
Mas pelo filho, a quem da pátria longe
Na feraz Tróia imolará Patroclo,
Asperge a terra de sanguíneo orvalho.
Já se contrastam; mas Patroclo ao bravo
Pajem do rei Sarpédon, Trasimelo,
Vulnera no imo ventre e solta a vida.
Sarpédon brande a lança impetuosa,
E o golpe errado a pá direita fere
De Pédaso corcel, que em vascas geme
Na arena a espernear e arcando expira.
Xanto escouceia e Bálio; o jugo estala,
E as bridas se embaraçam no que atado
Ao temão jaz no pó. Na afronta, o hasteiro
Automedon provê: de Junto í coxa
Robusta saca a lâmina aguçada,
E ao da boléia presto aos loros talha.
Direita a imortal biga ao freio acode.
Aos dois rói nova sanha e fogo novo:
Inda a Sarpédon falha a cúspide ênea,
O ombro só roça esquerdo; mas certeiro
Patroclo o pique lhe enterrou por onde
O coração as víceras torneiam.
Como o carvalho, ou choupo ou celso pinho,
Para naval fabrico, ao truz desaba
De afiada secure; ante os cavalos
E o carro jaz, e o pó sanguíneo apalpa,
Os dentes a estrugir. Qual fulvo touro,
Soberbo entre a flexípede manada,
Sob os colmilhos do leão morrendo,
Muge, inda se debate; assim, vencido,
Gemente o rei dos adargados Lícios,
A bracejar, o camarada chama:
“Diletíssimo Glauco, mais que nunca,
Mostra o que és, sê pugnaz, o mando assume.
Por Sarpédon concita os cabos todos
A pelejar; tu mesmo a lança enrestes.
Infâmia e opróbrio te será perpétuo
Os Gregos despojarem-me o cadáver,
Onde os Lícios heróis as naus disputam.
Eia, as tropas inflama, inabalável.”
Cala, afila o nariz e empana os lumes,
Revolto em morte. O Aqueu lhe calca os peitos,
A cúspide lhe saca e entranhas e alma.
Os Mirmidões retêm corcéis que vagam
Açodados, sem coches nem senhores.
De Sarpédon a voz contrista a Glauco,
Nem este lhe valeu, que na mão preso
Tinha o braço, e a frechada o confrangia
Do Aquivo Teucro na mural contenda;
Mas ora a Febo: “De ílio, ou da possante
Lícia, Escuta-me, ó nume arcipotente;
Queixas em qualquer parte e rogos ouves
De afligido mortal: picadas sinto
Lancinantes, o sangue não se estanca,
O ombro é pesado, o pique mal sustento.
Nada posso compreender; mas jaz Sarpédon,
Sem que ao valente filho acuda Jove.
 rei, sequer me sara esta ferida,
Alivia-me, a fim que esforce os Lícios
E o cadáver eu mesmo lhe defenda.”
Benigno Febo, as dores já lhe acalma,
Veda o sangue e o robora. Exulta Glauco
Da proteção do deus; primeiro os chefes
Lícios procura, e a cheio passo aos Teucros
Agenor se dirige e Polidamas,
Mais a Eneias e Heitor, e a este exprobra:
“Sócios esqueces que da pátria e amigos
Longe perecem, nem salvá-los queres!
Sarpédon morto jaz, da Lícia apoio,
Valoroso, eloqüente e justiceiro;
Pelas mãos do Menécio o prostrou Marte.
Indignai-vos, consócios, de que o dispam
E insultem Mirmidões, vingando irosos
Aos que ante as naus a botes aterramos.”
Lavra um luto geral; que, estranho embora,
Esteio era de Tróia, e o mais galhardo
Entre os galhardos Lícios. Por Sarpédon
Chameja e os guia Heitor; Patroclo, os Dânaos,
Instigando os Ajax de si fogosos:
“Vós Ajax, dantes sempre os mais estrênuos,
Hoje aos Teucros. O herói que entrou primeiro
No Graio muro, em terra está, Sarpédon.
Possamos nós despi-lo e encher de afrontas,
A bronze escarmentar os que se oponham!”
De estímulo os Ajax não careciam.
Uns e outros firmam-se em renhida pugna,
Teucros e Lícios, Mirmidões e Aquivos,
Com medonho alarido e fragor de armas.
Para estrago maior em torno ao corpo
Do amado filho, Júpiter estende
Lôbrega noite sobre o atroz conflito.
