Arte e conhecimento tecnológico compartilhados (1)
A coisa
Um poster retrabalhado com pinturas, rabiscos, grafite, escritos, anotações, colagens e agregações de dispositivos eletrônicos e computacionais. Esse som é um mistério: produção em série, um trabalho de Glerm Soares, do coletivo Orquestra Organismo.
As partes mais evidentemente tecnológicas compõem um hardware dedicado a áudio, uma pequena placa com os componentes de um microprocessador, ao qual somam-se um alto-falante, uma bateria, um joystick e seus respectivos cabos de conexão. Ligada, a obra repetidamente pronuncia a frase: “produção em série”. Uma fala maquinal, soando estranha e indefinida nos primeiros momentos, parecendo também dizer outros enunciados, como: “começou o ensaio”. Não há um player onde se acoplaria uma mídia avulsa analógica ou digital. O áudio modulado em números está gravado na memória do próprio hardware.
Aparência; o além da imagem; os layers de conceito; interfaces entre arte e tecnologia.
Na apreensão visual imediata, a plasticidade espontânea, caótica, expressiva e eclética sobreposta í imagem de um poster (2). Aparências e vínculos de conteúdo com a imagética dadaísta, fluxista, psicodélica, cyberpunk.
A rastreabilidade de contextos – lastros interpretativos – com cada elemento visual da colagem e suas interconexões de significados passam longe de uma leitura linear, há tramas de linguagem intencionais, outras casuais, e algumas soldas entre elas (3). Não se trata de uma espontaneidade somente lírica ou gestual: o quadro é o receptáculo de um turbilhão de idéias. É simultaneamente uma crítica cultural aos saberes e fazeres tecnológicos subservientes í indústria capitalista e também uma explícita ironia í arte da pintura, especialmente aquela que quer se restringir, ainda hoje, ao exclusivo jogo da linguagem visual.
As idéias sobrepujam qualquer busca do belo, equilíbrio compositivo, qualquer referência restrita ao campo das artes visuais. O diálogo com a tradição da pintura e/ou da “Arte ocidental” ocorre na freqüência anti-arte. Arte de contra-cultura, subversiva. Há um repertório de anti-arte dentro da história da arte; se buscarmos algum campo de afinidade, esse é um deles.
Outro contexto afim é a arte conceitual, entretanto, num viés diferente da tradição que privilegia a escrita (como Joseph Kosuth), e num caminho também distinto do conceitual que materializa-se organizada e sinteticamente em objetos e instalações, com suas imanências de significados culturais (como Cildo Meireles). O conceitual aqui é de aparência e consistência cumulativa e caótica. Se Catatau é o tupiniquim Finnegans Wake joyciano, leminskiano, imagine Hackeando catatau: “a justa razão aqui delira”, outra vez. Hackear Catatau diz muito sobre a filosofia do proceso em questão. Diz algo, ao menos; e mais pode ser encontrado no site homônimo do coletivo na internet. Uma tendência contemporânea essa, a da aleatória disponibilização de dados, onde os contextos acessados continuam agrupados em camadas entrópicas de informação, num denso subsolo disponível para diferentes percursos a serem trilhados por novos exploradores. Navegação intersemiótica aberta, curadoria do usuário, busca motivada pelo desejo do momento, tendências de afinidade agrupadas por inteligência artificial após uma ignição de escolha humana. Em meio a narrativas, interpretações e contextos que continuam sendo necessários de serem revisitados, reinventados, organizados e produzidos no espaço/tempo contemporâneo, para que a vida não fique confinada nas freqüências dos ventríloquos do discurso oficial, as possibilidades mais anárquicas de comunicação também reinvindicam seu modo de existir. Hackear Catatau, “pois”…
O ambiente transdiciplinar associado í s relações entre arte e ciência evidenciam outra área de interesse. Os antecedentes históricos e possíveis campos relacionais são muitos, entre artistas, acontecimentos e teorias. Leonardo da Vinci, László Moholy-Nagy, Bauhaus, Jean Tinguely, Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro, Eduardo Kac, Corpos Informáticos, Paulo Bruscky, Vilém Flusser, etc. Para Glerm, Lúcio Araújo e Simone Bittencourt, parceiros de mais longa data entre os componentes da Orquestra Organismo (4), talvez parte dessas referências – as mais focadas no campo das artes plásticas – não sejam tão fundamentais em suas trajetórias, visto que o percurso do grupo origina-se na música (Boi Mamão, Estúdio Matema, Vitoriamario, Rádio Macumba e Malditos ícaros do Microcosmos), caminho ao longo do qual foram incorporando o instrumental e a sonoridade eletrônica (5). Daí para a busca do entendimento das lógicas funcionais e de produção dos instrumentos foi um passo. E uma jornada ainda em curso. Isso sem falar nas investidas de aprendizagem nas áreas da matemática, antropologia e psicologia. Entre referenciais e repertórios de influências musicais do grupo, outros e muitos são os nomes que transitam por suas memórias (ver entrevista abaixo). E no campo das investigações computacionais e da comunicação pela internet, pesquisadores e ativistas como Richard Stallman, Linus Torvalds, Tim Berners são presenças muito mais próximas e intensas que a de artistas visuais. Agora tudo se mistura novamente, a mixagem se amplia: música, ciência da computação, crítica cultural, artes plásticas: Interfaces.
