Carnaval e coroas para reis momo

“De que tu te ocupas exatamente? Eu não sei bem.
ââ?¬â? Da reificação, responde Gilles.
ââ?¬â? É um estudo pesado, acrescentei.
� Sim, diz ele.
ââ?¬â? Estou vendo, observa Carole admirada. É um trabalho muito sério, com livros grossos e muitos papéis sobre uma mesa grande.
ââ?¬â? Não, diz Gilles, eu passeio. Principalmente eu passeio.”
MICHÃ?Ë?LE BERNSTEIN, Tous les chevaux du roi.

ENTRE MARXISMO E SURREALISMO
Peter Wollen

Em duas fases desenvolveu-se o marxismo ocidental. A primeira seguiu-se í  1ê Guerra Mundial e í  revolução bolchevique. Em 1923, Lukács publicou sua coletânea de ensaios “História e Consciência de Classes” e Karl Korsch, o livro “Marxismo e Filosofia”. Os anos imediatamente posteriores í  guerra trouxeram í  Europa um processo de fermentação revolucionária; uma vez dissolvido esse processo, a União Soviética ficou sozinha e isolada, mas de volta ao topo de um movimento internacional desmoralizado. Logo foi o movimento, então, ameaçado, e atacado pelo fascismo; a isso se acrescente a queda, nas mãos de Stalin, da cidadela do comunismo, a União Soviética. Os primeiros escritos de Lukács e Korsch são o produto dessa época de fermentação revolucionária. O marxismo essencial iria surgir mais tarde, í  sombra do fascismo – enquanto Antonio Gramsci estaria a cumprir pena numa prisão italiana, enquanto Korsch e a Escola de Frankfurt conheciam o exí­lio americano. Só Lukács bandeia-se para o Leste e faz as pazes com o stalinismo, ao qual amolda sua posição teórica.

A segunda fase do marxismo ocidental veio depois da 2ê Guerra Mundial e com o triunfo (juntamente com seus aliados norte-americanos) da União Soviética sobre o fascismo. O crescimento dos movimentos de resistência ao fascismo e a dinâmica da vitória conduziram, por sua vez, a um processo revolucionário, que se instalou na Iugoslávia e na Albânia e, enquanto na Grécia era detido, na França e na Itália canalizava-se em direção a formas parlamentares.

Imediatamente depois da guerra, Jean-Paul Sartre começa a duradoura tentativa de mediação entre existencialismo e marxismo, enquanto Lefí¨bvre publica a “Crí­tica da vida cotidiana”. Uma guinada decisiva, quando em 1956 a União Soviética reprime a revolução húngara e inúmeros intelectuais abandonam os partidos comunistas ocidentais. São deste exato momento os primórdios das novas esquerdas e das correntes intelectuais, que conduziram aos acontecimentos de 68.

A mudança de centro do marxismo ocidental, da Alemanha para a França, um resultado da catástrofe fascista e da falta, na Alemanha, de um movimento de resistência mais amplo, conduziu a uma mudança de prioridades temáticas. Mudança, no entanto, menos significativa do que se poderia supor. Já antes da guerra, abrira-se í  influência de Hegel (e de Martin Heidegger) o pensamento francês. Por isso, sem dificuldade puderam ser aceitos, ao serem publicados, depois de 1957, na revista “Arguments” os escritos de Lukács. De fato, havia correspondências evidentes, inúmeras, nos métodos de Sartre e de Lefí¨bvre.

Debord localiza o iní­cio de sua vida “independente” em 1950, o ano em que irrompeu na cena artí­stica e cultural da Rive Gauche parisiense – seus bares, cinemas, livrarias. Seu pensamento foi influenciado por Sartre (o conceito de situação) e Lukács (a dialética sujeito-objeto e a teoria da objetificação). A princí­pio, Debord via no “Cotidiano” de Lefí¨bvre uma série de situações sartreanas. Existência – assim argumentara Jean-Paul Sartre – é sempre existência dentro de ambientes, de uma dada situação; o sujeito vive nela e a supera, respectivamente, de acordo com a escolha do seu ser nesta dada situação. A diretiva de Lefí¨bvre, de transformar o cotidiano, Debord a entendia de tal modo, que cumpria não aceitá-la como dada. O que importava era criar, por meio de atividades artí­sticas e práticas, situações. Tentava, pelo menos em enclaves do cotidiano, estabelecer uma certa ordem, ordem que haveria de permitir uma atividade inteiramente livre, um jogo, conscientemente instalado nos contextos do cotidiano, não confinado í  esfera do tempo livre. Debord, para além da situação, ampliou o raio í  cidade e, para além da cidade, í  sociedade. O sujeito da transformação foi ampliado do grupo (dos letristas, bem como dos situacionistas, nos objetivos comuns) para a massa do proletariado, que deveria, ela própria, criar a totalidade das situações sociais em que vivia. Exatamente neste ponto, Debord precisaria pensar para além da esfera das ações possí­veis, de si mesmo e de seus amigos imediatos, e confrontar-se com a teoria da revolução. Isto tornou a radicalizá-lo, apontando-lhe a necessidade de reinterpretar o marxismo ocidental sobre um novo fundamento. Em lugar de perí­odos cambiantes e breves, e de lugares limitados, o espaço e o tempo da vida social teriam de ser transformados como um todo, e a existência social, teoricamente compreendida. Esta seria, consequentemente, a teoria da sociedade atual (e da futura) e a forma atual da alienação, idéia-chave de Lefí¨bvre.

Quando Lukács escreveu “História e Consciência de Classes”, o fato significava uma guinada, do anticapitalismo romântico em direção ao marxismo, possibilitada, por um lado, pela atribuição í  classe trabalhadora do papel de sujeito da História; em segundo lugar, pela vinculação da teoria marxiana do fetichismo da mercadoria ao conceito hegeliano da objetificação (Vergegenstí¤ndlichung) – resultando numa teoria da objetificação, sendo esta a forma da alienação imposta í  subjetividade humana capitalismo contemporâneo.

Debord, que leu Lukács com várias décadas de atraso, podia relacionar a teoria lukácsiana da coisificação (Verdinglichung) do trabalho na mercadoria, í  sociedade de consumo, no longo perí­odo de florescimento do capitalismo keynesiano do após-guerra. Assim como Lukács escreveu durante o primeiro perí­odo do fordismo, que era impregnado pela estandardização e pela produção de massas, assim Debord, no segundo, o perí­odo do mercado livre e do consumo de massas. A sociedade de consumo confrontava os produtores com seus produtos não apenas na forma da alienação quantitativa, pelas condições de troca, mas também na forma visual, qualitativamente, em reclames, na imprensa e na televisão – partes constitutivas da forma comum do “mundo da imagem” (spectacle). Para, 10 anos depois, ir de “Reportagem sobre a construção” (1957) í  “Sociedade do Espetáculo”, Debord teve de voltar-se para o passado – para o espólio (Vermí¤chtnis) do marxismo clássico, desacreditado pelo terrí­vel experimento do stalinismo, mas, na verdade, só ele como parâmetro para o conceito da revolução proletária (….) O comunismo-dos-conselhos-de-operários (Rí¤te-Komunismus), com a palavra de ordem “Todo poder aos conselhos”, teve um breve tempo de florescimento no perí­odo das insurreições revolucionárias, depois de 1917, e marcou, naquele perí­odo, a obra de Lukács, Korsch e Gramsci. Lukács e Gramsci buscavam orientar-se retroativamente pela linha ortodoxa e destacavam o Partido como organizador centralizador de uma classe difusa (o “sujeito” hegeliano, assim como “O Prí­ncipe” de Maquiavel), enquanto Korsch permanecia fiel aos princí­pios dos conselhos e enfatizava a auto-organização dos operários em seus conselhos, autonomamente formados. Este debate sobre Partido e Conselhos, a necessária mediação entre Estado e Classe, neste perí­odo alcançou o ápice, tendo-se tornado porém ví­sivel, em seus contornos, já antes da guerra.

As discussões entre Hermann Gorter e Anton Pannekoek (da Holanda), Rosa Luxemburg e Karl Kautsky, no Partido alemão; no russo, entre Alexander Bogdanow e Lenin – desviaram os debates do pós-guerra para longe dos conselhos operários. Nos tempos imediatamente pós-revolucionários, Lenin polemizava, principalmente, tanto contra os comunistas holandeses que defendiam os conselhos, como contra Bogdanow. Pessoas como Lukács e Korsch, que não haviam tomado parte no movimento anterior í  guerra, estavam conscientes de que apenas repercutiam o eco das titânicas lutas de seus predecessores. O pano de fundo imediato desta disputa deve ser visto na formação dos conselhos operários na revolução russa de 1905, totalmente imprevisí­vel, e na afirmação do sindicalismo como concorrente do marxismo na Europa ocidental (e, com chegada ao poder da “International Workers of the World”/IWW, também nos Estados Unidos). É, além disso, significativo, que o desenvolvimento holandês assim como o russo estivessem ligados í  heterodoxia filosófica (e igualmente polí­tica) – Pannekoek e Gorter defendiam a religião moní­stica da ciência de Joseph Dietzgen, e Bogdanow, o positivismo moní­stico de Ernst Mach. Tais desvios filosóficos correspondiam ao desejo de encontrar, na polí­tica, uma tarefa para a subjetividade coletiva, que, de longe, ultrapassava as fronteiras estabelecidas pelo socialismo cientí­fico, com o objetivo de aproximá-la da mí­stica sindicalista da classe operária como um coletivo e a ênfase, em decorrência, no ativismo (em sua forma extrema, em Georges Sorel).

Depois da revolução dos bolcheviques, os comunistas de esquerda com as tendências filosóficas do cientismo de Dietzgen e Mach (sua ênfase no monismo e no fator subjetivo na ciência) e, com a garantia das “atenções” que Marx lhe dedicava, de Hegel se tornaram adeptos “ferrenhos”.