Olhinegros Aqueus primeiro afrouxam,
Ferido um Mirmidon não lerdo, prole
De Agacles valoroso, Epigeu divo,
Que em Budeia magnífica imperava,
E morto um primo audaz, súplice veio
A Tétis argentípede e ao marido,
Que a Tróia em poldros fértil o enviaram
Do seu rompe-esquadrões na comitiva:
Sobre Sarpédon quando a mão já punha,
De uma pedrada o elmo Heitor partiu-lhe
E em duas a cabeça; do cadáver
Descai por cima, e a feia Parca o cinge.
Qual açor caça a gralhos e estorninhos,
Entre os primipilares, anojado
Pelo defunto sócio, tu Menécio,
De chofre dás nos Lícios e Troianos,
De seixo a Atenelau Itemeneides
Os tendões rompes da cerviz; recua
Com seus primipilares o Priâmeo:
Quanto, ou no jogo ou na homicida guerra,
Alcança um tiro de esforçado pulso,
Ganham tanto os Aqueus e os Teucros perdem.
Glauco o primeiro se voltou, matando
O caro filho de Calcon, Baticles,
De Hélade opulentíssima habitante
E o Mirmidon mais rico: este após ele,
Já quase o apanha; de repente o Lício
Vira-se e a lança embebe-lhe no seio:
Ao baquear do braço, um grito soltam,
Com mágoa os Dânaos, com prazer os Troas,
Que em derredor se apinham; mas briosos
Vêm de encontro os Aqueus. Merion derriba
O audaz Laogono, de Onetor progênie,
Do Ideu Jove ministro e um nume ao povo;
Sob a orelha e a maxila o fere e prostra:
A alma afunda-se logo em treva horrenda.
O Anquíseo a Merion dispara, crendo
Sob o escudo o enfiar na arremetida;
Ele previsto se proclina, e o freixo
Por cima zune, enterra-se na areia,
E o conto fixo treme, até que Marte
A fúria impetuosa lhe aquieta,
Pois dardou mão robusta o bote inútil.
E Eneias irritado: “És bom dançante;
Mas o pique, Merion, certeiro fosse,
Que para sempre te afracara as pernas.”
Ao que retorque o hasteiro: “És forte, Eneias;
Mas nem a todos que arrostar-te ousarem,
Tu contes extinguir. Mortal nasceste;
A tocar-te o meu bronze, embora sejas
Na destra afouto, me darias glória,
Tua alma ao rei da lúgubre quadriga.”
Mas o Menécio a Merion censura:
“Que te apresta o falar, valente amigo?
Antes que um morda o pó, com feros nunca
Arredarás os Teucros do cadáver:
O braço í guerra, ao parlamento a língua;
Não palavras, sim obras.” Nisto avança,
Marcha e o ladeia Merion deiforme.
Qual soa ao longe a mata, em fundo vale,
Dos lenhadores aos contínuos golpes,
Ei-los em todo o campo o estrondo excitam
De êneos arneses, bipontudas hastas,
Elmos, lorigas, e broquéis e espadas.
Desconhecera o experto ao Lício cabo,
Desde a cabeça aos pés de pó coberto
E sangue e tiros: cercam-no e vozeiam,
Como em curral, na primavera, moscas
De alvos tarros de leite em roda zumbem.
Júpiter, fitos no combate os olhos,
Medita ansioso de Patroclo o fado:
Se ali sobre Sarpédon o Priâmeo
O imole e dispa, ou se ele a vários inda
Lance no extremo afã. Por fim resolve
Que o fâmulo de Aquiles í cidade
Com matança repila o chefe e os Teucros.
O coração primeiro a Heitor quebranta,
Que í pressa monta e exorta os seus que fujam,
A balança Dial pender sentindo.
Nem os Lícios resistem, vendo em meio
Jazer seu rei de um vasto morticínio,
Pois sobre ele muitíssimos caíram,
Quando o Satúrnio o prélio exasperava.
Despem-lhe as éreas coruscantes armas,
Que í s naus remete o vencedor Patroclo.
Diz a Febo o Nubícogo: “Anda, filho,
De sob os dardos meu Sarpédon ergas,
Puro do negro sangue, a parte, em veia
Limpa o lava, e de ambrosia perfumado
Veste-lhe imortal roupa, e o dá que o levem
Os dois gêmeos cursores Morte e Sono
à opulenta ampla Lícia: irmãos e amigos
Façam-lhe exéquias e lhe sagrem pios
Túmulo e cipo, aos mortos honra extrema.”
Dócil Apolo, do Ida ao campo desce:
De sob os dardos a Sarpédon ergue,
Puro do negro sangue, a parte, em veia
Limpa o lava, e de ambrosia perfumado
Veste-lhe imortal roupa, e í Morte e ao Sono
O dá, que na alma Lícia o depuseram.
