O sistema ritual dos Tumbalalá está baseado no culto aos encantos e no uso de um tipo de jurema (Pithecolobium diversifolium; Mimosa artemisiana) do qual se faz o “vinho” ingerido durante o toré. Esta planta, um arbusto de porte médio a grande típico do sertão do Nordeste, é central para a religiosidade indígena regional e apresenta algumas variedades que fazem parte do universo religioso de cultos afro-brasileiros, notadamente o catimbó ou candomblé de caboclo.
Os encantos, ou encantados – e ainda, mestres ou guias – tumbalalá são entidades sobrenaturais originadas do processo voluntário de “encantamento” de alguns índios ritual ou politicamente importantes, ao deixarem a existência humana, distinguindo-se dos espíritos produzidos pela inexorabilidade da morte. Neste caso eles são seres ontologicamente híbridos que transitam bem entre os homens e o sobrenatural porque não morreram – o que quer dizer que não assumiram completamente uma não-humanidade – e gozam de predicados inacessíveis a um humano. Também podem ser seres que sempre existiram e que mantêm comunicação com os homens por meio de sonhos ou quando se fazem presentes mediante um mestre de toré que os incorpore. O “encantamento” pode ser ainda um estado transitório permitido a alguns mestres competentes o suficiente para dominar forças sobrenaturais e adquirir capacidade polimorfa ou simplesmente tornarem-se invisíveis.
Essas transformações ocorrem em algum ponto entre as realidades onírica e empírica e, aparentemente, possibilitam ao mestre o trânsito entre ambas, devendo ele estar preparado para possíveis confrontos com encantos perigosos, arredios ou para visitar suas moradas em castelos, cachoeiras no rio ou lugares oclusos situados quase sempre dentro dos limites da aldeia tumbalalá. A imagem mais adequada para os encantos e encantamentos é a de uma realidade que transcorre numa dimensão cruzada com o plano empírico; os seres e objetos encantados estão nos lugares em presença, mas não em corpo, dependendo do poder do mestre para vê-los, tocá-los e se comunicar com eles. O acionamento destas capacidades decorre da manutenção de certas práticas regulares, especialmente a oferta cotidiana de fumaça, o contato com os encantados e a boa condução das atividades rituais.
Apesar da forte presença de seu culto como traço diacrítico do Nordeste indígena, as representações que são dedicadas a estes seres variam bastante conforme o grupo ou a rede de trocas rituais e ainda de acordo com os elementos e análogos não-indígenas com os quais se pretende marcar diferenças, principalmente espíritos de mortos de cultos espíritas ou entidades que freqüentam cultos afro-brasileiros. As variações para os encantos estão radicadas no plano das interpretações locais para um repertório simbólico voltado ao sobrenatural que muitas vezes se repete, não só porque inúmeros encantos estão presentes em vários grupos (além do Velho Ká e Mestre Viajeiro, o Manuel Maior, a Caiporinha, o Mestre Lírio, o Mata Verde etc.), mas devido í ampliação dos circuitos de trocas rituais dinamizadas durante encontros nacionais ou regionais de lideranças indígenas promovidos por Ong’s indigenistas (notadamente o CIMI), o que demonstra o cruzamento entre o universo sobrenatural tumbalalá e as redes interétnicas das quais eles vêm participando.
A classificação reservada aos encantos tumbalalá é simples; eles são do brabio ou das águas. Os encantos do brabio habitam a caatinga, são considerados mais fortes e poderosos porque são criaturas não domesticadas (ou semi domesticadas). Comumente são retratados como espíritos dos antigos índios da aldeia tumbalalá e de outras (por vezes não nomeados) e seu gênio indômito é reforçado pela rudeza de seu habitat. Também são espíritos de vaqueiros (vaqueiro João, Manuel Salomão) cuja proximidade com a caatinga torna-os indistintos em qualidade dos encantos de índios ancestrais. Já os encantos das águas possuem como característica fundamental o princípio da culturalização; dominam a língua – enquanto os encantos do brabio não falam o português ou são mudos –, habitam palácios, lugares belos e conhecem bastante a ciência do índio, afastando-se relativamente dos emblemas ligados í natureza rude que cerca seus correlatos do brabio.
Esta dupla classificação existe para os Tumbalalá porque sua aldeia é considerada mista, pertencendo í s águas e í caatinga, o que exige dos mestres de toré habilidade para identificar o encanto e lidar corretamente com ele, aplicando os procedimentos rituais adequados í sua natureza. Não obstante as diferenças, a rigor são criaturas cismadas e geniosas, ostentando uma ampla variedade de temperamento, podendo assumir ou não atitudes benéficas, auxiliar os enfermos, trazer doenças sobrenaturais quando se sentirem desprezados ou fazer revelações através de sonhos.
Os vários empréstimos presentes na cosmologia tumbalalá – sobretudo o compartilhamento de encantos com outros grupos indígenas – revelam a dinâmica e intensidade de suas relações externas. Regionalmente, a polissemia presente nos símbolos compartilhados pelas cosmologias permite a fixação do sentido que melhor demarca uma especificidade local, uma identidade diferenciada dentro da unidade genérica, aproximando variantes interpretativas, mas nunca fundindo-as totalmente. E é deste resquício que brota a identidade tumbalalá como algo exclusivo.