Lukács e Korsch não se restringiram a apenas tratar Hegel como precursor de Marx, tendo estabelecido, no próprio marxismo, conceitos e métodos hegelianos: inclusive os da totalidade e do sujeito. Deste modo, o comunismo-dos-conselhos-de-operários surgiu como reedição marxista das idéias sindicalistas e o marxismo ocidental, como uma retomada filosófica do socialismo cientí­fico. A ligação entre ambos foi assegurada pela transformação de formas românticas, vitalistas e libertárias de ativismo em categorias do subjetivismo e da práxis. Tais categorias incluí­am agora a auto-consciência do proletariado como classe. No mesmo passo, e radicalmente, Lukács e Korsch romperam com o marxismo clássico e sofreram uma derrota polí­tica muito mais séria do que as de seus predecessores. Assim como o marxismo ocidental, também na França foi revivificado o comunismo-dos-conselhos, depois da 2ê Guerra Mundial, pelo grupo “Socialisme ou Barbarie”. (…..) Para Debord, como para o grupo, o fato de ser o Partido Comunista burocrático na forma e na ideologia, antes um poder da ordem do que uma força revolucionária, significava: não fundar um novo partido, mas rejeitar a própria idéia de partido. Em vez de um Partido, que estaria necessariamente separado das massas, a revolução deveria ser feita pelos próprios operários, organizados em conselhos auto-administrados.

Com isso, distancia-se, do modelo leninista, o próprio conceito de revolução. Em vez de aspirar ao poder do Estado, imediatamente deveriam os Conselhos passar í  eliminação do Estado. A revolução significava a realização imediata do direito de liberdade, a eliminação de todas as formas de coisificação (Verdinglichung) e de alienação, sua substituição por formas de subjetividade não amordaçadas. Assim tornou a alçar-se o fantasma sindicalista, a procurar a Social-Democracia, fortificado pelas armas filosóficas do marxismo ocidental. Em conexão com o temperamento de Debord, só agora, verdadeiramente, as coisas iam ficando perigosas. Lukács sempre assumira a existência de mediações dentro da totalidade e de formas de unidade dentro da diferença. A visão maximalista de Debord buscava, ao contrário, aniquilar toda e qualquer separação, para alcançar a unidade de sujeito e objeto, de práxis e teoria, de base e superestrutura, de polí­tica e administração, numa única totalidade não-mediada.

O impulso por trás deste maximalismo tinha origem na idéia da transformação da vida cotidiana. Esta, por sua vez, foi desenvolvida a partir da idéia lefí¨bvreana do homem total (ou seja, não-alienado). Como primeiro marxista francês, Lefí¨bvre revivificou as idéias humanistas do jovem Marx; e, ainda que jamais tenha colocado em questão o papel proeminente da economia na teoria de Marx, argumentava que o marxismo havia sido reduzido, erroneamente, í s esferas polí­tica e econômica, enquanto sua análise na verdade deveria ser ampliada a todo aspecto da vida cotidiana em que houvesse alienação – na vida privada e no tempo livre, assim como no trabalho. O marxismo precisava de uma sociologia atual relacionada í  cultura, que não deveria recuar aterrorizada ante o trivial. Em última conseqüência, o marxismo significava não apenas a transformação das estruturas econômicas e polí­ticas, mas “a transformação da vida até o âmago de suas particularidades, até suas minúcias cotidianas”. Economia e polí­tica seriam apenas um meio para a realização de uma humanidade total, não-alienada.

Lefí¨bvre começou sua carreira intelectual nos anos vinte, em estreita ligação com André Breton e os surrealistas. Membro do grupo “Philosophies”, em 1925 foi co-assinante de um manifesto contra a Guerra do Marrocos, tendo trabalhado juntamente com os surrealistas pelo menos até sua entrada no Partido Comunista, em 1928. A posteriori – a despeito de querelas pessoais e polí­ticas –, se vê com clareza o quanto Lefí¨bvre devia a Breton: não apenas a idéia da transformação do cotidiano, um conceito surrealista fundamental, mas até mesmo a proximidade com Hegel e Marx. “Mostrou-me um livro sobre a sua mesa, a tradução da Lógica de Hegel feita por Vera, uma tradução não de todo ruim, e disse, de algum modo depreciativamente, algo como: ââ?¬Ë?Mas nem isso você leu?ââ?¬â?¢ Alguns dias depois comecei a ler Hegel, que me conduziu a Marx.”

Breton nunca deixou dúvida sobre sua ligação com Hegel: “O fato é que eu, desde a primeira vez que me deparei com Hegel (…), eu mergulhei em seus pensamentos; e que, para mim, seu método faz todos os outros parecerem mendicância. Onde não opera a dialética de Hegel, para mim não existe um pensamento, uma esperança de verdade.”

Historiadores do marxismo ocidental tentaram desqualificar Breton, ao acusá-lo de “perversão” ou de falta de “seriedade”. Talvez porque, como Debord, mas diferentemente de todos os outros marxistas ocidentais, Breton jamais foi professor universitário. Sem dúvida, suas interpretações de Hegel, ou mesmo as de Freud, as de Marx, as do amor e as da arte (para nomear seus temas mais importantes), muitas vezes, eram incomuns. Mas permanece um fato: é impensável, sem ele, a cultura francesa contemporânea. Ele desenvolveu não só uma teoria e práxis da arte, que foi amplamente influente (talvez mais do que qualquer outra, em nosso tempo), mas descobriu, para a França, também Freud e Hegel; primeiramente, para o seu cí­rculo mais próximo; depois, para o mundo dos especialistas (Lefí¨bvre, Jaques Lacan, George Bataille, Claude Levi-Strauss); e, finalmente, para a cultura geral. Também no que tange í  polí­tica, a partir de meados dos anos vinte, ele era consequentemente dono de vontade própria (eigenwillig); por questões de princí­pio (prinzipielle Erwí¤gungen), entrou para o Partido Comunista e tornou a deixá-lo; ofereceu apoio a Trotski, em seus trágicos anos derradeiros; e conferiu brilho ao perseguido e camaleônico (schillernd) movimento trotskista. Os anos vinte foram um perí­odo de vanguardismo dinâmico, em muitas relações uma migração (Verlagerung) de energias que haviam sido liberadas pela revolução russa. Os surrealistas se identificavam com a revolução e, em suas próprias organizações, imitavam muitas das caracterí­sticas do leninismo. Ao publicar, por exemplo, um órgão central, manifestos e panfletos de agitação; ao vigiar a pureza da linha; e ao excluir os dissidentes – caracterí­sticas que, obviamente, também os situacionistas mantiveram.

Como os surrealistas, também a vanguarda soviética queria revolucionar a arte de um tal modo que, de longe, ultrapassava uma transformação de forma e conteúdo. O que se almejava era muito mais uma mudança de sua inteira função social. Mas enquanto Breton queria integrar a arte e a poesia no cotidiano, a União Soviética estava a caminho de subordinar a arte í  produção. Em ambos os casos, deveriam ser reprimidas as formas de arte burguesas, mas os artistas e teóricos soviéticos enfatizavam uma afinidade da arte com a ciência e com a tecnologia; tentavam ligar a arte í  indústria moderna; e exigiam que artistas se tornassem operários ou ââ?¬Ë?especialistasââ?¬â?¢. Beleza, sonhos e criatividade não passariam de conceitos burgueses, vazios. Na nova sociedade soviética, a arte deveria encontrar uma função produtiva para si mesma e, nesta função produtiva, ela até mesmo deixaria de ser arte. “Morte í  arte, viva a produção!”

Deste modo, a cientificidade do marxismo ortodoxo e o produtivismo da ideologia soviética pós-revolucionária entraram na visão de mundo do artista militante. O vanguardismo ocidental de Breton ia na direção oposta, impossí­vel de se unir í  indústria moderna, antifuncionalista, profundamente desconfiado ante a unidade de materialismo e positivismo e, a partir daí­, libertar as qualidades de poetas românticos e decadentes de sua existência sombria para as margens da literatura. A vida deveria ser estetizada, não deveria a arte ser funcionalizada para a produção. (….)

Havia três importantes diferenças entre Breton e Lukács. Primeiramente, o próprio Breton era mais poeta do que crí­tico, os problemas da práxis, para ele, por isso mesmo se localizaram imediatamente na esfera da arte. Por isso, nele, a postura teórica se achava em conexão direta com o próprio criar. Segundo, como resultado de sua ocupação com a psiquiatria médica, voltou-se para Freud e, ainda antes de conhecer Marx, integrou a seu próprio pensamento elementos da teoria psicanalí­tica. Numa certa relação, para Breton, Freud desempenhava um papel semelhante ao que Georg Simmel ou Max Weber desempenharam para Lukács. O interesse de Breton por Freud trouxe-o para a psicologia, Lukács veio para a sociologia. Deste modo, Breton leu Marx ou Lenin e perguntou pela consciência, em vez de, como Lukács, perguntar pela sociedade. Em terceiro lugar, apesar do seu hegelianismo, Breton sempre foi pela especificidade e pela autonomia da revolução artí­stica, tanto do ponto de vista intelectual como organizatório. (…)

A lógica da argumentação de Breton parte de que seria tarefa da revolução social superar a restritiva “dependência” das fronteiras econômicas e sociais. Até lá, deveria a arte zelar estritamente por sua “invulnerável autonomia”. Ele nega a idéia de uma arte proletária. (…)

Enquanto escrevia isso, Breton continuava ainda membro do Partido. Só em 1933 é que se deu a ruptura: por causa do seu apoio público a Trotski, de sua discussão com Aragon sobre a subordinação da arte í  polí­tica do partido, sua repulsa crescente diante do culto ao trabalho na União Soviética. (…)

Para Breton, eram distintas as teorias marxiana e freudiana, muito embora comparáveis, assim como polí­tica e arte – cada qual possui seus próprios objetos e objetivos. Em oposição a Wilhelm Reich ou Herbert Marcuse, Breton tentou a libertação radical do desejo reprimido na organização prática e convencional do comunismo-de-conselhos (Rí¤tekomunismus). Esta migração (Verlagerung) significa também uma mudança semântica no significado da palavra desejo (do inconsciente para o consciente) – uma mudança que permitiu í  International Situacionista assumir a palavra de ordem surrealista “Toma teus desejos por realidade”, como o fizeram os enragés de Nanterre (em lugar da suspeita “A fantasia no poder”, do Movimento de 22 de Março). A revolução poética precisa ser a revolução polí­tica, e vice-versa, incondicionalmente, e em plena consciência.