A Automedon excita e aos inimigos
Deita o coche Patroclo; e, se os preceitos
Louco não desprezasse do Pelides,
O trespasso evitara. Mas os de homens
Vence o aviso de Jove, que afugenta
E ao forte que instigou tolhe a vitória,
Ao Grego estimulando. – A quem, Menécio,
Derribaste primeiro, a quem postremo,
Quando a morrer os deuses te chamaram?
A Adresto e Equeclo e o Mégades Perimo,
E Autonoo, e Epistor e Melanipo;
Depois a Elaso e Múlio, enfim Pilarte:
Mata-os, os mais persegue. E a de altas portas
à tremebunda lança ajoelhara,
Na grã torre se Apolo não parasse,
Em mal dos Dânaos e a favor dos Troas.
O herói pelo espigão do altivo muro
Três vezes trepa, três a eterna destra
O empurra e bate-lhe o fulgente escudo;
Qual deus indo a investir, minaz o impede
O Longe-vibrador: “Não mais, Patroclo,
à brava lança tua os fados vedam
ílio santa arrasar; compete a braço
Que o teu muito mais forte; ao grande Aquiles.”
Temendo a frecha do agastado Apolo,
Retrograda o Menécio. às portas Ceias
Tem-se Heitor, cogitando se os cavalos
De novo atire í turba, ou clame í s tropas
E as congregue ante o muro; e, enquanto hesita,
Aproxima-se Apolo em forma de ísio,
Tio seu maternal, mas verde e guapo,
De Dimas geração, que í s Frígias margens
Do Sangário habitava, e assim lhe fala:
“Que vil moleza, Heitor! Oh! Quanto em forças
Te cedo, eu te excedesse, que da inércia
Te havia de pesar. Anda, coragem!
A Patroclo os ungüíssonos propele;
Busca matá-lo, e dê-te a glória Febo.”
Disse, e torna í refrega: Heitor ordena
Ao belaz Cebrion que açoute as éguas
E entre em peleja. O deus corre as fileiras,
Turba e assusta os Aqueus, exalça os Teucros.
Despreza os mais Heitor, só trata e marcha
Contra o Menécio, que do coche pula,
Na sestra o pique, na direita um branco
íspero seixo oculto, e forcejando
Errado o joga, mas não foi baldio,
Que acerta em Cebrion, Priâmeo espúrio,
Tendo as rédeas auriga: í s sobrancelhas
O esmecha a pedra e o osso lhe espedaça,
Aos pés vaza-lhe os olhos na poeira;
Ele exânime ao chão vai de mergulho.
E Patroclo a zombar: “Oh! Como é ágil!
De nau saltara no piscoso ponto,
Como da sela, e a mergulhar nas vagas,
Sustentara de ostrinhos a maruja.
São bons mergulhadores os Troianos.”
Aqui, remete a Cebrion, em guisa
De agro leão, que ao devastar o cerco,
É malferido, e nímia ardência o perde.
Pronto apeia-se Heitor. Qual num cabeço
Crus também dois leões esfomeados
Morta corça tetérrimos disputam;
Os dois, Patroclo e Heitor, da pugna mestres,
Cortarem-se almejando a sevo bronze,
Brigam por Cebrion: dos pés o aferra
O Menécio, e o Priâmeo da cabeça;
Teucros e Argeus frenéticos se abarbam.
Quando, em floresta ou brenha, de Euro e Noto
O certame sacode o cortiçoso
Corniso e o freixo e a faia, gemebundos
Seus longos ramos confundindo, estralam
Num contínuo fragor: tais se entrelaçam,
Não pensando na fuga desastrosa,
De Cebrion em roda os contendores,
Em recíproco ataque a trucidar-se.
Lanças pregam-se e dardos, setas voam
Dos nervos rechinando, e a rodar pedras
Aos combatentes os broquéis abolam;
Da boléia esquecido, o herói se estira
De pó num turbilhão por grande espaço.
Enquanto o Sol montava, a tiros morrem
De parte a parte; mas no seu declive
Era imensa dos Gregos a vantagem,
Que a Cebrion arrancam do tumulto
E do acervo das armas e o despojam.
Patroclo a Marte igual, medonho urrando,
Três vezes rui, três vezes mata a nove;
Mas ah! da quarta, ó campeão divino,
Luziu teu fim! Terrível sai Apolo;
Oculto em nevoeiro, a mão pesada
Lhe carrega no dorso e largos ombros;
Vidra-lhe os olhos súbita vertigem;
Desenlaçado o esguio capacete,
Rola aos pés dos ungüíssonos tinindo;
Sangue e pó suja as crinas e a cimeira,
Nunca dantes manchadas, quando ornavam
Do divo Aquiles a venusta fronte:
Na cabeça de Heitor, para seu dano,
Pôs Jove esse elmo. Reforçado e rijo
De Patroclo nas mãos rebenta o pique;
Dos loros o pavês se lhe desliga;
Mesmo Febo a couraça lhe desprende.
