por John Holloway
(Transcrição de palestra proferida em Roma, abril de 2006)
“Vozes de resistência: vozes alternativas”. Quais são as nossas vozes? Nossas vozes são as vozes da crise do trabalho abstrato. Nós somos a crise do trabalho abstrato. Nós somos o poder do fazer criativo.
Nós somos a crise. Não somos em primeiro lugar uma força positiva, mas negativa. O que nos traz aqui hoje não é algo positivo que temos em comum, mas o Não que todos compartilhamos. Não ao capitalismo, não a um mundo de violência e exploração, não a uma forma de organização social que está literalmente destruindo a humanidade, em todos os sentidos da palavra. Não a um mundo no qual o que fazemos é determinado por forças que não controlamos. áYa basta! Mas este áya basta!, esta recusa, não fica fora do capital, ela vai direto ao coração do capital, simplesmente porque o capital depende de nossos olhos, de nossa aceitação, de nossa concordância em trabalhar e criar valor, de nossa reprodução da obscenidade que nos rodeia. Nosso NÃO é um não com força, simplesmente porque a existência do capital depende do nosso dizer sim. Nosso NÃO é a crise endêmica do capital.
Nós somos NÃO, nós somos negatividade, nós somos a crise do capital. Mas somos mais do que isso. Nós somos a crise daquilo que produz o capital, a crise do trabalho abstrato, alienado. O trabalho abstrato produz o capital. De fato, o capital é a abstração do trabalho, o processo pelo qual a imensa riqueza da criatividade humana é controlada, contida, subordinada a serviço da expansão do valor. A abstração do trabalho reduz a cor intensa do fazer criativo í cinzenta produção de valor, ao vazio da geração de dinheiro. No capitalismo, o fazer criativo (que Marx chamou de trabalho concreto ou útil) é sujeitado ao trabalho abstrato, existe na forma de trabalho, mas esta forma esconde uma constante tensão, um constante antagonismo entre conteúdo e forma, entre o fazer criativo e o trabalho abstrato: ele existe em constante rebelião contra o trabalho abstrato, como a crise latente do trabalho abstrato.
Aqui, então, está o núcleo da luta de classes: é a luta entre o fazer criativo e o trabalho abstrato. No passado era comum pensar na luta de classes como a luta entre capital e trabalho, entendendo trabalho como trabalho assalariado, trabalho abstrato, e a classe trabalhadora foi frequentemente definida como a classe dos trabalhadores assalariados. Mas isto é totalmente equivocado. O trabalho assalariado e o capital complementam um ao outro, o trabalho assalariado é um momento do capital. Há de fato um conflito entre o trabalho assalariado e o capital, mas este é um conflito relativamente superficial. Trata-se de um conflito em torno de salários, duração da jornada de trabalho, condições de trabalho: tudo isso é importante, mas pressupõe a existência do capital. A verdadeira ameaça ao capital não vem do trabalho abstrato, mas do trabalho útil ou fazer criativo, pois é o fazer criativo que se coloca em oposição radical ao capital, isto é, í sua própria abstração. É o fazer criativo que diz “não, não faremos o que o capital ordena, faremos o que consideramos necessário ou desejável”.
Nós somos a crise do trabalho abstrato, nós somos a crise do movimento operário, do movimento construído sobre a luta do trabalho abstrato. Desde os primeiros tempos do capitalismo, o trabalho abstrato organizou a sua luta contra o capital, sua luta por melhores condições para o trabalho assalariado. No núcleo deste movimento está o movimento sindical, com sua luta por maiores salários e melhores condições. Na literatura clássica do marxismo ortodoxo, isto é visto como a luta econômica, que deve ser complementada pela luta política. A luta política é organizada em partidos, que têm a conquista do poder estatal como seu foco – seja através de meios parlamentares ou através da luta armada. O partido revolucionário clássico objetiva, é claro, ir além da perspectiva dos sindicatos e liderar uma revolução que abolirá o trabalho abstrato, assalariado, mas na realidade ele está (ou estava) preso no mundo do trabalho abstrato. O mundo do trabalho abstrato é um mundo de fetichismo, um mundo no qual as relações sociais existem como coisas. É um mundo habitado por dinheiro, capital, Estado, partidos, instituições, um mundo cheio de falsas estabilidades, um mundo de identidades. É um mundo de separação, no qual o político é separado do econômico, o público do privado, o futuro do presente, o sujeito do objeto, um mundo no qual o sujeito revolucionário é um eles (a classe trabalhadora, os camponeses), não um nós. O fetichismo é o mundo do movimento construído sobre a luta do trabalho assalariado, trabalho abstrato, e desse fetichismo não há saída: é um mundo que é opressivo e frustrante, e terrivelmente, terrivelmente chato. É também um mundo no qual a luta de classes é simétrica. A complementaridade do trabalho abstrato e do capital é refletida numa simetria básica entre a luta do trabalho abstrato e a luta do capital. Ambos transitam nas imediações do Estado e da luta pelo poder-sobre outros; ambos são hierárquicos; ambos buscam legitimidade agindo em nome de outros.
