A Justa Razão Aqui Delira

Roteiro dramatúrgico. Fragmentos do Catatau.

As 4 moradas do Palácio da Espada
Primeira edição, pg 17-18

“Mal emerso dos brincos em que consome puerí­cia seus dias, dei me ao florete, os exercí­cios da espada absorviam-me inteiros. Mestres suguei escolados na arte. Meu pensamento laborava lâminas dia e noite, posturas e maneios, desgarrado numa selva de estoques, florete colhendo as flores do ar. Habitei os diversos aposentos das moradas do palacio da espada . O primeiro florete que te cai na mão exibe o peso de todas as confusões, o ônus de um ovo, estertores de bicho, e uma lógica que cinco dedos adivinham. Nos florilégios de posturas das primeiras práticas, Vossa Mercê é bom. A espada se dá, sua mão florece naturalmente em florete, primavera a flor da pele. Todavia de repente o florete vira e te morde na mão. Não há mais acerto; Vossmercê não se acha mais naquele labirinto de posições, talhos, estocadas, altabaixos, pontos e formas. Passa-se a onde o menos que acontece é o dar-se meiavolta e lançar de si o florete: abre-se um abismo entre a mão e a espada. Agora convém firmeza. Muitos desandam, poucos perseveram. Vencido este lanço, a prática verdadeira começa. É a segunda morada do palácio: muitos trabalhos, pouca consolação. Aí­ o florete já é instrumento. Longo dura. Um dia, longe da espada, a mão se contorce no seu entender e pega a primeira ponta do fio, a Lógica. Vosmecê já é de casa, acesso í  quarta morada. A conversação com o estilete é sem reservas. O próprio desta morada é o minguado pensar: uma geometria, o mí­nimo de discurso. Tem a mão a espada como a um ovo, os dedos tão frouxos que o não quebrem e tão firmes que não caia. De que o mí­nimo destino contempla vosmecê e a espada – você se inteira: inteiro está agora. Aqui se multiplicam corredores, quod vitae sectabor iter? No concernente í  minha pessoa, escolhi errado: dei em pensar que eu era a espada e desvairar em não precisar dela. As luzes do entendimento bruxuleavam. Não estava longe a medicina dos meus males. Compus o papel de esgrima em que meti a palavreado o resultante de minha indústria passada. O texto escrito, não mais me entendi naquela artimanha. Em idade de milí­cia pus então minha espada a serviço de prí­ncipes, – estes gêmeos e os Heeren da Companhia das índias. Larguei de floretes para pegar na pena, e porfiam discretos se a flor ou a pluma nos autorizam mais as eternidades da memória. Hoje já não florescem mais em minha mão. Meti números no corpo e era esgrima, números nas coisas e era ciência, números no verbo e era poesia. Ancorei a a cabeça cheia de fumaça no mar deste mundo de fumos onde morrerei de tanto olhar. Julgar dói?”

Escudo
Primeira edição, pg 1

“Ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aquí­ presente, neste labirinto de enganos deleitáveis – vejo o mar, vejo a baí­a e vejo as naus. Vejo mais. Já lá vão anos III me destaquei de Europa e a gente civil, lá morituro. Isso de “barbarus – non intellegor ulli” – dos exercí­cios de exilio de Ovidio é comigo. Do parque do prí­ncipe, a lentes de luneta, contemplo a considerar o cais, o mar, as nuvens, OS ENIGMAS e OS PRODíGIOS de BRASILIA. ”

O deus-máquina
Primeira edição, pg 18-19

“Maquinas vi incrí­veis: O espelho ustator, a eolipila de Athanasius Kircher. A luz de cí­rios e candeias um cone capta a incidir num cí­rculo de vidro com desenhos í  maneira de zodí­aco, o feixe de luz desenrolando a imagem por sobre uma parede branca: Padre Athanasius aciona a roda para dar vida ao movimento, almas agitam braços frenéticos entre as chamas do inferno ou os eleitos giram em torno do Pai, – lanterna mágica a coar sombras na caverna platônica. Que dizer da engenhoca daquele tal de Pascal, cuja só menção é maravilha e pasmo das gentes? A pedido da Academia de Ciências, submeti o labirinto de peças e miuçalhas que dedilhadas calculam a todos os rigores do escrutí­nio: experimentei-lhe a eficácia todo um dia e não se enganou uma só vez. Bizarros tempos estes em que uma fábrica pouco maior que caixinha de música faz o ofí­cio do entendimento humano! O relógio de Lanfranco Fontana está entre os dédalos máximos que os intelectos dessa era quimerizando puderam arquitetar: não contente em mostrar e soar as horas, acusa o movimento dos planetas e adivinha eclipses. Lidei com a obstinação da agulha magnética contra o Norte, perseguindo um meridiano. Outras calo para não alarmar o mundo das várias que temo um dia nos cerquem. Máquina considerado este corpo, Leonardo, aquele engenho tão agudo quanto artí­fice sutilí­ssimo não compôs um autômato semovente í  maneira de humano? Dia virá em que se ponham altares a um deus-máquina, – Deus, a máquina de uma só peça. Estas bestas fazem qualquer coisa das máquinas de que falo: Qual a finalidade destas arquiteturas tortas? Provocar-me pasmo, maravilha ou riso?”

interrogatório
Primeira edição, pg 132

“E pelo muito que lhe perguntaram respondeu que sim afirmativamente dando a entender por sons e ademanes que tal ato praticara e por mais não dizer foi lhe perguntado e quantas vezes e ele respondeu também por sons e ademanes que não sabia dizer ao certo quantas vezes tal ato praticara e assim o entendemos todos que não sabia quantas vezes o tal ato praticara e sabia que tal ato praticara pois com palavras e ademanes respondera que sim afirmativamente e disse sim e não negou negativamente mas respondeu sim positivamente e assim o entendemos todos pelo muito claro de seus sons e ademanes”