Quedo e estúpido, os membros entorpece:
Traspassa-o pelas costas o Pantóides
Jovem Euforbo, auriga e hasteiro insigne,
Celérrimo e adestrado, que dos carros
Novel já despenhou vinte inimigos,
E a ti, Menécio, te feriu primeiro,
Sem derribar-te; e, assim que extrai a lança,
Mete-se no tropel; pois não se atreve
Encarar com Patroclo, bem que inerme.
Este, opresso de um nume e vulnerado,
Aos seus retrocedendo, ia salvar-se;
Mas Heitor, ao magnânimo ferido
E em retirada, vem por entre as alas,
No vazio lhe ensopa o aêneo gume:
Tomba o herói com fracasso, e os Gregos gemem.
Qual se um leão com javali forçudo,
Beber ambos querendo em fonte exígua,
Luta cruel empenha em árduo cume,
Té que o cerdo açodado enfim sucumbe;
Tal ao Menécio, a tantos pernicioso,
Desalma Heitor. Sobre ele ovante o insulta:
“Creste assolar, demente, a pátria nossa,
E í tua, subtraído o livre dia,
As Teucras embarcar: por defendê-las
Desse dia servil, é que os sonípedes
Corredores de Heitor í pugna o levam;
Por guardar seu decoro, é que na lança
Os Troianos supero belicosos.
Hão de comer-te, mísero, os abutres!
Nem vale o forte Aquiles, que ao ficar-se
Recomendou-te certo: – às naus bojudas
Não me revertas, cavaleiro amigo,
Sem que de Heitor ferino aos peitos rasgues
A cruenta loriga. – Essas palavras
Seduziram-te, louco, e te perderam.”
E lânguido o Menécio: “Ora blasonas!
Domado eu fui por Júpiter e Apolo,
Que o próprio arnês dos ombros me arrancaram.
Sem eles, como tu vinte guerreiros
Pelo meu dardo acabariam todos;
Mas fatal sorte e o filho de Latona,
E entre os mortais Euforbo, me renderam:
És terceiro e despojas um finado.
Escuta, e fixo o tenhas: longo tempo
Não viverás; a Parca já te espera
Sob a lança do Eácida invencível.”
Disse, e expira: dos membros desatada,
A alma voa aos infernos lamentando
O seu viril esforço e mocidade.
Ao morto fala Heitor: “Por que me agouras
Destino tal? Quem sabe se inda ao nado
Da pulcrícoma Tétis hei-de a vida
Extinguir?” Nisto, o calca, e o êneo pique
Da ferida sacando, o ressupino
Corpo com ele afasta; o enresta ansioso
Trás o pajem deiforme do Pelides,
Automedon, que os imortais ginetes,
A Peleu dom celeste, arrebataram.
Photos: Mathieu Bertrand Struck
um den tische
“Now, in order to answer the question, ‘Where do we go from here?’, we must first honestly recognize where we are now” (Martin Luther King Jr., 1967)
Não é racismo se insurgir contra branco, diz ministra
Denize Bacoccina, de Brasília
A ministra Matilde Ribeiro, titular da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial (Seppir), diz que considera natural a discriminação dos negros contra os brancos.
Em entrevista í BBC Brasil para lembrar os 200 anos da proibição do comércio de escravos pelo Império Britânico, tido como o ponto de partida para o fim da escravidão em todo o mundo, ela disse que “não é racismo quando um negro se insurge contra um branco”.
“A reação de um negro de não querer conviver com um branco, eu acho uma reação natural. Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou”, afirmou.
Ribeiro disse que ainda vai demorar até que as políticas públicas implantadas nos últimos anos comecem a dar resultados concretos e diminuam a diferença econômica e social entre as populações branca e negra do país.
“Ainda temos muito o que fazer”, afirma, enumerando ações que já começaram, como na área de educação e saúde.
Ela diz que, embora a abolição da escravatura tenha chegado atrasada ao Brasil, hoje o país tem uma das legislações mais avançadas do mundo em relação a direitos iguais, mas ainda falta uma mudança de postura da sociedade.
BBC Brasil – De acordo com as estatísticas, a proporção de negros abaixo da linha da pobreza na população brasileira é de 50%, enquanto entre os brancos é de 25%. Quando isso vai começar a mudar?