De: Peter Wollen: “A bitter Victory”, in: “On the Passage of a few people through a rather brief moment in time: The Situationist International 1957-1972″. Boston 1989; tradução do inglês: Eckhard Kloft. Araraquara, 2001;

Tradução do alemão: José Pedro Antunes.

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ANOTAÇÃ?â?¢ES SOBRE A SOCIEDADE DO ESPETíCULO
apresentação de uma edição pirata
Emiliano Aquino

“Mas como a reflexão e o pensamento suplantaram as belas artes, a ação e a intervenção social suplantarão doravante a verdadeira filosofia. Também a consciência, neste instante preciso, apressa-se a penetrar em toda parte e, apenas bem sucedida nela mesma, procura agora precipitar a ação.”
AUGUST CIESZKOWSKI, Prolegômenos í  historiosofia.

A Sociedade do Espetáculo foi editado, pela primeira vez, em novembro de 1967, em Paris, pela Editora Buchet-Chastel. Nesta edição, o autor era apresentado de um modo simples e direto: “Guy Debord é diretor da revista Internacional Situacionista”. Essa simples apresentação, já naquele momento, dizia, no entanto, muita coisa. A Internacional Situacionista (I.S.), a revista, já contava com 11 números, desde sua primeira aparição, em 1958. E o grupo que a editava, a Internacional Situacionista (I.S.), era já conhecido por sua intensa e contundente atividade nos meios das avant-gardes européias desde dez anos antes, quando fora fundada, em 1957. Logo depois, ainda em [19]67, outro livro foi lançado por um membro da I.S.: Tratado do saber viver ao uso das jovens gerações, de Raoul Vaneigem, editado pela Gallimard.

Na revolta de maio de 1968, esses livros tiveram uma marcante influência sobre o setor mais radical do movimento. Inicialmente, sobre os enragés, grupo de uns dez “antiestudantes” que, na Universidade de Nanterre, começara alguns meses antes uma agitação social contra o sistema de ensino, os professores e as autoridades acadêmicas e que, por essas atividades, esteve nas origens do movimento que iria explodir e se expandir em maio. Mas também, quando enragés e situacionistas romperam com os estudantes da Sorbonne ocupada e formaram o Conselho pela Manutenção das Ocupações (num momento em que centenas de fábricas francesas estavam já ocupadas pelos operários grevistas), uma variedade de blusões negros, jovens operários e outras figuras perigosas de Paris vieram juntar-se a este comitê, expressando, assim, também uma concordância com as teses radicais dos situacionistas.

Uma das caracterí­sticas da revolta de maio foi, sem dúvida, as pinturas nas paredes de Paris, nas portas das fábricas, escolas e universidades. Boa parte dessas frases, consideradas as mais belas e, com certeza, as mais contundentes daquele movimento, foram tiradas diretamente dos livros e panfletos situacionistas.

Essa aparente “adesão” í s idéias situacionistas não se explicaria se, antes, as atividades de agitação e os escândalos promovidos pela I.S. não tivessem confluí­do e contribuí­do para a revolução de maio; e, certamente, se suas idéias não ajudassem a compreender e levar í s últimas conseqüências as tendências mais profundas daquele movimento.

Com efeito, antes de maio de [19]68, os situacionistas já vinham falando na necessidade e no conteúdo da próxima revolta, do “novo levante proletário”. Iniciaram suas atividades contestando o establishment cultural, retomando e aprofundando as tendências já presentes entre os dadaí­stas e surrealistas, que procuraram a superação da arte e sua realização na vida cotidiana; os situacionistas chegaram, assim, í  posição de que o conteúdo da revolução proletária seria a revolução da vida cotidiana, com a superação da totalidade das alienações do capitalismo moderno, com o apoderamento pelos indiví­duos de suas próprias vidas, tornando-as uma obra-de-arte, e o seu acesso í  “história total”. Sem dúvida, uma influência decisiva ââ?¬â? nesse passo teórico dado pelos situacionistas entre as posições das vanguardas anteriores acerca da superação da arte (enquanto atividade separada da vida cotidiana) e o novo conceito de revolução da vida cotidiana ââ?¬â? foi aquela exercida sobre eles pela elaboração de Henri Lefebvre, em sua Crí­tica da Vida Cotidiana (1947, com um novo Prefácio em 1958, e um segundo volume em 1961).

A crí­tica da arte, enquanto atividade separada, ligava-se estreitamente í  crí­tica da polí­tica, enquanto atividade também necessariamente separada, pois situada na esfera do Estado, esfera exterior í  vida cotidiana, e que, assim como a arte, se punha como atividade alienada e reprodutora da alienação.

Tratava-se, para os situacionistas, não mais de buscar a produção sublimada de uma crí­tica ou comunicação ou conciliação com a realidade na forma da arte, mas de produzi-las realmente como prática. A exigência feita contra a arte não poderia, portanto, ser recompensada pela polí­tica, pois esta também só podia oferecer mecanismos que eram eles mesmos alienados: a representação, os sindicatos operários e estudantis, os partidos, o Estado. Se se tratava de procurar realizar na prática a abolição de todo poder exterior, de toda linguagem unilateral e “comunicação” indireta (a pseudocomunicação) do mundo alienado, esta procura haveria que se dar no ní­vel mesmo da vida cotidiana, recusando todo especialismo artí­stico, polí­tico e teórico(1). Neste ponto, como em outros, a convicção mais profunda dos situacionistas era a de que, como dirá mais tarde Debord, “já não [se] pode combater a alienação sob formas alienadas” (A Sociedade do Espetáculo [SdE], ç 122).

O “nó” que “amarrava” todas essas preocupações era a compreensão de que o conjunto dessas alienações conforma uma totalidade a partir da determinação da forma-mercadoria sobre o conjunto da vida social, das atividades e relações entre os indiví­duos; em outras palavras, o domí­nio da reificação (do latim res: coisa), da coisificação. É o que os situacionistas chamaram de “economização da vida”. É o domí­nio da economia, entendida no sentido estrito de economia de mercado, que submete as relações humanas ââ?¬â? as relações dos homens entre si, a cultura, a relação com o uso do espaço e do tempo de vida, a relação com a história e a destruição da memória no “eterno presente” da produção e do consumo da mercadoria ââ?¬â? í  lógica autônoma da transformação do dinheiro-capital em mais-dinheiro, da relação entre os homens como portadores de mercadorias segundo a lógica própria das trocas mercantis (que se dão segundo o critério do valor econômico).

Enfim, o fato de que as relações produzidas e estabelecidas pelos homens ganham vida própria e, assim, passam a dominá-los; o fato de que, nessas relações, as coisas são produzidas não pela sua utilidade, mas pelo seu valor econômico; de que a partir dessa hierarquia primeira do valor econômico sobre a utilidade das coisas se ergue a hierarquia da economia sobre os homens e suas vidas, e dos especialistas e dirigentes da produção mercantil sobre o conjunto da sociedade; de que essa hierarquia demonstra-se também no Estado, mas antes e sobretudo num sistema completo de hierarquias, alienações e expropriações da vida que está presente em todo o cotidiano e nas instituições separadas que, desde fora, planejam e controlam a cotidianidade.

Os situacionistas, desse modo, reencontravam a seu modo a crí­tica da economia polí­tica. Como Debord dirá mais tarde, em um outro contexto, a crí­tica da economia polí­tica significava, nas condições do capitalismo moderno, a compreensão e o combate í  sociedade do espetáculo(2). O espetáculo, assim, seria o conceito que daria conta da submissão da totalidade da vida cotidiana í  lógica do trabalho assalariado, o trabalho-mercadoria; e, neste sentido, “unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes” (SdE, ç 10): o lazer, o urbanismo, a serialização e homogeneização dos produtos “culturais”, a agressão í  natureza, a intensificação do racismo etc. O princí­pio do espetáculo é a não intervenção, a contemplação, a passividade diante da realidade; em última instância, a transformação dos homens em espectadores de suas próprias vidas. A sua essência: a economia autonomizada, a reificação das relações sociais, a alienação do trabalho.

A edição em 1960, pela revista Arguments, de uma tradução francesa de História e consciência de classe (1923), de George Lukács, cuja temática principal é o da reificação, certamente deve ter tido uma forte influência no desenvolvimento dessa teoria(3). Diversos escritos situacionistas, anteriores a essa publicação, testemunham já a presença da crí­tica da economia polí­tica. Este é o caso de “Posições situacionistas sobre a circulação” (I.S. nú 3, dezembro de 1959), de Debord, que opõe a circulação de mercadorias ao livre uso do espaço e do tempo (questões centrais para os situacionistas, principalmente em torno da temática da crí­tica do urbanismo); e de “O fim da economia e a realização da arte” (I.S. nú 4, junho de 1960, depois publicado no mesmo ano no livro intitulado Crí­tica da polí­tica econômica), de Asger Jorn.

Sabemos o quanto é problemático, hoje, falar em “totalidade”. Em geral, este é um conceito que, em determinadas vozes, faz lembrar ââ?¬â? para o bem ou para o mal ââ?¬â? o velho ideal filosófico de sistema, de saber absoluto. Mas não é disso que se trata para Debord e os situacionistas, e por dois motivos. Primeiro, porque a teoria não é, para eles, um conhecimento positivo, e não se trata, assim, de constituir um conhecimento do todo, um sistema de saber. Nada mais adverso í s suas perspectivas teóricas do que um tal projeto. Na tese 125 de A sociedade do espetáculo, Debord afirma que “o homem é idêntico ao tempo” e, alguns anos mais tarde, no aforismo XXXI dos Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988), repetiria Baltasár Gracián: “Seja a ação, seja o discurso, tudo precisa ser medido pelo tempo. É preciso querer quando se pode; pois nem a estação nem o tempo esperam por ninguém”. A teoria, para Debord, é tão finita e passageira quanto o são as gerações dos homens; produzida no tempo, diz respeito í s lutas e, nesse sentido, cumpre uma função estratégica. Assim, longe de um saber total, ele supunha uma crí­tica total í s condições de existência da sociedade dominada pela mercadoria. E tal crí­tica só podia ser total na medida em que, nesta sociedade, uma determinação se fez total: as relações de compra-e-venda, submetendo a si todas as dimensões da vida. Trata-se, portanto, não de realizar algum tipo de totalidade, mas de nos livrarmos da má totalidade. Debord não lamenta o fato de que a economia tenha dominado tudo, propondo contra isso limitar a economia, mas denuncia a economia como necessariamente totalitária e, contra isso, propõe a sua dissolução ââ?¬â? que é ao mesmo tempo a dissolução do Estado e de todo o sistema único de alienações e hierarquias. “Um tal programa”, dizem Debord e Canjuers, “não propõe aos homens nenhuma outra razão de viver senão a construção por eles mesmos de sua própria vida”(4).