Nós somos a crise do trabalho abstrato e do movimento operário. Isto sempre foi verdade, mas o que é novo é que não somos mais a crise latente, mas a sua manifestação aberta e manifesta. O trabalho abstrato sempre foi a chave da dominação capitalista, ou seja, a conversão do fazer criativo em trabalho abstrato, e, com ela, a transformação dos criadores humanos em trabalhadores assalariados. O emprego, em outras palavras, sempre foi o núcleo do controle capitalista. As chamadas economias de pleno emprego do período pós-guerra foram talvez o ponto culminante do comando do trabalho abstrato e suas instituições – do qual o clássico movimento operário era parte central. Esta forma de dominação tem estado em crise aberta pelos últimos trinta anos, e nós somos esta crise, nosso NÃO, nossa recusa a aceitar a conversão de nossa criatividade em trabalho abstrato sem sentido, a conversão de nós mesmos em máquinas.
Mas e o neoliberalismo, e a guerra, e o império, e o biopoder, e as novas formas de controle social? Eles não superaram a crise e criaram uma nova base para o capitalismo? Não, não acho, e devemos ter muito cuidado em nossas teorizações para não transformar a crise em um novo paradigma, uma nova era de dominação, um novo império, simplesmente porque as positividades do pensamento paradigmático encarceram a nossa negatividade, fecham nossas perspectivas. É tarefa do capital criar um novo paradigma, não nossa. Nossa tarefa, tanto teórica quanto prática, é criar instabilidade, não estabilidade. O marxismo é uma teoria da crise, não das formas de dominação: não da força da dominação, mas de sua fragilidade. E há muitas, muitas indicações da fragilidade fundamental do capital neste momento: tanto sua crescente violência quanto sua contínua dependência da constante expansão de dívidas. Certamente há uma constante expansão e intensificação do trabalho abstrato: nós nas universidades, por exemplo, estamos muito conscientes da maneira pela qual o nosso trabalho está sendo sujeitado cada vez mais diretamente í s demandas do mercado. Mas ao mesmo tempo há uma deficiência crescente do trabalho abstrato para conter o impulso do fazer criativo dentro dos limites da produção de valor, dentro dos limites do mercado.
Esta é a crise do trabalho abstrato: a inabilidade do trabalho abstrato para conter a força do fazer criativo. O emprego sempre foi, e continua a ser (apesar da extensão da disciplina para a totalidade da “fábrica social”) a principal força disciplinadora do capitalismo, a principal forma de conter e reduzir nossa humanidade, nossa recusa-e-criação. A crise do emprego em todas as partes tanto intensifica a disciplina (na medida em que as pessoas competem por empregos) quanto a enfraquece, na medida em que ela falha no preenchimento da vida das pessoas: a precariedade do emprego é também a precariedade da abstração do trabalho. Cada vez mais as lutas de protesto contra o capitalismo vão além dos limites do movimento baseado no trabalho abstrato. Isto não significa que o velho movimento operário deixe de existir, ou que deixe de ser importante para o melhoramento das condições de vida, mas cada vez mais as lutas contra o capitalismo transbordam as estruturas e concepções deste movimento. Seja ou não seja usada explicitamente a categoria da classe, isto não é um abandono da luta de classes, mas uma intensificação da luta de classes, um nível diferente de luta. Esta é uma luta que quebra a simetria que caracterizou a luta do trabalho abstrato, uma luta que é fundamentalmente assimétrica em relação í luta do capital, e se rejubila com essa assimetria: fazer coisas de forma diferente, criar relações sociais diferentes, é um princípio norteador.
Nesta nova reconfiguração da luta de classes, nós somos o sujeito revolucionário. Nós? Quem somos nós? Nós somos o questionamento, um experimento, um grito, um desafio. Não precisamos de definição, rejeitamos toda definição, porque nós somos o poder anti-identitário do fazer criativo e recusamos toda definição. Nos chame de multidão se quiser, ou, melhor, nos chame de classe trabalhadora, mas qualquer tentativa de definição só faz sentido na medida em que nós quebramos a definição. Nós somos heterogêneos, dissonantes, somos a afirmação de nós mesmos, a recusa da determinação alheia de nossas vidas. Somos, portanto, a crítica da representação, a crítica da verticalidade e de toda forma de organização que toma responsabilidade por outras vidas separadas de nós. Escutem as vozes dos zapatistas, dos piqueteros da Argentina, dos índios na Bolívia, das pessoas nos centros sociais na Itália: o sujeito que eles usam todo o tempo para falar de sua luta é “nós”, e esta é uma categoria que carrega força real.
Nós somos femininos, nós mulheres e nós homens, porque a crise do trabalho abstrato é a crise da atividade e forma de luta dominada pelo masculino, e porque a nova luta de classes não tem a mesma composição de gênero da antiga.