Matilde Ribeiro – As ações neste momento ainda são na ordem da estruturação das políticas. Por exemplo, no Ministério da Saúde estamos incluindo o quesito cor nos formulários. Precisamos ter referência do que adoece e morre a população brasileira, para poder ter programas específicos.
BBC Brasil – A secretaria já tem quatro anos, o que se pode perceber de resultado prático neste período?
Matilde Ribeiro – Na educação, uma lei de 2003 obriga o ensino da história e cultura afro-brasileiras para as crianças, desde o início. O processo de implementação está em curso. É muito difícil ter números, resultados concretos. Mas já tem alguns resultados. Por exemplo, o (programa) Prouni, de bolsas de estudos para alunos carentes de escolas, já concedeu em menos de três anos mais de 200 mil bolsas no Brasil, dos quais 63 mil negros e 3 mil indígenas.
BBC Brasil – E em quanto tempo a senhora acha que poderemos ter uma situação de igualdade, onde as pessoas sejam julgadas pelo mérito, independentemente da raça?
Matilde Ribeiro – O Brasil tem 507 anos. Há quase 120 anos, em 1888, foi assinado um decreto como este que o presidente assinou dizendo que não havia mais escravidão no Brasil. Só que não houve uma seqüência. Hoje, o fato de os negros e os indígenas serem os mais pobres entre os pobres é resultado de um descaso histórico. Então fica muito difícil hoje afirmar quanto tempo.
BBC Brasil – Como o Brasil se coloca no contexto internacional? O Brasil gosta de pensar que não tem discriminação e gosta de se citar como exemplo de integração. É assim que a senhora vê a situação?
Matilde Ribeiro – É o seguinte: chegaram os europeus numa terra de índios, aí chegaram os africanos que não escolheram estar aqui, foram capturados e chegaram aqui como coisa. Os indígenas e os negros não eram os donos das armas, não eram os donos das leis, não eram os donos dos bens de consumo. A forma que eles encontraram para sobreviver não foi pelo conflito explícito. No Brasil, o racismo não se dá por lei, como foi na ífrica do Sul. Isso nos levou a uma mistura. Aparentemente todos podem usufruir de tudo, mas na prática há lugares onde os negros não vão. Há um debate se aqui a questão é racial ou social. Eu diria que é as duas coisas.
BBC Brasil – E no Brasil tem racismo também de negro contra branco, como nos Estados Unidos?
Matilde Ribeiro – Eu acho natural que tenha. Mas não é na mesma dimensão que nos Estados Unidos. Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou.
BBC Brasil – Neste mês, a Grã-Bretanha comemora os 200 anos da proibição do comércio de escravos, coisa que no Brasil só aconteceu muito tempo depois. O Brasil ainda continua atrasado nesta área?
Matilde Ribeiro – Não, nós temos acompanhado os fóruns internacionais. O Brasil é um dos países mais progressistas neste aspecto de legislação e de ação efetiva. A legislação no Brasil é extremamente avançada. Não é pela via legal que o racismo acontece. O que falta é mudança de postura das pessoas. Não adianta só o governo fazer. Muito já foi feito, mas como você disse no início: alterou os índices? Ainda não, portanto temos muito a fazer.
é dos carecas que elas gostam mais?
3. FILOSOFIA POLíTICA E VIOLÃ?Å NCIA EM HANNAH ARENDT
A busca pela aproximação de um conceito de violência na filosofia política dirige-nos de
forma clara ao estudo de Hannah Arendt – Sobre a Violência (1969). Coloca-se de forma
enfática esta aproximação em face da perspectiva pela qual Arendt traduz teoricamente
suas análises sobre a violência, resguardando um espaço para a consideração da técnica
a ela relacionada.
Pode-se considerar a envergadura do estudo de Arendt, na medida em que a autora
consegue distinguir diversos conceitos, entre eles: Poder, Vigor, Força, Autoridade,
Violência. Esta preocupação com a definição clara do alcance que cada conceito deve ter
no conjunto da linguagem relacionada í filosofia política dá ao trabalho desenvolvido por
Arendt a significação de relevância para qualquer pesquisador que deseje se aproximar
do estudo da violência a partir da filosofia política.
Iremos estabelecer um diálogo com o texto de Arendt, a fim de apontar as suas
principais contribuições no que diz respeito í compreensão do conceito de violência
elaborado pela autora. Será, na medida do possível, uma análise crítica que buscará ver
os limites de suas considerações, bem como as possibilidades analíticas a partir de seus
conceitos.