A compreensão crí­tica de totalidade é o que permitiu aos situacionistas estar atentos aos novos sinais da contestação social, aos rastros do que viria: num primeiro momento, as insurreições operárias no Leste europeu (Alemanha, Hungria…), depois ââ?¬â? e nesses casos, foram os primeiros e, até [19]68, os únicos ââ?¬â? o “crime” e a “destruição das máquinas de consumo” nos paí­ses capitalistas desenvolvidos, com o surgimento das primeiras greves selvagens na França e das novas formas de contestação juvenil (não apenas estudantil).

Em todo esse esforço teórico de compreensão das novas condições de existência social, e das lutas contra elas, um momento importante foi o documento ââ?¬â? intitulado Preliminares para uma definição da unidade do programa revolucionário ââ?¬â? escrito em julho de 1960 por Guy Debord e Pierre Canjuers (pseudônimo de Daniel Blanchard), membro do grupo Socialismo ou Barbárie(5). Esse documento expressava uma aproximação entre as posições revolucionárias das vanguardas artí­sticas e as do movimento operário. Em seu conteúdo, esse pequeno texto buscava demonstrar como os problemas da cultura e aqueles da revolução social haviam se tornado um só, e dizia respeito ao uso da vida pelos homens.

Nesse sentido, refletia teoricamente a necessidade da compreensão das novas formas de contestação contra a “negação da vida” pela extensão cotidiana do domí­nio da economia. As páginas da Internacional Situacionista vão, nos anos seguintes, buscar acompanhar essas formas de contestação e refleti-las teoricamente.

Em agosto de 1961, no número 6 da I.S., a nota editorial se intitula: “Instruções para uma tomada de armas”. Esta nota defendia as tendências conselhistas que surgiam em novos grupos autônomos da Europa e definia que a revolução da vida cotidiana e a reivindicação dos Conselhos Operários seriam os critérios fundamentais para a colaboração dos situacionistas com as novas forças revolucionárias. No mesmo número, uma nota intitulada “Defesa incondicional” propunha a solidariedade com a nova revolta da juventude em seus métodos mais radicais, considerados criminosos por sua violência, e que contestavam a famí­lia, os lazeres, o trabalho etc.

No número 7, aparecido em abril de 1962, os situacionistas falavam da luta contra o armamento nuclear e a construção de abrigos anti-nucleares pelos mesmos governos que impulsionavam a corrida armamentista, nos EUA, na Alemanha Federal, na Suí­ça, Suécia etc(6). E, na nota “Os maus dias findarão”, analisaram o surgimento das novas formas de contestação operária, anti-sindical e violenta, como manifestações de operários fabris em Nápoles, que quebraram escritórios da fábrica, incendiaram ônibus e enfrentaram a polí­cia num protesto em solidariedade í  greve dos condutores de ônibus, ou como o ataque de mineiros franceses aos carros estacionados na empresa em que trabalhavam. Nesses casos, segundo a avaliação situacionista, se exemplificava a luta contra a expropriação do tempo marginal de transporte e os objetos do consumo mercantil. “Do mesmo modo que a primeira organização do proletariado clássico foi precedida, nos fins do século 19, de uma época de gestos isolados, ââ?¬Ë?criminososââ?¬â?¢, visando a destruição das máquinas de produção, que eliminavam as pessoas de seu trabalho, assiste-se neste momento í  primeira aparição de uma onda de vandalismos contra as máquinas de consumo, que muito seguramente também nos eliminam da vida” (I.S. nú 7, p. 11)(7).

No número 10, de março de 1966, publicou-se uma longa análise elaborada por Debord sobre a rebelião negra em Watts, Estados Unidos, intitulada “O declí­nio e a queda da economia espetacular-mercantil”. Nesta análise, Debord volta a considerar os métodos radicais, como os saques, os incêndios, as barricadas e os enfrentamentos com a polí­cia, relacionando-os com a resistência í  mercadoria, í  hierarquia e í s separações que a sociedade de mercado necessariamente produz e, nas condições do capitalismo moderno, aprofunda. Mais uma vez, manifestava-se, para ele, que a resistência í  mercadoria havia se tornado tão cotidiana em seus alvos e em suas formas como a própria mercadoria o havia em seu domí­nio.

É neste espí­rito que, em 1966, os situacionistas e um grupo de estudantes que lhe era simpático promovem o chamado “escândalo de Strasbourg”. Esse grupo de estudantes fora conduzido í  direção da seção local da UNEF (União Nacional de Estudantes da França) e, fazendo uma crí­tica do sindicalismo estudantil, planeja a dissolução da entidade, constrói uma “Associação pela reabilitação de Karl Marx e Ravachol”, difunde em cartazes uma história em quadrinhos chamada “O retorno da Coluna Durruti” e, no dia da aula inaugural do perí­odo, em novembro de 1966, evento sempre tão solene e ritualí­stico na Universidade francesa, distribuiu um pequeno ensaio intitulado Da miséria no meio estudantil, considerada nos seus aspectos econômico, polí­tico, sexual e especialmente intelectual e de alguns meios para a prevenir(8). Este ensaio, editado naquele momento em 10 mil exemplares (pois nos meses seguintes, iria ser editado uma infinidade de vezes, inclusive no exterior), denunciava a condição alienada e auto-contemplativa da situação do estudante francês, relacionando-a í  totalidade da nova miséria social do capitalismo desenvolvido. Tudo isso foi, efetivamente, um escândalo e deu uma tonalidade radical, pela primeira vez, í  nova contestação juvenil, contemporânea das novas formas da contestação proletária.

Assim, quando em 1967, A Sociedade do Espetáculo é editado e, alguns meses depois ocorre a revolta de maio na França, revolta que, a partir de um estopim estudantil (provocado, em suas origens, pelas provocações dos antiestudantes enragés), incendiou-se nas centenas de greves operárias com ocupação de fábrica, o autor desse livro e seus comparsas eram já identificados í s tendências teóricas mais extremistas ââ?¬â? porque pretendiam uma revolução total ââ?¬â? da nova contestação social. E dessa maneira foram entendidos ââ?¬â? para o bem ou para o mal ââ?¬â? pelos participantes de maio de [19]68.

* * *

“De que tu te ocupas exatamente? Eu não sei bem.
ââ?¬â? Da reificação, responde Gilles.
ââ?¬â? É um estudo pesado, acrescentei.
� Sim, diz ele.
ââ?¬â? Estou vendo, observa Carole admirada. É um trabalho muito sério, com livros grossos e muitos papéis sobre uma mesa grande.
ââ?¬â? Não, diz Gilles, eu passeio. Principalmente eu passeio.”
MICHÃ?Ë?LE BERNSTEIN, Tous les chevaux du roi.

Em Preliminares para uma definição da unidade do programa revolucionário, os seus autores compreendiam que a “base” das perspectivas teóricas que eles ali anunciavam não era senão “a luta do proletariado em todos os ní­veis; e todas as formas de recusa explí­cita ou de indiferença que devem combater permanentemente, por todos os meios, a instável sociedade existente. A sua base é, do mesmo modo, a lição do fracasso essencial de todas as tentativas de mudanças menos radicais. É, enfim, a exigência que se faz hoje em certos comportamentos extremos da juventude (cujo adestramento se demonstra menos eficaz) e, agora, de alguns meios de artistas”(9).

No mesmo sentido afirma a tese 115, de A sociedade do espetáculo, acerca das novas manifestações de crí­tica prática: “Aos novos sinais de negação, incompreendidos e falsificados pela ordenação espetacular, que se multiplicam nos paí­ses mais avançados economicamente, pode-se já tirar a conclusão de que uma nova época está aberta: depois da primeira tentativa de subversão operária, é agora a abundância capitalista que falhou. Quando as lutas anti-sindicais dos operários ocidentais são reprimidas primeiro que tudo pelos sindicatos, e quando as correntes revoltadas da juventude lançam um primeiro protesto informe, no qual, porém, a recusa da antiga polí­tica especializada, da arte e da vida cotidiana, está imediatamente implicada, estão aí­ as duas faces de uma nova luta espontânea que começa sob o aspecto criminoso. São os signos precursores do segundo assalto proletário contra a sociedade de classe. Quando os enfants perdus deste exército ainda imóvel reaparecem nesse terreno que se tornou outro e permaneceu o mesmo, eles seguem um novo ââ?¬Ë?general Luddââ?¬â?¢, que desta vez os lança na destruição das máquinas do consumo permitido”.

Com efeito, os situacionistas pretendiam expressar teoricamente esses “novos sinais da negação”, inserindo-se praticamente neles: “A I.S. não apenas viu chegar a subversão proletária moderna; chegou com ela. Não a anunciou como um fenômeno exterior, pela extrapolação glacial do cálculo cientí­fico: a I.S. foi ao seu encontro”, dizem Debord e Gianfranco Sanguinetti, no documento em que anunciam, em 1972, o fim da Internacional Situacionista(10).