Nós somos o rompimento do tempo, o disparo contra os relógios. O movimento do trabalho abstrato projeta a revolução no futuro, mas a nossa revolução só pode ser aqui e agora, porque nós estamos vivos aqui e agora, e no futuro estaremos mortos (ou imortais). Nós somos a intensidade do momento, a busca (a busca de Fausto, a busca de Bloch) pelo momento da realização absoluta. Somos a poesia da classe trabalhadora, a classe trabalhadora como poesia.
Nossa revolução, então, não pode ser entendida como a construção para um grande evento no futuro, mas somente como a criação aqui e agora de trincas ou fissuras ou rupturas na textura da dominação, espaços ou momentos nos quais dizemos claramente “não, não aceitaremos que o capital molde nossas vidas, faremos o que consideramos necessário e desejável”. Olhe ao redor, e podemos ver que estes espaços e momentos de recusa-e-criação existem em todos os lados, da Selva Lacandona í recusa-e-criação momentânea de um evento como este. A revolução, a nossa revolução, só pode ser entendida como a expansão e multiplicação destas fissuras, estes lampejos de recusa-e-criação, estas erupções vulcânicas do fazer contra o trabalho.
Perguntado caminhamos. Preguntando caminamos.
Traduzido por Daniel Cunha
Título original: John Holloway: We are the Crises of Abstract Labour
Versão original: http://www.defenestrator.org/?q=node/959
link original: http://www.fimdalinha.1br.net/
Cada um �© Prometeu de si mesmo (ou n�£o).
O “NÃ?³s” nÃ?£o tem fÃ?Âgado para ser bicado.
Sob essa �³tica, vanguardas, pastores e far�³is como o Sr. Holloway s�£o dispens�¡veis.
“Recusa-e-criaÃ?§Ã?£o” tambÃ?©m estÃ?¡ sujeita Ã? “oferta-e-procura”. AtÃ?© os luditas, na sua inocÃ?ªncia Ã?¡rcade, sÃ?£o mais coerentes do que o Sr. Holloway.
AlÃ?©m do que, o texto Ã?© absolutamente incompreensÃ?Âvel. SerÃ?¡ que o “anti-poder” se assenta tambÃ?©m na anti-logicidade e no anti-convencimento? Com clichÃ?ªs tÃ?£o manifestamente empilhados em uma vulgata desconstrucionista, Ã?© de se cogitar…
Parece ser o tÃ?Âpico discurso escapista de quem nÃ?£o aceitou o ocaso do marxismo (e de seus derivativos marxianos) e, como nÃ?£o conseguiu “mudar” a realidade, dispÃ?µ-se agora a, esquizofrenicamente, “negÃ?¡-la”, com um sÃ?³ grito:
SOLIPSISTAS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!
Como o sr. Eu-sozinho pode afirmar tÃ?£o categÃ?³ricamente que houve um definitivo “ocaso” do marxismo (e principalmente de seus “derivativos”)? Por “acaso” toda a questÃ?£o da mais-valia jÃ?¡ estÃ?¡ resolvida? O Capital dÃ?¡ conta de toda uma produÃ?§Ã?£o intelectual e sensitiva que nÃ?£o foi, nÃ?£o Ã?© e nem serÃ?¡ fruto (sÃ?³ se for o “fruto-proibido”) dos meios de produÃ?§Ã?£o e do Deus-Mercado e sim Ã?© um grito de desconforto do ser-humano, este que visivelmente nÃ?£o esta satisfeito – sim, NÃ?Æ?O ACEITOU imposiÃ?§Ã?£o desta suposta “realidade” decidida nos cassinos das bolsas de valores?
O texto Ã?© “esquizofrÃ?ªnico” e nÃ?£o “dÃ?¡ respostas”? Para algo que propÃ?µe ser um grito, jÃ?¡ causou aqui no mÃ?Ânimo algumas reflexÃ?µes. Quem demanda essas reflexÃ?µes? O Capital? Este que nem vender respostas consegue, quanto mais “dar”?
E quÃ?£o eloqÃ?¼ente poderia ser sua alternativa da “oferta-e-procura” frente aos fatos? Escolher o urubu que vai comer seu fÃ?Âgado? Prefiro algum outro tipo de romantismo em que o Eu-NÃ?³s (nÃ?³s que AQUI estamos por vÃ?³s esperamos) sejamos “O FÃ?Å?GADO” e o urubu que vÃ?¡ comer na mÃ?£o de seus Zeuzes do Olimpo, e seus superpoderes de se fazer de desentendido , entendendo por “NÃ?³s”, pessoas jurÃ?Âdicas de “direito privado”.
Quem “ofertou” entendimento e quem “procurou”? Quanto NÃ?â??S “levamos nisso”?
Agora vai vir o Eu-Sozinho me dizer o que Ã?© “realidade”? Eu-sozinho nÃ?£o diz nada alÃ?©m de : eu-eu-eu…
Escolha seus “NÃ?³s” e o urubu que morra a grito.
ao invÃ?©s de dispensar o sr. holloway, hackeando catatau dispensa leitores e comentÃ?¡rios REAÃ?â?¡AS…
Pensando melhor, Hackeando Catatau n�£o dispensar�¡ leitores e coment�¡rios, de qualquer matiz.