Hannah Arendt demonstra em seu estudo uma grande preocupação com o nível que
alcançaram os desenvolvimentos dos implementos técnico-bélicos no século XX. “O
desenvolvimento técnico dos implementos da violência alcançou agora o ponto em que
nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de
destruição, ou justificar seu uso efetivo no conflito armado.” (Arendt, 1968;1994:13)
A autora aqui faz clara menção ao modo de operação dos conflitos do século XX (ao
menos os que envolvem diretamente potências atômicas), ou seja, a dissuasão, ou uma
“racionalidade” no uso dos meios de violência disponíveis. Arendt, ao passo que
reconhece esse elemento calculador, considera como extremamente plausível a
impossibilidade de um cálculo preciso no que diz respeito í realização da guerra, posto
que, diferentemente da lógica instrumental, as relações humanas guardam em si um
caráter indeterminado. “Visto que o fim da ação humana, distintamente dos produtos
finais da fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, os meios utilizados
para alcançar os objetivos políticos são muito freqüentemente de maior relevância para o
mundo futuro do que os objetivos pretendidos.” (Ibid, 1969;1994:14)
Sobre a questão da contingência da guerra, Arendt não acrescenta nenhuma novidade. O
que chama a atenção é que a autora encontra justificativa para que a guerra se encontre
ainda na contemporaneidade como o instrumento por excelência, sendo o último arbítrio.
Existe uma condição que separa a análise da guerra em dois pontos a serem
considerados: a guerra lenta4 (sem uso de armas de destruição em massa) e a guerra
rápida (com armas de destruição em massa). O grau de implementação técnica utilizada
no conflito leva na direção de uma imprevisibilidade das conseqüências decorrentes do enfrentamento, ou antes ainda, de todo o mecanismo que surge a partir da simples
possibilidade de que tal conflito aconteça.
Arendt apresenta sua análise sobre o modo operante das sociedades pós-segunda guerra
mundial. A racionalidade bélica torna-se impositiva entre as grandes potências que
emergiram do conflito. “O imperativo técnico [que Arendt evoca] resume-se na
proliferação irresistível de técnicas e máquinas [que], longe de ameaçar certas classes
com o desemprego, ameaça a existência de nações inteiras e, presumivelmente, de toda
a humanidade.” (Ibid, 1969/1994:22). O posicionamento teórico de Hannah Arendt sobre
a técnica aproxima-se de um enfoque instrumental, analisando basicamente as
conseqüências das implementações técnicas e não necessariamente o fundamento
técnico da sociedade contemporânea. A questão da ciência e a crença no progresso
representam para a autora elementos essenciais da contemporaneidade, entretanto, ela –
e tem-se a certeza de que não é este o seu objetivo – não se atém í discussão da
técnica moderna “em sua essência e de que forma ela ameaça o homem”.
Pode-se dizer que Arendt dá corpo í sua análise sobre a violência a partir do segundo
capítulo de seu estudo. Localiza-se neste ponto a primeira demarcação do espaço de seu
posicionamento teórico e de sua crítica em relação í noção que a filosofia política e a
sociologia possuem de violência e poder.
A análise e a distinção entre poder e violência representam o ponto de inflexão no que
diz respeito í definição dos conceitos pela filosofia política e pela sociologia. Arendt
distancia-se, dessa forma, da tradição de C. Wright Mills, para quem “toda a política é
uma luta pelo poder; a forma básica de poder é a violência”. Ou ainda de Max Weber, ao
colocar que o Estado se caracteriza “pelo uso da violência legítima”. Considera-se que a
primeira derivação de Arendt na direção de seu posicionamento teórico sobre os
conceitos de poder e violência pode ser apresentada da seguinte maneira:
De fato, uma das mais óbvias distinções entre poder e violência é a de que o poder
sempre depende dos números, enquanto a violência, até certo ponto, pode operar sem
eles, porque se assenta em implementos. (…) A forma extrema de poder é o Todos
contra Um, a forma extrema de violência é o Um contra Todos. E esta última nunca é
possível sem instrumentos. (Ibid, 1969;1994:35)
Arendt, ao lançar-se na busca pela clareza conceitual em relação aos conceitos de poder
e violência, aproxima-se de forma colateral a outros conceitos, entre eles: Vigor, Força,
Autoridade. “Penso ser um triste reflexo do atual estado da ciência política que nossa terminologia não distinga entre palavras-chave tais como “poder” [power], “vigor”
[strenght], “força” [force], “autoridade” e, por fim, violência.” (Ibid, 1969;1994:36)
Poder, para a autora, não se resume apenas na capacidade de ação de um único
indivíduo, ou na capacidade de impor uma vontade a outras. A definição de Arendt vai na
direção da composição, ou seja, o Poder emerge através da composição da relação entre
os indivíduos que resolvem agir em uníssono. “A partir do momento em que o grupo, do
qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo, sem um povo ou grupo
não há poder), desaparece, “seu poder” também se esvanece.” (Ibid, 1969;1994:36)
Para Arendt, a concordância surge como elemento essencial do político através do qual o
grupo exerce o seu poder e, na medida em que não singulariza a vontade, pelo contrário,
nasce de uma vontade coletiva que evidentemente não necessita da violência como
instrumento de imposição, posto que o poder emana do grupo que comunga da mesma
posição.