Nesses trechos, seus autores afirmam um método teórico fundamental e que constitui o núcleo de como os situacionistas entendiam a teoria, tendo a negação prática como base da crí­tica teórica. Em distintos momentos, antes e após [19]68, os situacionistas afirmaram fazer a “teoria em ato”, a “teoria do momento mesmo”, e que a teoria revolucionária tornara-se um “valor de uso” e, como tal, deveria ser usada. Entendiam a relação entre crí­tica prática e crí­tica teórica como um mesmo trabalho do negativo. Eles recusavam, assim, qualquer teoria separada, por mais coerente que fosse; coerência que seria, no modo da separação, apenas ideologia revolucionária, “a coerência do separado da qual o leninismo”, segundo Debord, “constitui o mais alto esforço voluntarista” (SdE, ç 105). “Nós não temos nenhuma necessidade”, diz ele em outro contexto, referindo-se í  própria experiência da I.S., “de ââ?¬Ë?pensadoresââ?¬â?¢ enquanto tais, isto é, de pessoas produzindo teorias fora da vida prática. Na medida em que nossas teorias em formação me parecem tão justas quanto possí­vel, pelo momento e nas condições que encaramos, eu admito que todo desenvolvimento teórico que pode se inscrever na coerência do ââ?¬Ë?discurso situacionistaââ?¬â?¢ vem da vida prática, decola desta legitimamente. Mas isto não é, ainda, em nada suficiente. É necessário que as fórmulas teóricas retornem í  vida prática, senão elas não valem o esforço de um quarto de hora”(11). Não é difí­cil ver a relação dessas palavras com a crí­tica do fetichismo mercantil e o mundo de separações que ele funda. Portanto, a relação entre a denúncia da inversão operada entre homem e mundo pela produção mercantil e a crí­tica da própria inversão operada pela ideologia (aqui totalmente recusada) entre vida e pensamento, da qual, segundo ele, o espetáculo é a materialização (SdE, capí­tulo IX).
Esse aspecto leva-nos a uma questão da suma importância hoje em dia, quando pomo-nos a pensar a obra de Debord e a experiência situacionista. Os esforços que se têm feito, em determinados setores, para separar uma parte da obra de Debord de outras dimensões de seu pensamento, expressam antes de tudo o esforço em separar o conjunto de seu pensamento da sua atividade prática, em dissolver sua relação com as misérias e as lutas de seu tempo. Assim, na mais recente recepção midiática de sua obra, toma-se o Debord “filósofo” contra o avant-garde, o escritor contra o cineasta, o “artista” contra o revolucionário.

Também problemática nesse aspecto é a tendência ââ?¬â? hoje comum no Brasil ââ?¬â? de aproximá-lo das formulações do grupo alemão Krisis, a partir de uma centralidade separada (que, enquanto separada, não pode logicamente permanecer como centro de nada) de sua crí­tica do fetichismo mercantil, sua crí­tica da economia polí­tica. O livro que prepara essa aproximação (A. Jappe, Guy Debord), livro conceitual e historiograficamente sério, talvez o melhor sobre este personagem, tem o mérito teórico e intelectual de argumentar claramente em defesa da tese de uma divisão entre “dois” Debord: o da crí­tica do fetichismo mercantil e o da luta de classes ââ?¬â? tal como O colapso da modernização de R. Kurz defende a existência de “dois Marx”. “Debord demonstrou, ainda que de modo sucinto, o caráter inconsciente da sociedade regida pelo valor. Mas, ao mesmo tempo, refere-se ao aspecto da teoria de Marx que põe no centro os conceitos de ââ?¬Ë?classeââ?¬â?¢ e de ââ?¬Ë?luta de classesââ?¬â?¢, dos quais também se prevalece o movimento operário. A insistência na ââ?¬Ë?luta de classesââ?¬â?¢ desconhece, entretanto, a natureza das classes criadas pelo movimento do valor e que só têm sentido em seu interior. Proletariado e burguesia só podem ser os instrumentos vivos do capital variável e do capital fixo; são os comparsas e não os diretores da vida econômica e social. Seus conflitos, isto é suas ââ?¬Ë?lutas de classesââ?¬â?¢, passam necessariamente pela mediação de uma forma abstrata e igual para todos ââ?¬â? dinheiro, mercadoria. Desde então, tratava-se apenas de lutas de distribuição no interior de um sistema que ninguém punha seriamente em dúvida. (“¦) Quando acredita que é possí­vel, nas condições atuais, a existência de um sujeito por sua própria natureza ââ?¬Ë?foraââ?¬â?¢ do espetáculo, Debord parece esquecer o que ele mesmo declarou sobre o caráter inconsciente da economia mercantil, e o esquece novamente quando identifica esse sujeito ao proletariado”(12).

A seriedade teórica e intelectual não livra ninguém, no entanto, de cair em unilateralismos e em sérios problemas de análise. É o que, parece-me, acontece com a análise de Jappe. Na argumentação acima citada, é chave a expressão “ao mesmo tempo”, pois é ela que dissocia dois elementos históricos a meu ver inseparáveis: o surgimento da crí­tica da economia polí­tica, em sua forma téorica, já nas obras juvenis de Marx(13), e as lutas proletárias que naquele momento a realizavam praticamente, manifestando-se contra as hierarquias do trabalho assalariado14. E, por isso, dissolve também a ligação metodológica ââ?¬â? reconhecida por Debord e os situacionistas ââ?¬â? entre a crí­tica situacionista da mercadoria e as novas formas de subversão que se apresentavam nos paí­ses capitalistas desenvolvidos nos anos [19]60 (e que se prolongaram até os [19]70). Para além de uma questão histórica, penso que há aqui uma serí­ssima questão teórico-metodológica e, antes de tudo, prática sobre qual é e deve ser o ponto de partida da crí­tica teórico-prática: a negação conceitual ou a negação prática.

Ligada a isso, está a idéia afirmada por Jappe de que, dados pelo fetichismo, proletariado e burguesia seriam “instrumentos do capital variável e do capital fixo”(15). Se se quer dizer que essas classes se constituem a partir do domí­nio da economia autonomizada, isso é uma verdade que, no entanto, se torna falsa quando não se tem presente a compreensão de que o capital enquanto tal é uma forma de relação social entre os homens, relação histórica e, principalmente, antagônica; relação que se produz e reproduz cotidianamente, através dos atos singulares de indiví­duos singulares e, por isso mesmo, a cada momento em xeque; relação na qual, ao experimentarem cotidianamente o antagonismo de suas vidas com a economia autônoma, @s proletarizad@s manifestam-se negativamente de múltiplas formas, não sendo portanto verdadeiro que as “suas ââ?¬Ë?lutas de classesââ?¬â?¢ passam necessariamente pela mediação de uma forma abstrata e igual para todos ââ?¬â? dinheiro, mercadoria” (grifos meus). Finalmente, longe de constituí­rem apenas um dos “pólos de uma mesma unidade” (expressão de R. Kurz, cuja tese é aqui retomada por Jappe), @s proletarizad@s, por suas condições negativas de existência, encontram-se objetiva e subjetivamente negad@s em tal relação. Por isso mesmo, portam, como experiência cotidiana, a negação da unidade sintética da relação capital(16).

A posição de Debord quanto ao caráter revolucionário do proletariado não significa, de modo algum, qualquer tipo de representação metafí­sica sobre tais potencialidades revolucionárias. Aliás, proletariado é um conceito que se precisa ter em permanente reconsideração, dadas as transformações contí­nuas na forma de existência d@s proletarizad@s, transformações determinadas tanto por suas lutas quanto, em conseqüência, pelas transformações das relações de produção capitalistas. Longe de qualquer tipo de idealização, Debord considerava que a verdade revolucionária do proletariado estava não no que ele é, mas no seu devir.

Há particularmente uma passagem em que Debord retoma explicitamente essa questão ââ?¬â? de qualquer modo já antes enfrentada pelos situacionistas e em A sociedade do espetáculo ââ?¬â?, rechaçando tanto a negação do caráter revolucionário do proletariado pelo que ele é, quanto a afirmação disso na dependência de uma vanguarda dirigente. Eis o trecho, que fala melhor por si mesmo do que qualquer esforço de simplesmente reproduzir seu conteúdo: “Os observadores do governo, tanto quanto os do partido dito comunista falam do que os operários são ââ?¬â? e a cada vez restabelecem como os operários não são revolucionários, pois o único fato de que eles o possam dizer confirma empiricamente sua análise. Sobre o mesmo terreno da metodologia burguesa, mas mais extravagantes ainda, os maoí­stas crêem que os operários são tout í  fait revolucionários ââ?¬â? e mais, segundo as grotescas modalidades maoí­stas! ââ?¬â?, e eles querem sinceramente lhes ajudar a sê-lo: como em Cantão em 1927. Mas o problema histórico não é de nenhum modo o de compreender o que os operários ââ?¬Ë?sãoââ?¬â?¢ ââ?¬â? hoje eles não são senão operários ââ?¬â? mas o que eles vão devir. Este devir é a única verdade do ser do proletariado, e a única chave para compreender verdadeiramente o que são já os operários”(17).

Assim, a aproximação entre Debord e o Krisis só é possí­vel se se leva em conta as mediações postas pelo próprio Krisis em sua análise das lutas de classes, da obra de Marx e, como o faz Jappe, da obra de Debord. Assim fazendo-se, verificar-se-á que essa aproximação se dá ââ?¬â? e com coerência! ââ?¬â? somente a partir do próprio Krisis, na medida em que esse grupo considera razoável a separação entre a crí­tica teórica do fetichismo (em Marx e em Debord) e a crí­tica prática experimentada pelas lutas proletárias. Porém, ainda assim, é essa separação mesma que permanece discutí­vel.

* * *

“No livro que preparo atualmente, veremos, eu espero, de forma mais clara do que nas obras precedentes, que a I.S. trabalhou no centro dos problemas que a sociedade moderna a si coloca. Então eu creio que se admitirá que alguns objetivos gerais da I.S. são bem traçados no concreto, como tu reclamas.”
Carta de Guy Debord a Asger Jorn, 13 de janeiro de 1964.