Pensando os pensamentos, ainda: os acumulados, os escritos, e, inclusive, os anunciados através dos objetos e suas imanências de valor cultural, funcionalidades e re-funcionalidades ali na obra aplicadas. Esses pensamentos sobreagregados focam na crítica do establishment da sociedade contemporânea – com sua lógica de produção em massa, mecanicista e alienada, que aniquila as subjetividades dos indivíduos. Esses pensamentos críticos não são colocados somente como tema ou referência, eles são também matéria e linguagem. Eles propõem também uma conduta: o sujeito, além de usuário e consumidor das tecnologias contemporâneas, pode e deveria ser, simultaneamente, um entendedor, experimentador e/ou desenvolvedor criativo da ciência, em seu próprio cotidiano (ao menos na relação com instrumentos tecnológicos dos quais faz uso, o que já não seria pouco). No âmbito da ciência da computação, essa atitude converge para as políticas ciberatisvistas, propagadoras da inclusão digital, da cultura dos códigos livres e da humanização das máquinas, principalmente através das atuações das comunidades de software e hardware livre. A ciência e a tecnologia a serviço de uma vida mais criativa e libertária, ao invés de sua aplicação hegemônica na atualidade, sendo ferramenta para desenvolvimento de produtos para competição capitalista, concentração de poder e riquezas, exclusão social, fomento í guerra. Mesmo sabendo-se uma pequena peça quase imperceptível no meio da grande engrenagem, a obra Esse som é um mistério: produção em série vislumbra uma outra humanidade, não vitimada por uma de suas criações, a tecnologia. Como parte dessa grande engrenagem, a obra é, por um lado, objeto de sabotagem largado em meio í máquina, desejando e incidindo no colapso total do macrossistema. E por outro lado, é proposição recodificante de atuação prática coletiva. Assim, na síntese de desejos, pensamentos e materialidades, a obra é também um manifesto.
Conhecimento tecnológico compartilhado
ou
desalienação do circuito de produção tecnológica
ou
desideologização do capitalismo inserido nos circuitos industriais de produção tecnológica
“Não há um player onde se acoplaria uma mídia avulsa analógica ou digital. O áudio modulado em números está gravado na memória do próprio hardware”. Esse som é um mistério: produção em série é uma obra específica, singular. Condensa conhecimento e é protótipo de um fazer tecnológico. Incidindo sobre si mesmo, como pensamento redundante, autocrítico, e sendo ao mesmo tempo exemplo de artesania computacional e experiência criativa, o trabalho é crítica da cultura contemporânea, conhecimento tecnológico compartilhado, objeto cultural anti-industrial, desalienação do circuito de produção tecnológica, desmistificação da tecnologia. É uma deseideologização do capitalismo inserido nos circuitos industriais de produção tecnológica, fazendo aqui analogia í proposta Insersões em Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-cola, de Cildo Meireles (6):
“Por pressuposto, a arte teria uma função social e teria mais meios de ser densamente consciente. Maior densidade de consciência em relação í sociedade da qual emerge. E o papel da indústria é exatamente o contrário disso. Tal qual existe hoje, a força da indústria se baseia no maior coeficiente possível de alienação. Então as anortações sobre o projeto “Inserções em circuitos ideológicos” opunham justamente arte í indústria.”
