3. FILOSOFIA POLíTICA E VIOLÃ?Å NCIA EM HANNAH ARENDT
A busca pela aproximação de um conceito de violência na filosofia política dirige-nos de
forma clara ao estudo de Hannah Arendt – Sobre a Violência (1969). Coloca-se de forma
enfática esta aproximação em face da perspectiva pela qual Arendt traduz teoricamente
suas análises sobre a violência, resguardando um espaço para a consideração da técnica
a ela relacionada.
Pode-se considerar a envergadura do estudo de Arendt, na medida em que a autora
consegue distinguir diversos conceitos, entre eles: Poder, Vigor, Força, Autoridade,
Violência. Esta preocupação com a definição clara do alcance que cada conceito deve ter
no conjunto da linguagem relacionada í filosofia política dá ao trabalho desenvolvido por
Arendt a significação de relevância para qualquer pesquisador que deseje se aproximar
do estudo da violência a partir da filosofia política.
Iremos estabelecer um diálogo com o texto de Arendt, a fim de apontar as suas
principais contribuições no que diz respeito í compreensão do conceito de violência
elaborado pela autora. Será, na medida do possível, uma análise crítica que buscará ver
os limites de suas considerações, bem como as possibilidades analíticas a partir de seus
conceitos.
Hannah Arendt demonstra em seu estudo uma grande preocupação com o nível que
alcançaram os desenvolvimentos dos implementos técnico-bélicos no século XX. “O
desenvolvimento técnico dos implementos da violência alcançou agora o ponto em que
nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de
destruição, ou justificar seu uso efetivo no conflito armado.” (Arendt, 1968;1994:13)
A autora aqui faz clara menção ao modo de operação dos conflitos do século XX (ao
menos os que envolvem diretamente potências atômicas), ou seja, a dissuasão, ou uma
“racionalidade” no uso dos meios de violência disponíveis. Arendt, ao passo que
reconhece esse elemento calculador, considera como extremamente plausível a
impossibilidade de um cálculo preciso no que diz respeito í realização da guerra, posto
que, diferentemente da lógica instrumental, as relações humanas guardam em si um
caráter indeterminado. “Visto que o fim da ação humana, distintamente dos produtos
finais da fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, os meios utilizados
para alcançar os objetivos políticos são muito freqüentemente de maior relevância para o
mundo futuro do que os objetivos pretendidos.” (Ibid, 1969;1994:14)
Sobre a questão da contingência da guerra, Arendt não acrescenta nenhuma novidade. O
que chama a atenção é que a autora encontra justificativa para que a guerra se encontre
ainda na contemporaneidade como o instrumento por excelência, sendo o último arbítrio.
Existe uma condição que separa a análise da guerra em dois pontos a serem
considerados: a guerra lenta4 (sem uso de armas de destruição em massa) e a guerra
rápida (com armas de destruição em massa). O grau de implementação técnica utilizada
no conflito leva na direção de uma imprevisibilidade das conseqüências decorrentes do enfrentamento, ou antes ainda, de todo o mecanismo que surge a partir da simples
possibilidade de que tal conflito aconteça.
Arendt apresenta sua análise sobre o modo operante das sociedades pós-segunda guerra
mundial. A racionalidade bélica torna-se impositiva entre as grandes potências que
emergiram do conflito. “O imperativo técnico [que Arendt evoca] resume-se na
proliferação irresistível de técnicas e máquinas [que], longe de ameaçar certas classes
com o desemprego, ameaça a existência de nações inteiras e, presumivelmente, de toda
a humanidade.” (Ibid, 1969/1994:22). O posicionamento teórico de Hannah Arendt sobre
a técnica aproxima-se de um enfoque instrumental, analisando basicamente as
conseqüências das implementações técnicas e não necessariamente o fundamento
técnico da sociedade contemporânea. A questão da ciência e a crença no progresso
representam para a autora elementos essenciais da contemporaneidade, entretanto, ela –
e tem-se a certeza de que não é este o seu objetivo – não se atém í discussão da
técnica moderna “em sua essência e de que forma ela ameaça o homem”.
Pode-se dizer que Arendt dá corpo í sua análise sobre a violência a partir do segundo
capítulo de seu estudo. Localiza-se neste ponto a primeira demarcação do espaço de seu
posicionamento teórico e de sua crítica em relação í noção que a filosofia política e a
sociologia possuem de violência e poder.