Mas afinal do que trata A sociedade do espetáculo? O único número da revista da seção italiana da I.S., publicado em 1969, traz uma tradução do 4ú capí­tulo desse livro, capí­tulo apresentado ali como sendo a parte central da obra, e apresenta também uma espécie de sumário temático de todo o livro. É, neste sentido, uma boa introdução í  leitura dessa obra, particularmente o trecho reproduzido abaixo:

” ââ?¬Ë?O proletariado como sujeito e como representaçãoââ?¬â?¢ é o capí­tulo que ocupa a parte central do livro. O primeiro capí­tulo expõe o conceito de espetáculo. O segundo define o espetáculo como um momento no desenvolvimento do mundo da mercadoria. O terceiro descreve as aparências e as contradições sócio-polí­ticas da sociedade espetacular. O quarto, traduzido aqui, retoma o movimento histórico anterior (procedendo sempre do abstrato ao concreto) sob a forma da história do movimento revolucionário. É uma sí­ntese do fracasso da revolução social e de seu retorno. Ele desemboca sobre a questão da organização revolucionária. O quinto capí­tulo trata do tempo histórico e do tempo da consciência histórica. O sexto descreve o ââ?¬Ë?tempo espetacularââ?¬â?¢ da sociedade atual como ââ?¬Ë?falsa consciência do tempoââ?¬â?¢ e como ââ?¬Ë?tempo da produçãoââ?¬â?¢ de uma sociedade histórica que recusa a história. O sétimo critica a organização do espaço social, o urbanismo e a divisão do território. O oitavo recoloca na perspectiva revolucionária histórica a dissolução da cultura enquanto ââ?¬Ë?separação do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisãoââ?¬â?¢, e une í  crí­tica da linguagem uma explicação da linguagem mesma deste livro, que ââ?¬Ë?não é a negação do estilo, mas o estilo da negaçãoââ?¬â?¢, o emprego do pensamento histórico, sobretudo aquele de Hegel e de Marx, e o emprego histórico da dialética. O nono considera a sociedade espetacular como materialização da ideologia e a ideologia como ââ?¬Ë?a base do pensamento de uma sociedade de classesââ?¬â?¢. Ao auge de sua perda da realidade corresponde sua reconquista pela prática revolucionária, a prática da verdade em uma sociedade sem classes organizada em Conselhos, lá ââ?¬Ë?onde o diálogo se armou para tornar vitoriosas suas próprias condiçõesââ?¬â?¢ “(18).

Alguns anos mais tarde, no Prefácio que preparou para a 4ê edição italiana de A sociedade do espetáculo, Debord afirma que, desde a primeira edição do livro, “o espetáculo aproximou-se de modo mais exato de seu conceito”: “Foi possí­vel ver a falsificação tornar-se mais densa e descer até a fabricação das coisas mais banais, qual bruma pegajosa que se acumula no ní­vel do solo de toda a existência cotidiana. Foi possí­vel ver, até a loucura ââ?¬Ë?telemáticaââ?¬â?¢, a pretensão do absoluto controle técnico e policial sobre o homem e as forças naturais, controle cujos erros aumentaram tão depressa quanto os recursos que movimenta. Foi possí­vel ver a mentira estatal se desenvolver em si e por si, no perfeito esquecimento de seu ví­nculo conflituoso com a verdade e a verossimilhança, a ponto dessa mentira descrer de si mesma e se substituir de hora em hora”(19).

Já nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo, texto de 1988 que se debruça não sobre a anterior obra de 1967, mas sobre a coisa mesma e seu desenvolvimento nos vinte anos anteriores, Debord propõe-se a acrescentar, em relação a A sociedade do espetáculo, no plano teórico, “apenas um detalhe”: “Em 1967, eu distinguia duas formas, sucessivas e rivais, do poder espetacular: a concentrada e a difusa. Ambas pairavam acima da sociedade real, como seu objetivo e sua mentira. A primeira forma, ao destacar a ideologia concentrada em torno de uma personalidade ditatorial, havia acompanhado a contra-revolução totalitária, fosse nazista ou stalinista. A segunda forma, ao instigar os assalariados a escolherem livremente entre uma grande variedade de mercadorias novas que se enfrentavam, representara a americanização do mundo, assustadora sob certos aspectos, mas também sedutora nos paí­ses onde as condições das democracias burguesas de tipo tradicional conseguiram se manter por mais tempo. Uma terceira forma constituiu-se a partir de então, pela combinação das duas anteriores, e na base geral de uma vitória da que se mostrou mais forte, mais difusa. Trata-se do espetacular integrado, que doravante tende a se impor”(20).

E explica, mais adiante: “O espetacular integrado se manifesta como concentrado e difuso, e, desde essa proveitosa unificação, conseguiu usar amplamente os dois aspectos. O anterior modo de aplicação destes mudou bastante. No lado concentrado, por exemplo, o centro diretor tornou-se mais oculto: já não se coloca aí­ um chefe conhecido, nem uma ideologia clara. No lado difuso, a influência espetacular jamais marcara tanto quase todos os comportamentos e objetos produzidos socialmente. Porque o sentido final do espetacular integrado é o fato de ele ter se integrado na própria realidade í  medida que falava dela e de tê-la reconstruí­do ao falar dela. Agora essa realidade não aparece diante dela como coisa estranha. Quando o espetacular era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe escapava; quando era difuso, uma pequena parte; hoje, nada lhe escapa. O espetáculo confundiu-se com toda a realidade, ao irradiá-la. Como era teoricamente previsí­vel, a experiência prática da realização sem obstáculos dos desí­gnios da razão mercantil logo mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do mundo. Exceto uma herança ainda considerável, mas com tendência a diminuir, de livros e construções antigas ââ?¬â? que são, aliás, cada vez mais selecionados e considerados de acordo com as conveniências do espetáculo ââ?¬â?, já não existe nada, na cultura e na natureza, que não tenha sido transformado e poluí­do segundo os meios e os interesses da indústria moderna”(21). As caracterí­sticas do espetacular integrado que ele analisa em todo o restante desses Comentários, e sobre os quais seriam necessárias algumas considerações as quais não podemos fazer aqui, são: “a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo”(22).

* * *

“O que, ao contrário, constitui o mérito de nossa teoria é o fato não de ter uma idéia justa, mas de ter sido naturalmente conduzida a conceber essa idéia. Em resumo, não se poderia muito repetir senão que aqui ââ?¬â? como no domí­nio inteiro da prática ââ?¬â? a teoria está aí­ bem mais para formar o prático, para lhe fazer o julgamento, do que para lhe servir de indispensável apoio a cada passo de que necessita a realização de sua tarefa.”
CLAUSEWITZ, Campanha de 1814.

A primeira edição de A sociedade do espetáculo só veio í  luz no Brasil em julho de 1997(23), quase trinta anos após a primeira edição francesa e mais de duas décadas de sua tradução nas principais lí­nguas do mundo. Em 1972, houve uma primeira edição em Portugal, que Debord considerou a única que, com certeza, tivera até então uma boa tradução logo na primeira tentativa(24). Esta presente edição pelo Coletivo Acrático Proposta é feita a partir dessa tradução portuguesa com as naturais e não prejudiciais alterações lingüí­sticas(25). Sua intenção é baratear o acesso í  obra e facilitar o potlatch: daí­ porque ela venha fotocopiada, e com páginas duplas em folha de tamanho A4, em formato brochura (que, ao serem retirados os grampos, possibilita a sua reprodução barata em qualquer esquina). Revela com isso suas intenções práticas: quer contribuir não apenas para uma difusão não acadêmico-editorial da obra, mas para que a nova geração de contestadores sociais possa fazer das teses aqui apresentadas algum uso.

Esse aspecto tem também uma importância histórica. Mais de trinta anos após sua edição na França e seu uso prático pelos contestadores que se multiplicaram na Europa após [19]68, A sociedade do espetáculo agora encontra alguma ligação com os movimentos sociais que atuam sob e contra o Estado brasileiro. Esta ligação, com a presente edicão, conhece um modo de divulgação da obra que foi bastante usual no final dos anos [19]60 e em todos os anos [19]70 na Europa: sua divulgação através de uma edição pirata. É verdade que a edição brasileira anterior feita legalmente já permitiu um certo encontro de uma não tão ampla variedade de indiví­duos e grupos com a teoria crí­tica do espetáculo, o que foi reforçado depois com a edição do livro de Anselm Jappe, com a disponibilização de vários textos situacionistas nas páginas eletrônicas “Biblioteca Virtual Revolucionária”, “Na luta contra a alienação humana”, “Conselhos Operários” e “Comunistas de Conselhos” e pelas publicações na grande imprensa, uma vez ou outra, de artigos de acadêmicos sobre Guy Debord e sua obra. E assim, hoje, e apenas hoje, a crí­tica social desenvolvida por Debord começa a dar-se a conhecer e, pontualmente, a manter algum tipo de relação com uns poucos movimentos contestatórios que atuam por aqui. Esta é, talvez, a grande novidade, a qual vem compor (e com ela contribuir) esta edição pirata de A sociedade do espetáculo.

E este caráter de novidade tem uma explicação histórica. Em [19]68, e nos anos seguintes, não se verificou por aqui qualquer influência da teoria situacionista sobre o movimento estudantil e suas lutas contra a ditadura. Não há qualquer registro histórico de uma tal influência: não há conhecimento de nenhum panfleto, nenhuma inscrição em parede, nenhuma publicação ou grupo organizado que tenha manifestado, em suas posições, qualquer semelhança com a crí­tica do espetáculo, do trabalho assalariado, da sociedade mercantil e do Estado, crí­tica que, na Europa, os situacionistas estavam a sustentar. A influência do próprio [19]68 francês ââ?¬â? apresentado aqui e na Europa nos anos seguintes como uma “revolução estudantil” ââ?¬â? não se exerceu senão sobre o “estado de ânimo” da geração de estudantes que, em [19]68, combatia a ditadura, não se verificando nestes qualquer identificação com í s tendências profundas daquele movimento e suas expressões teóricas.

Os próprios situacionistas, em sua análise do maio francês, não deixaram de exagerar a influência do “movimento de ocupações” (de fábrica pelos operários grevistas) em maio sobre as lutas que se desenvolviam nos paí­ses semi-industrializados da América Latina. “A luta nos paí­ses capitalistas modernos”, dizem eles em uma primeira publicação sua sobre o movimento de maio, “tem naturalmente relançado a agitação dos estudantes contra os regimes ditatoriais, e nos paí­ses sub-desenvolvidos. Ao fim de maio [de 68], houve violentos confrontos em Buenos Aires, em Dakar, em Madrid, e uma greve de estudantes do Peru. Em junho, os incidentes se estenderam ao Brasil; ao Uruguai ââ?¬â? onde culminaram em uma greve geral ââ?¬â?; í  Argentina; í  Turquia, onde as universidades de Istambul e de Ankara fora ocupadas e fechadas sine die; e até ao Congo onde os secundaristas exigiram a supressão dos exames”(26).