Se em Cildo o projeto caracteriza-se na identificação de um circuito idustrial (e alienante) no qual a inserção (consciência) age num processo subversivo, em Esse som é um mistério: produção em série, há a tomada de consciência e compartilhamento dos saberes da produção tecnológica, o que, dentro da lógica vigente, já é ação subversiva (bastaria lembrar algumas das práticas das grandes corporaões empresariais: controle de patentes, segredo industrial, domínio de mercado, segmentação alienada das etapas do trabalho, produção e consumo em larga escala, etc). Há ainda o convite í participação, o “insira algo no circuito”. Com essa chamada, a noção de circuito evoca outros dois sentidos: o circuito eletrônico específico do trabalho e o circuito do conhecimento compartilhado, construído nas redes relacionais entre pessoas, na participação, na articulação de circuitos artísticos autodependentes. Em Cildo a participação é também base para a potencializar a ação.
Considerando as questões tocadas pelo trabalho específico, e, genericamente, as produções do coletivo Orquetra Organismo, pontes reflexivas poderiam ser construídas sobre a questão arte e tecnologia, reprodutibilidade técnica, produção em série. Haveria um repertório de negação a ser acessado quando esses conteúdos fossem associados í estratégia pop de Andy Warhol, replicante de imagens da indústria, inclusive da indústria cultural, talvez irônico em algum sentido, certamente bastante condenscendente com o status quo, inclusive pela forma e conteúdos com os quais construía sua própria carreira e imagem pública. Por outro lado, surgiriam afinidades com a teoria de Walter Benjamin, por exemplo, ao aproximarmos as estratégias de veiculação e participação pela internet empreendidas pela Orquestra Organismo a alguns apontamentos de Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (7), no sentido da potencialização política oportunizada pela maior circulação de uma obra de arte reproduzida tecnicamente. O que também confluiria afirmativamente para ideários comuns é a vontade do envolvimento entre artistas, técnicos e comunidade, num processo coletivo, inclusivo, e focado no compartilhamento de saberes, como nas reflexões do texto O artista como produtor (8). E muitas outras conexões teórico/práticas poderiam ser feitas. Arte, ciência e tecnologia proporcionam um campo transdiciplinar para a investigação contemporânea, seja do presente ou do passado, em seus diferentes contextos.
Os comentários aqui elaborados poderiam estender-se para outras obras realizadas por Glerm Soares, assim como para outros trabalhos do coletivo Orquestra Organismo, o Toscolão, o manto polifônico, o painel eletrônico Não ouse amar o erro… Tendo a obra a dimensão de um manifesto dentro de si, o reverso de um comentário específico pode também se dar: falar sobre a obra é também falar sobre as produções do grupo, ainda que cada investigação tenha campos específicos de experimento tecnológico.E daí em diante, seria também falar sobre o ideário de outros grupos afins, como o Estúdio Livre, o Descentro, o Ystilingue. E falar de parte de uma cena do ativismo cultural contemporâneo, cujo ambiente de atuação é também uma interface entre grupos de autogestão de artistas e ciberativistas.
Aquele poster que serviu de suporte e base para a apropriação e reciclagem – lixo encontrado numa rua de Curitiba (trash object trouvé) – também pode tornar-se alvo num sentido crítico similar ao dito sobre a alienação dos processos industriais capitalistas, a tal “produção em série”. O referido poster pop serial é imagem esteriotipada reproduzida em série. A própria busca de estilo, no campo da arte, é algo fadado í alienação, í repetição de padronagens de pensamentos e formas, fórmulas, artesanato cerebral: “o estilo, seja das mãos, seja da cabeça (do raciocínio), é uma anomalia” (9). O serial nesse caso seria a estereotipação dos pensamentos e dos sentidos levado í escala de múltiplo; num contexto bastante diverso daqueles desejos libertáros impactantes visualisados por Benjamin ao argumentar sobre a arte reproduzível tecnicamente. O estilo, a subserviência ao mercado de arte e a crença de que arte é produto blindado a seu entorno social formam as bases do trabalho de arte anestesiado e alienado. Muito além da visualidade, o artista opera, através da linguagem, sobre as lógicas dos acontecimentos culturais, sobre o imaginário coletivo. Diferente de atrofiar-se no estilo individual e na podução em série, o artista expande-se no compartilhamento de consciência crítica, sensorial e afetiva. Mais engajamento com a vida e a liberdade, essas são algumas das bases psíquicas e comportamentais do trabalho do artista, alguns de seus desejos, em qualquer época. As utopias continuam a existir. Esse som é um mistério, como a vida.
Mamelucovich, Cachoeira dos Descartógrafos, ano do boi.
NOTAS
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(http://arduino.ccâË?ž)
Este último com incursão pelo terreno dramaturgico com a peça Malditos somos nós tentando ser nós mesmos…
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http://www.estudiolivre.org/tiki-index.php?page=NavalhaâË?ž
Mamelucovich