Autobiografia
Primeira edição, pg 15-16

“Desde verdes anos, tentaram me o eclipse e a economia dos esquemas. Exí­mio dos mais hábeis nos manejos de ausências, busquei apoio nos últimos redutos do zero. Foi a época que eu mais prestigiei o silêncio, o jejum e o não. Você sabe com quem está falando? Cultivei meu ser, fiz me pouco a pouco: constituí­-me. Letras me nutriram desde a infância, mamei nos compêndios e me abeberei das noções das nações. Compulsei í­ndices e consultei episódios. Desatei o nó das atas, manuseei manuais e vasculhei tomos. Olho noturno e diurno, palmilhei as letras em estradas: tropecei nas ví­rgulas, caí­ no abismo das reticências, jazi nos cárceres dos parênteses, rolei a mó das maiúsculas, emagreci o nó górdio das interrogações, o florete das exclamações me transpassou, enchi de calos a mão fidalga torcendo páginas. Em decifrar enigmas, fui Édipo; em rolar cogitações, Sí­sifo; em multiplicar folhas pelo ar, Outono. Freqüentei guerras e arraiais; assí­duo no adro das basí­licas, crusei mares, pisei o pau dos navios, o mármore dos passos e a cabeça das cobras. Estou com Parmênides, fluo com Heráclito, transcendo com Platão, gozo com Epicuro, privo-me estoicamente, duvido com Pirro e creio em Tertuliano, porque é mais absurdo. Lanterna í  mão, bati í  porta dos volumes mendigando-lhes o senso. E na noite escura das bibliotecas iluminava-me o céu a luz dos asteriscos. Matei um a um os bichos da bí­lblia. Me dixit magister quod ipsi magistri dixerunt:”

Sinópse
Primeira edição, pg 101

“Num ouvido escrito: ENTRADA, noutro ouvido escrito: SAíDA”

Torre de Vrijburg
Segunda edição (Sulina), pg 34

“Preserva-se do real numa turris ebúrnea; o real vem aí­, o real está para chegar, eis o advento! Vrijburg defende-se, se defendam vrijburgueses, o cerco aperta, alerta, alarde, alarme, atalaia! Todo o tiro é susto, todo fumo – espanto, todo cuidado – pouco caso. Vem nos negros dos quilombos, nas naus dos carcamanos, na cara destes bichos: basiliscos brasilicos queimam a cana, entre as chamas passando pendôes. Cairás, torre de Vrijburg, de grande ruí­na. Passeio entre cobras e escorpiões meu calcanhar de Aquino, caminhar de Aquiles. E essa torre da Babel do orgulho de Marcgravf e Spix, pedra sobre pedra não ficará, o mato virá sobre a pedra e a pedra a espera da treva fica podre e vira hera a pedra que era… A confusão das lí­nguas não deixa margem para o rio das dúvidas banhar a ouro e verde as esperanças dos planos de todos nós: as tábuas de eclipses de Marcgravf não entram em acordo com as de Grauswinkel; Japikse pensa que é macaco o aí­ que Rovlox diz fruto dos coitos danados de toupinamboults e tamanduás; Grauswinkel, perito nas manhas dos corpos celestes, nas manchas do sol e outras raridades urânicas é um lunático; Spix, cabeça de selva, onde uma aiurupara está pousada em cada embuayembo, uma aiurucuruca, um aiurucurau, uma aiurucatinga, um tuim, uma tuipara, uma tuitirica, uma arara, uma araracá, uma araracã, um araracanga, uma araraúna, em cada galho do catálogo de caapomonga, caetimay, taioia, ibabiraba, ibiraobi! Viveiro? Isso está tudo morto! Por eles, as árvores já nasciam com o nome em latim na casca, os animais com o nome na testa dentro da moda que a besta do apocalipse lançou com uma dí­zima periódica por diadema, cada homem já nascia escrito em peito o epitáfio, os frutos brotariam com o receituário de suas propriedades, virtudes e contraindicações. Esse é emético, esse é diurético, esse é antisséptico, laxante, dispéptico, adstringente, isso é letal.”

12 comments

  1. Bem que merecer�­amos um arquivo de �¡udio com a Claudete dando esta fala. Vamos fazer e disponibilizar?

  2. Solda:
    Voc�ª tem como escanear a capa e a contracapa da primeira edi�§�£o do Catatau? Estou sem scanner e gostaria de subi-las para o blog nesta postagem.

  3. Eu estou usando na minha interven�§�£o uma fala da p�¡gina 75 da �ºltima edi�§�£o. Depois eu digito o trecho.

  4. Oct�¡vio:

    Minhas primeiras edi�§�µes do Catatau se tansformaram em um s�³, sem a p�¡gina com o aut�³grafo e a capa do Miran.
    Se conseguirmos um volume razoavelmente conservado (as rasuras do tempo s�£o provas da exist�ªncia e do manuseio do imenso Catatau)
    faremos o que voc�ª quiser.

  5. Credo quia absurdum – “creio porque Ã?© absurdo”.

    TERTULIANO, (Cartago, c. 155 – id., c. 220) A frase acima referia-se Ã?  crenÃ?§a no cristinanismo.

  6. as cita�§�µes acima s�£o referentes � s p�¡ginas 81 e 82 do meu exemplar catat�´nico que comprei num sebo, neste a p�¡gina foi brutalmente arrancada.

  7. Tenho a primeira edi�§�£o com capa e contra capa, quebrada no meio para leitura horizontal. Levo onde houver scanner.

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