Situado num capí­tulo de Enragés e situacionistas no movimento das ocupações, sobre as perspectivas da revolução mundial após o [19]68 francês, esse diagnóstico relaciona-se ali não diretamente com a influência das idéias situacionistas, mas com o desenvolvimento das lutas que se davam a partir da Europa e com as quais, segundo a avaliação da I.S., as idéias situacionistas teriam uma profunda e essencial ligação. É precisamente sobre esta aspecto que pode-se falar em exagero, na medida em que as questões práticas, tais como foram assumidas pelo movimento, ainda que sem dúvida dissessem respeito aos problemas do capitalismo em sua configuração mundial, não se desenvolviam aqui tendo as mesmas bases objetivas e perspectivas subjetivas que tiveram no movimento de maio e nas lutas que o seguiram nos anos seguintes na Europa (Itália, Espanha e mesmo nas experiências de autonomia proletária em Portugal durante a crise do salazarismo).

Na verdade, como sabemos, as lutas estudantis que se deram aqui contra a ditadura no final dos anos [19]60 tinham predominantemente um caráter democrático do ponto de vista polí­tico e as tendências “extremistas” organizadas mais influentes se mantiveram no horizonte de uma “revolução democrático-nacional”. Socialmente, tais lutas estudantis expressavam em grande medida a pressão da nova “classe média” que, constituí­da no interior do Estado e da nova fase de industrialização que teve partida nos anos [19]50, tinha no diploma universitário uma via de ascensão social. Falado assim, esse quadro não pretende fazer esquecer que aqueles foram anos ricos em discussões e debates, nos quais, portanto, haveria a possibilidade de se ver uma outra perspectiva teórico-programática surgir e, talvez, com conhecimento das tendências mais extremas que se desenvolviam na Europa naquele momento. Mas, ao final de [19]68, particularmente com a imposição fascista do AI-5, todas essas possibilidades ficariam definitivamente travadas, restando, em geral, para os jovens mais combativos, o ilusório caminho da luta armada(27).

Hoje, sem dúvida, Debord e seu pensamento ganham no Brasil como na Europa uma nova recepção, dessa vez midiática, que nada mais é do que um produto medí­ocre da reedição das obras e a publicação agora de suas Correspondências, buscando acompanhá-las na “autonomia da aparência” própria do espetáculo. Para nós, no entanto, repitamo-lo, o efetivamente novo é a recepção de sua crí­tica social por uma parcela bastante minoritária de ativistas sociais. Esse parcela, longe de reivindicar uma suposta tradição situacionista, quer, a partir de suas próprias lutas cotidianas, estabelecer um diálogo com a teoria crí­tica do espetáculo, enquanto crí­tica do mercado, do Estado e de seu sistema de alienações. Como disse, esta edição do Coletivo Acrático Proposta tem a ver com isso.

Campinas, SP, novembro de 2001

Notas

1. Do ponto de vista da formulação teórica dessa questão, três textos de Debord são fundamentais: Preliminares para uma definição da unidade do programa revolucionário (1960, em conjunto com Pierre Canjuers), Perspectivas de modificação consciente da vida cotidiana (publicado na I.S. nú 6, agosto de 1961) e Os situacionistas e as novas formas de atuação na polí­tica e na arte (1963).

2. Cf. Debord, “Notes pour servir í  lââ?¬â?¢histoire de lââ?¬â?¢I.S. de 1969 a 1971″ in La Véritable Scission dans lââ?¬â?¢Internationale [1972], Paris, Fayard, 1998, p. 95.

3. Ver, sobre isso, R. Gombin, Les Origines du gauchisme, Paris, Seuil, 1971; P. Wollen, “The Situationist International”, in New Left Review, London, March/April 1989, pp. 67 ss; A. Jappe, Guy Debord [1993], Petrópolis, Vozes, 1999, pp. 37 ss..

4. P. Canjuers, G. Debord, “Préliminaires pour une définition de lââ?¬â?¢unité du programme révolutionaire” [1960], in D. Blanchard, Debord dans le bruit de la cataracte du temps, Paris, Sens & Tonka, 2000, p. 54; Preliminares para uma definição da unidade do programa revolucionário, tradução para o português de Emiliano Aquino e Romain Dunand, no prelo (disponí­vel na home page “Debordiana” ââ?¬â? www.geocities.com/debordiana).

5. Grupo surgido em 1949, na França, do qual participaram Cornelius Castoriadis, Claude Lefort, Jean-François Lyotard, dentre outros; S. ou B. surgiu a partir do rompimento de seus fundadores com o Partido Comunista Internacionalista (trotskista) e ââ?¬â? a partir da crí­tica do suposto caráter “operário” e “pós-capitalista” da URSS, como sustentava Trotsky e seus companheiros, afirmando ao contrário seu caráter capitalista ââ?¬â? evoluiu progressivamente para uma posição em defesa da “autonomia operária”. Os textos que mais expressam essas reflexões são aqueles do próprio Castoriadis, particularmente os intitulados “Sobre o conteúdo do socialismo” que, num conjunto de três, foram formulados a partir de 1958. Entre o final de 1960 e maio de 1961, Debord participou de reuniões e atividades do grupo Socialismo ou Barbárie; com um grupo de seus militantes, foi a Bélgica, entre dezembro e janeiro, acompanhar atividades relativas í s greves que ocorriam naquele momento naquele paí­s; e, por fim, chegou a participar do Congresso do Pouvoir Ouvrier (Poder Operário) belga, pequena organização ligada ao Socialismo ou Barbárie francês. Em 5 de maio de [19]61, Debord dirige uma carta ao S. ou B. demitindo-se de sua participação, devido í  centralização extrema que ele encontrava ali e que se expressaria numa relação professores-alunos entre os militantes mais antigos e os mais novos. A esse respeito, ver Debord, Correspondance II, Paris, Fayard, 2001; e C. Bourseiller, Vie et mort de Guy Debord, Paris, Plon, 1999, pp. 149 ss e 164 ss.

6. Essa é uma questão que permanecerá presente nas preocupações situacionistas, que a consideram um exemplo da “organização estatal da sobrevivência”. Assim, quando em abril de 1963, na Inglaterra, o grupo clandestino Spies for peace revelou publicamente planos governamentais de preparação de uma eventual guerra nuclear, os situacionistas organizaram na Dinamarca uma mostra em homenagem í  ação do grupo inglês e como forma de manter e prosseguir a luta em torno dessa questão.

7. Para Debord, esses seriam os indí­cios da nova contestação social presente nos anos [19]60, articulando as lutas anti-sindicais dos operários, suas greves selvagens, e a revolta juvenil mais radical que buscava a transformação da vida cotidiana (o que, com certeza, o [19]68 francês e o amplo movimento contestatório dos anos seguintes iriam confirmar).

8. Em Portugal, foi editada em 1983, por Fenda Edições, na cidade de Coimbra, uma tradução de Júlio Henriques; essa mesma tradução encontra-se disponí­vel na internet, no endereço [www.terravista.pt/IlhadoMel/1540/miseriaestudantil.htm], e no Brasil circula uma distribuição potlatch sob o selo editorial @s enraivecidos.

9. P. Canjuers, G. Debord, Preliminares para uma definição da unidade do programa revolucionário, segundo a tradução para o português publicada pela home page “Debordiana” ââ?¬â? www.geocities.com/debordiana.

10. G. Debord e G. Sanguinetti, “Thí¨ses sur lââ?¬â?¢Internationale situationniste et son temps” in La Véritable Scission dans lââ?¬â?¢Internationale, edição citada, pp. 15-16.

11. G. Debord, “Rapport de Guy Debord í  la VIIe Conférence de lââ?¬â?¢I.S. í  Paris (extraits)” [1966], in La Véritable Scission dans lââ?¬â?¢Internationale, edição citada, pp. 132-133.

12. A. Jappe, Guy Debord, edição citada, pp. 58-59.

13. Particularmente os Manuscritos econômico-filosóficos, Miséria da filosofia, Trabalho assalariado e capital e Salário, preço e lucro.

14. A contemporaneidade da crí­tica teórica e da crí­tica prática é o que, do ponto de vista teórico-metodológico, segundo Marx, o diferenciava da economia polí­tica clássica, segundo diz no Posfácio da 2ê edição alemã de O capital (1873); nesse texto, ele identifica claramente a economia polí­tica com as relações de produção capitalistas, e a crí­tica da economia polí­tica com as lutas do proletariado, entendendo-a como a sua expressão teórica. A partir de 1830, em França e na Inglaterra, “a luta de classes reveste, na teoria como na prática, formas cada vez mais declaradas, cada vez mais ameaçadoras. É ela quem dá o toque de finados da economia burguesa cientí­fica”, diz Marx. E, quanto a crí­tica da economia polí­tica, diz ele mais adiante, “Na medida em que representa uma classe, tal crí­tica só pode representar aquela cuja missão histórica é revolucionar o modo-de-produção capitalista e, finalmente, abolir as classes ââ?¬â? o proletariado”. Uma excelente análise dessa relação entre a teoria marxiana e as lutas proletárias ââ?¬â? apesar da presença ali de conceitos questionáveis como “marxismo” e “sistema marxista” ââ?¬â? pode ser encontrada na obra de Karl Korsch Marxismo e filosofia (1923), livro que, sem dúvida, também teve influência no pensamento de Debord, particularmente quanto í  crí­tica da ideologia e a sua concepção de teoria.