O segundo conceito sobre o qual Hannah Arendt desdobra sua análise é o de Vigor. Este
elemento conceitual surge como a emergência da singularidade, ou seja, é individual por
excelência. “A hostilidade quase instintiva dos muitos contra o único tem sido sempre
atribuída, de Platão a Nietzsche, ao ressentimento, í inveja dos fracos contra os fortes,
mas essa interpretação psicológica não atinge o alvo. É da natureza de um grupo e de
seu poder voltar-se contra a independência, a propriedade do vigor individual.” (Ibid,
1969;1994:37)
Pode-se considerar que Arendt apresenta como o mais “impróprio” dos conceitos
justamente aquele que, na maioria das vezes, é aproximado ao conceito de poder e de
violência, ou seja, a Força. O elemento central a respeito do qual Arendt expõe o
fundamento do conceito de Autoridade é o reconhecimento. A autoridade necessita de
reconhecimento, na medida em que sua aceitação é demonstrada pela relação de
obediência. A autora enfoca algumas possibilidades de investimento da autoridade.
A violência, para Arendt, é a expansão do vigor a partir da inserção de uma lógica
instrumental. Temos uma condição singular a ser pensada: o poder pode manifestar
violência, entretanto, a violência nunca poderá manifestar poder. “Onde os comandos
não são mais obedecidos, os meios de violência são inúteis; e a questão desta obediência
não é decidida pela relação de mando e obediência, mas pela opinião e, por certo, pelo
número daqueles que a compartilham. Tudo depende do poder por trás da violência.”
(Ibid, 1969;1994:39)
Existem certos limites que devemos compreender, certas nuanças sobressaem-se dessa
relação entre poder e violência. Pode-se considerar que se deve manter um mínimo de
poder naquelas condições onde tal poder não representa a maioria, ou não se estrutura
com o consentimento da maioria. Os mecanismos através dos quais a instrumentalidade
da violência ganha movimento exige a execução formal por parte de indivíduos – cabe
ressaltar que existe uma proporção inversa no que diz respeito ao grau de
implementação técnica e í necessidade de um número expressivo de indivíduos
executantes. O poder, na proporção em que não responde nem mesmo a essas condições
mínimas de pôr em movimento a instrumentalidade da violência, não se sustenta mais
como poder. “A ruptura súbita e dramática do poder que anuncia as revoluções revela
em um instante o quanto a obediência civil – í s leis, aos dominantes, í s instituições –
nada mais é do que a manifestação externa do apoio e do consentimento.” (Ibid,
1969;1994:39)
Hannah Arendt conclui que “o poder é de fato a essência de todo governo, mas não a
violência. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre
depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de
justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada.” (Ibid, 1969;1994:41)
A relação entre poder e violência não deve ser condicionada apenas í idéia de
proporcionalidade, posto que em um confronto direto entre ambos pode-se considerar
que a violência tenha, em um primeiro momento, a vantagem, já que os implementos
técnicos possuem características de velocidade e penetração, diferente dos elementos
que compõe o poder.
A preponderância da violência na política, por outro lado, gera uma condição de perpétua
instabilidade e de retornos cada vez maiores ao uso da violência, até se tornar cotidiana.
Temos a instauração do terror não existe a possibilidade de fuga da violência, pois tal
fuga necessitaria do abandono da violência como fim em si mesmo. “O terror não é o
mesmo que a violência; ele é, antes, a forma de governo que advém quando a violência,
tendo destruído todo o poder, ao invés de abdicar, permanece como controle total.”
(Ibid, 1969;1994: 43)
O animal racional e sua defesa pela ciência moderna representam para Arendt algo de
realmente perigoso. A racionalidade humana tem em si o elemento da irracionalidade; o
extremo da razão é a não-razão. De um lado, parte-se do cálculo e chega-se í
necessidade da eliminação de seres que, por ventura, em um futuro próximo, possam vir
a competir por algum bem escasso. Racionalmente, aqueles que detêm os meios de
violência mais apropriados provavelmente terão alguma vantagem nessa disputa. O ponto de desequilíbrio neste exemplo não é a razão, como parece inicialmente, mas sim
um modo específico de razão, a saber, a racionalidade técnico-científica.