A análise e a distinção entre poder e violência representam o ponto de inflexão no que
diz respeito í definição dos conceitos pela filosofia política e pela sociologia. Arendt
distancia-se, dessa forma, da tradição de C. Wright Mills, para quem “toda a política é
uma luta pelo poder; a forma básica de poder é a violência”. Ou ainda de Max Weber, ao
colocar que o Estado se caracteriza “pelo uso da violência legítima”. Considera-se que a
primeira derivação de Arendt na direção de seu posicionamento teórico sobre os
conceitos de poder e violência pode ser apresentada da seguinte maneira:
De fato, uma das mais óbvias distinções entre poder e violência é a de que o poder
sempre depende dos números, enquanto a violência, até certo ponto, pode operar sem
eles, porque se assenta em implementos. (…) A forma extrema de poder é o Todos
contra Um, a forma extrema de violência é o Um contra Todos. E esta última nunca é
possível sem instrumentos. (Ibid, 1969;1994:35)
Arendt, ao lançar-se na busca pela clareza conceitual em relação aos conceitos de poder
e violência, aproxima-se de forma colateral a outros conceitos, entre eles: Vigor, Força,
Autoridade. “Penso ser um triste reflexo do atual estado da ciência política que nossa terminologia não distinga entre palavras-chave tais como “poder” [power], “vigor”
[strenght], “força” [force], “autoridade” e, por fim, violência.” (Ibid, 1969;1994:36)
Poder, para a autora, não se resume apenas na capacidade de ação de um único
indivíduo, ou na capacidade de impor uma vontade a outras. A definição de Arendt vai na
direção da composição, ou seja, o Poder emerge através da composição da relação entre
os indivíduos que resolvem agir em uníssono. “A partir do momento em que o grupo, do
qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo, sem um povo ou grupo
não há poder), desaparece, “seu poder” também se esvanece.” (Ibid, 1969;1994:36)
Para Arendt, a concordância surge como elemento essencial do político através do qual o
grupo exerce o seu poder e, na medida em que não singulariza a vontade, pelo contrário,
nasce de uma vontade coletiva que evidentemente não necessita da violência como
instrumento de imposição, posto que o poder emana do grupo que comunga da mesma
posição.
O segundo conceito sobre o qual Hannah Arendt desdobra sua análise é o de Vigor. Este
elemento conceitual surge como a emergência da singularidade, ou seja, é individual por
excelência. “A hostilidade quase instintiva dos muitos contra o único tem sido sempre
atribuída, de Platão a Nietzsche, ao ressentimento, í inveja dos fracos contra os fortes,
mas essa interpretação psicológica não atinge o alvo. É da natureza de um grupo e de
seu poder voltar-se contra a independência, a propriedade do vigor individual.” (Ibid,
1969;1994:37)
Pode-se considerar que Arendt apresenta como o mais “impróprio” dos conceitos
justamente aquele que, na maioria das vezes, é aproximado ao conceito de poder e de
violência, ou seja, a Força. O elemento central a respeito do qual Arendt expõe o
fundamento do conceito de Autoridade é o reconhecimento. A autoridade necessita de
reconhecimento, na medida em que sua aceitação é demonstrada pela relação de
obediência. A autora enfoca algumas possibilidades de investimento da autoridade.
A violência, para Arendt, é a expansão do vigor a partir da inserção de uma lógica
instrumental. Temos uma condição singular a ser pensada: o poder pode manifestar
violência, entretanto, a violência nunca poderá manifestar poder. “Onde os comandos
não são mais obedecidos, os meios de violência são inúteis; e a questão desta obediência
não é decidida pela relação de mando e obediência, mas pela opinião e, por certo, pelo
número daqueles que a compartilham. Tudo depende do poder por trás da violência.”
(Ibid, 1969;1994:39)
Existem certos limites que devemos compreender, certas nuanças sobressaem-se dessa
relação entre poder e violência. Pode-se considerar que se deve manter um mínimo de
poder naquelas condições onde tal poder não representa a maioria, ou não se estrutura
com o consentimento da maioria. Os mecanismos através dos quais a instrumentalidade
da violência ganha movimento exige a execução formal por parte de indivíduos – cabe
ressaltar que existe uma proporção inversa no que diz respeito ao grau de
implementação técnica e í necessidade de um número expressivo de indivíduos
executantes. O poder, na proporção em que não responde nem mesmo a essas condições
mínimas de pôr em movimento a instrumentalidade da violência, não se sustenta mais
como poder. “A ruptura súbita e dramática do poder que anuncia as revoluções revela
em um instante o quanto a obediência civil – í s leis, aos dominantes, í s instituições –
nada mais é do que a manifestação externa do apoio e do consentimento.” (Ibid,
1969;1994:39)
Hannah Arendt conclui que “o poder é de fato a essência de todo governo, mas não a
violência. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre
depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de
justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada.” (Ibid, 1969;1994:41)
A relação entre poder e violência não deve ser condicionada apenas í idéia de
proporcionalidade, posto que em um confronto direto entre ambos pode-se considerar
que a violência tenha, em um primeiro momento, a vantagem, já que os implementos
técnicos possuem características de velocidade e penetração, diferente dos elementos
que compõe o poder.