Arendt reconhece a violência como uma condição “natural” do homem, desde que esta
não se desenvolva através de um cálculo preciso, ou seja, que se torne um fim em si
mesmo. “Neste sentido, o ódio e a violência que í s vezes – mas não sempre – o
acompanha pertencem í s emoções “naturais” do humano, e extirpá-las não seria mais
do que desumanizar ou castrar o homem.” (Ibid, 1969;1994:48). Estabelecer os limites
para esta humanidade parece ser algo bastante complicado para Arendt, pois a
justificativa desses limites encontra seu fundamento em qual lugar? A autora não se
preocupa necessariamente em dizer onde se situam tais justificativas, mas sim afirma
onde não devem ser buscadas.
A partir deste ponto, Hannah Arendt faz críticas í s teorias de Sorel. “Assim, muito antes
de Konrad Lorenz ter descoberto a função da agressividade como estimulante vital no
reino animal, a violência fora elogiada como uma manifestação da força vital e,
especificamente, de sua criatividade.” (Ibid, 1969;1994:52)
A compreensão que Arendt tem sobre a violência encontra certa justificativa quando são
considerados os espaços de realização e o alcance almejado no seu uso. Deve-se
considerar que o uso da violência, a partir do momento em que é relacionada
instrumentalidade, tem em si um caráter contingente, que é expresso por meio de duas
perspectivas: uma diz respeito ao fato de que as conseqüências das ações humanas
guardam uma certa imprevisibilidade; a segunda é o próprio caráter contingente dos
instrumentos técnicos. “A violência, sendo instrumental por natureza, é racional í
medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que, quando
agimos, nunca sabemos com certeza quais serão as conseqüências eventuais do que
estamos fazendo, a violência só pode permanecer racional se almejar objetivos de curto
prazo.” (Ibid, 1969;1994:58)
A ênfase que deve ser dada a partir das considerações de Hannah Arendt vai na direção
de compreender o homem como um ser político por excelência – aquele que possui a
capacidade de agir e de buscar o eterno começo de algo novo. “O que faz do homem um
ser político é sua faculdade para a ação; ela o capacita a reunir-se a seus pares, a agir
em conSerto e a almejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua
mente, deixando de lado os desejos de seu coração, se a ele não tivesse sido concedido
este dom – o de aventurar-se em algo novo.” (Ibid, 1969;1994:59)
Como conseqüência derivada desse posicionamento, nem o poder nem a violência são
fenômenos naturais compreendidos a partir da perspectiva de manifestação de um processo vital, como coloca Arendt. Ambos pertencem í esfera do político, emergem da faculdade do homem de agir e de buscar o começo, ou da sua disposição para recomeçar.
O poder e a violência – elementos da esfera política – permanecem em latência, cabendo
í emergência e í contingência das ações humanas determinarem o seu florescimento, ou
não. Estabelece-se entre o poder e a violência uma relação de exclusão; í medida que o poder aumenta, tem-se o aumento ou a manutenção da capacidade do homem de agir
em conSerto. Diminuída esta capacidade, surge a violência como recurso imediato í
manutenção da autoridade, não mais do poder. Este perdeu-se no momento em que a
instrumentalidade fez-se presente através da violência.
sobre rádios livres
o ovo e as entranhas
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Lijepa naáa domovino (Storm and Flash)
Orquestra Organism has received this week the visit of the kind croats Kruno and Tanja, who accompanied the preparatory actions forconSerto. They shared, during their short stay, fine and rare experiences upon their concepts and points of view about the world, tecnology and free & open culture. As a small token of our apreciation, Hackeando Catatau has prepared a small and anarchic photographic exhibition focusing the beautiful land of Croatia, for the delight of its visitors. All images belong to their respective authors (see links clicking on the photos) and are licensed under one or another Creative Commons,license, for each case.
A Orquestra Organismo recebeu esta semana a visita dos simpáticos croatas Kruno e Tanja, que conferiram os preparativos do Conserto e puderam partilhar, mesmo durante sua curta estada, experiências ímpares sobre seus pontos de vista sobre o mundo contemporâneo, a tecnologia e a cultura. Em homenagem a eles, o blog Hackeando Catatau preparou uma singela e relativamente anárquica mostra fotográfica sobre a bela terra da Croácia, para deleite dos seus visitantes. Todas as fotos são de titularidade de seus respectivos autores (vide links) e estão licenciadas sob uma ou outra licença Creative Commons, conforme o caso.