A preponderância da violência na política, por outro lado, gera uma condição de perpétua
instabilidade e de retornos cada vez maiores ao uso da violência, até se tornar cotidiana.
Temos a instauração do terror não existe a possibilidade de fuga da violência, pois tal
fuga necessitaria do abandono da violência como fim em si mesmo. “O terror não é o
mesmo que a violência; ele é, antes, a forma de governo que advém quando a violência,
tendo destruído todo o poder, ao invés de abdicar, permanece como controle total.”
(Ibid, 1969;1994: 43)
O animal racional e sua defesa pela ciência moderna representam para Arendt algo de
realmente perigoso. A racionalidade humana tem em si o elemento da irracionalidade; o
extremo da razão é a não-razão. De um lado, parte-se do cálculo e chega-se í
necessidade da eliminação de seres que, por ventura, em um futuro próximo, possam vir
a competir por algum bem escasso. Racionalmente, aqueles que detêm os meios de
violência mais apropriados provavelmente terão alguma vantagem nessa disputa. O ponto de desequilíbrio neste exemplo não é a razão, como parece inicialmente, mas sim
um modo específico de razão, a saber, a racionalidade técnico-científica.
Arendt reconhece a violência como uma condição “natural” do homem, desde que esta
não se desenvolva através de um cálculo preciso, ou seja, que se torne um fim em si
mesmo. “Neste sentido, o ódio e a violência que í s vezes – mas não sempre – o
acompanha pertencem í s emoções “naturais” do humano, e extirpá-las não seria mais
do que desumanizar ou castrar o homem.” (Ibid, 1969;1994:48). Estabelecer os limites
para esta humanidade parece ser algo bastante complicado para Arendt, pois a
justificativa desses limites encontra seu fundamento em qual lugar? A autora não se
preocupa necessariamente em dizer onde se situam tais justificativas, mas sim afirma
onde não devem ser buscadas.
A partir deste ponto, Hannah Arendt faz críticas í s teorias de Sorel. “Assim, muito antes
de Konrad Lorenz ter descoberto a função da agressividade como estimulante vital no
reino animal, a violência fora elogiada como uma manifestação da força vital e,
especificamente, de sua criatividade.” (Ibid, 1969;1994:52)
A compreensão que Arendt tem sobre a violência encontra certa justificativa quando são
considerados os espaços de realização e o alcance almejado no seu uso. Deve-se
considerar que o uso da violência, a partir do momento em que é relacionada
instrumentalidade, tem em si um caráter contingente, que é expresso por meio de duas
perspectivas: uma diz respeito ao fato de que as conseqüências das ações humanas
guardam uma certa imprevisibilidade; a segunda é o próprio caráter contingente dos
instrumentos técnicos. “A violência, sendo instrumental por natureza, é racional í
medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que, quando
agimos, nunca sabemos com certeza quais serão as conseqüências eventuais do que
estamos fazendo, a violência só pode permanecer racional se almejar objetivos de curto
prazo.” (Ibid, 1969;1994:58)
A ênfase que deve ser dada a partir das considerações de Hannah Arendt vai na direção
de compreender o homem como um ser político por excelência – aquele que possui a
capacidade de agir e de buscar o eterno começo de algo novo. “O que faz do homem um
ser político é sua faculdade para a ação; ela o capacita a reunir-se a seus pares, a agir
em conSerto e a almejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua
mente, deixando de lado os desejos de seu coração, se a ele não tivesse sido concedido
este dom – o de aventurar-se em algo novo.” (Ibid, 1969;1994:59)
Como conseqüência derivada desse posicionamento, nem o poder nem a violência são
fenômenos naturais compreendidos a partir da perspectiva de manifestação de um processo vital, como coloca Arendt. Ambos pertencem í esfera do político, emergem da faculdade do homem de agir e de buscar o começo, ou da sua disposição para recomeçar.
O poder e a violência – elementos da esfera política – permanecem em latência, cabendo
í emergência e í contingência das ações humanas determinarem o seu florescimento, ou
não. Estabelece-se entre o poder e a violência uma relação de exclusão; í medida que o poder aumenta, tem-se o aumento ou a manutenção da capacidade do homem de agir
em conSerto. Diminuída esta capacidade, surge a violência como recurso imediato í
manutenção da autoridade, não mais do poder. Este perdeu-se no momento em que a
instrumentalidade fez-se presente através da violência.