15. Capital variável diz do dinheiro-capital investido na compra de força de trabalho e que, pela produção da mais-valia, varia (aumenta) em relação í  sua quantia inicialmente investida; Marx o diferencia do capital constante (e não do capital fixo), aquela parte do dinheiro-capital investida em meios de produção e que, no processo de autovalização do capital, mantém-se inalterada em seu valor, apenas transferindo-o ââ?¬â? pelo desgaste e o consumo desses meios durante a produção mesma ââ?¬â? para as novas mercadorias produzidas. Já o capital fixo é a parte do dinheiro-capital investida naqueles meios de produção mais permanentes (máquinas, instalações etc), e que se diferencia do capital circulante, a parte do dinheiro-capital investida naquelas mercadorias (força de trabalho, matérias-primas, energia, combustí­vel”¦) que, no processo de produção, mais rapidamente são consumidos e é, assim, a parte do capital que mais rapidamente deve ser renovada em seu investimento. Essas duplas conceituais têm funções especí­ficas e diferentes nas análises de Marx sobre as tendências da economia capitalista, funções sobre as quais não cabe aqui falar. Mas, não tem menor sentido em falar que í  burguesia cabe portar apenas o capital fixo e, ao proletariado, o capital variável, mesmo considerando aí­ a perspectiva do Krisis. Mais correto seria dizer, nesse caso, mas já segundo o nosso ponto de vista, que o proletariado é determinado pela sua submissão ao capital variável, ao salário, e a burguesia pela sua identidade com o movimento do capital como um todo em seu movimento tautológico de auto-valorização: D-M-Dââ?¬â?¢ (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro a mais). E, assim, há também que se observar que o proletariado é forçado a incluir-se na relação mercantil por sua busca de valores de uso, daí­ porque veja-se economicamente coagido a vender sua força de trabalho; já o que move a burguesia, enquanto portadora do dinheiro-capital, é a criação e a realização monetária de mais-valor. A contradição que daí­ surge, no entanto, antes de ser conceitual ou “categorial”, é da ordem prática, tanto no que diz respeito í  experiência cotidiana dos diversos constrangimentos e a resistência a eles, quanto í  experiência histórica das lutas proletárias, e sua compreensão.

16. Para uma crí­tica das posições do grupo Krisis, ver Ilana Amaral, “Crí­tica ao ââ?¬Ë?Manifesto contra o trabalhoââ?¬â?¢ “ (revista contra-a-corrente, Fortaleza, CE, nú 9, set-dez/99); e sobre a relação entre a crí­tica da economia polí­tica e as lutas cotidianas, ver da mesma autora “Por que não somos marxistas, situacionistas, conselhistas, anarquistas”¦ mas, simplesmente, inimig@s da economia polí­tica” (revista contra-a-corrente, Fortaleza, CE, nú 12, set-dez/01).

17. Cf. Debord, “Notes pour servir í  lââ?¬â?¢histoire de lââ?¬â?¢I.S. de 1969 í  1971″ in La Véritable Scission dans lââ?¬â?¢Internationale, p. 122.

18. Section italienne de lââ?¬â?¢Internationale situationniste, Écrits complets. 1969-1972. Traduits par Joí«l Gayraud et Luc Mercier, Paris, Éditions Contre-Moule, 1988, p. 60.

19. Debord, “Prefácio í  4ê edição italiana de A sociedade do espetáculo” in G. Debord, A sociedade do espetáculo, tradução de Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, pp. 152-153.

20. Debord, “Comentários sobre a sociedade do espetáculo” in G. Debord, A sociedade do espetáculo, edição citada, p. 172.

21. Idem, p. 173.

22. Idem, p. 175.

23. Essa edição traz ainda a “Advertência da edição francesa de 1992″, o “Prefácio í  4ê edição italiana de A sociedade do espetáculo” (1979) e os Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988).

24. Cf. Debord, “Prefácio í  4ê edição italiana de A sociedade do espetáculo” in A sociedade do espetáculo, edição citada, p. 145.

25. A tradução é de Francisco Alves e Afonso Monteiro, reeditada pelas Edições Mobilis in Mobile, Lisboa, 1991 (e que se encontra na home page portuguesa “Conselhos Operários” ââ?¬â? [http://www.geocities.com/Paris/Rue/5214/debord.htm]).

26. R. Viénet, Enragés et situationnistes dans le mouvement des occupations (1968), Paris, Gallimard, 1998, p. 208. Esta obra, ainda que assinada por René Viénet, teria sido ââ?¬â? segundo Christophe Bourseiller ââ?¬â? uma “obra coletiva”. Cf. C. Bourseiller, Vie et mort de Guy Debord, edição citada, pp. 283-284.

27. Faço questão de observar que o caráter ilusório da luta armada dos últimos anos [19]60 e primeiros [19]70 no Brasil não elimina a justeza humana e polí­tica daquelas ações armadas que ââ?¬â? a despeito das primeiras ilusões quanto ao desenvolvimento de “guerra de guerrilhas”, “foco guerrilheiro”, “guerra popular prolongada” em que se dividiam conceitualmente os diversos grupos de guerrilha urbana e rural ââ?¬â? tiveram a utilidade de salvar a vida daqueles que, presos nos calabouços da ditadura, tinham ali a limine sua pena capital decretada e a ponto de ser executada.

Texto extraí­do do sí­tio Debordiana, sobre Guy Debord, em várias lí­nguas, inclusive português.

Acervo: http://www.rizoma.net

5 comments

  1. Regras de julgamento das escolas de samba do RJ

    As escolas s�£o julgadas por uma comiss�£o formada por 40 pessoas especializadas . As notas variam de 7 a 10. Todas as notas diferentes de 10 dever�£o, obrigatoriamente, ser justificadas, por escrito, nos espa�§os pr�³prios existentes no Caderno de Julgamento.

    A n�£o justifica�§�£o das notas diferentes de 10, por parte do Julgador, implicar�¡ no seu afastamento do Corpo de Julgadores, nos pr�³ximos desfiles da LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro).

    O preenchimento do Original do Caderno de Julgamento do Grupo Especial s�³ dever�¡ ser feito ap�³s o desfile da �ºltima Agremia�§�£o.

    S�£o julgados os nove quesitos abaixo:

    Bateria: �© dever do juiz observar a regularidade e sustenta�§�£o da cad�ªncia (andamento); a marca�§�£o; o equil�­brio dos naipes do conjunto na composi�§�£o instrumental; a harmonia dos sons emitidos pelos v�¡rios instrumentos. Instrumentos de sopro s�£o proibidos na bateria.

    Samba-enredo: tem que girar em torno do enredo escolhido pela escola. A letra n�£o pode ser julgada como pe�§a liter�¡ria e pode ser descritiva ou interpretativa. �� o �ºnico quesito em que o jurado divide a nota em duas: uma parte para a letra e a outra para a melodia.

    Harmonia: s�£o julgados o comportamento da escola, o entrosamento dos integrantes, a coordena�§�£o e o sincronismo entre canto, ritmo e a coreografia na avenida.

    Evolu�§�£o: trata-se do andamento da dan�§a de acordo com o ritmo do samba-enredo e a bateria. Nesse quesito, at�© a empolga�§�£o e a espontaneidade dos integrantes da escola s�£o julgadas. Buracos entre as alas tiram pontos das escolas.

    Enredo: os julgadores analisam o argumento do tema central escolhido pela escola, al�©m do seu desenvolvimento entre as alas, a sua representa�§�£o nas alegorias e fantasias. Os enredos podem ser internacionais, mas a inclus�£o de merchandising �© penalizada.

    Alegorias e adere�§os: concep�§�£o pl�¡stica do enredo. S�£o julgados originalidade, propriedade, cores, movimento e efeito. Qualquer elemento que esteja sobre rodas pode ser considerado alegoria, assim como �© adere�§o qualquer elemento que n�£o esteja sobre rodas. Alegorias e adere�§os devem ser compat�­veis com o enredo.

    Fantasias: s�£o julgadas em rela�§�£o �  criatividade, cores, efeito individual e coletivo, variedade e adequa�§�£o.

    Comiss�£o de frente: os julgadores devem levar em considera�§�£o o cumprimento da fun�§�£o de saudar o p�ºblico e apresentar a escola na avenida. Os integrantes t�ªm que estar em perfeita coordena�§�£o e harmonia.

    Mestre-Sala e Porta-Bandeira: casal que carrega a bandeira da escola. S�£o observados a postura, a eleg�¢ncia, a gra�§a e a leveza da Porta-Bandeira. J�¡ o Mestre-Sala �© avaliado na flexibilidade, variedade de passos, cortesia e prote�§�£o �  bandeira.

    Regras do desfile
    O tempo de dura�§�£o do desfile de cada escola de samba ser�¡ de, no m�­nimo, 65 minutos, e, no m�¡ximo, 80 minutos.

    Cada escola come�§ar�¡ seu desfile depois do sinal de autoriza�§�£o da Dire�§�£o Art�­stica dos Desfiles: a um primeiro toque de sirene (toque �ºnico) alertar�¡ que o seu desfile dever�¡ ter in�­cio no prazo m�¡ximo de 15 (quinze) minutos; um segundo toque de sirene (toque duplo) alertar�¡ que o seu desfile dever�¡ ter in�­cio no prazo m�¡ximo de 5 (cinco) minutos e a partir deste toque (duplo) poder�¡ ser iniciada a apresenta�§�£o de seu int�©rprete (puxador), com a emiss�£o do som para toda a avenida; um terceiro toque de sirene (toque triplo) determinar�¡ o in�­cio do desfile, ocasi�£o em que o cron�´metro ser�¡ acionado.

    O desfile �© considerado finalizado no momento em que o �ºltimo componente ou alegoria ultrapassar a faixa demarcat�³ria do final do desfile.

    Caso falte energia el�©trica, parcial ou total, a escola que j�¡ tiver ultrapassado a faixa demarcat�³ria do in�­cio do desfile dever�¡ continuar sua apresenta�§�£o sem interrup�§�£o.

    Todas as escolas s�£o obrigadas a fazer a dispers�£o no tempo m�¡ximo de 2h30, contado a partir do come�§o do desfile.

    �� obrigado que cada escola tenha, no m�­nimo, 200 ritmistas na bateria e 100 componentes na Ala das Baianas.

    Todas as alegorias t�ªm que ser in�©ditas.

  2. Sobre a poss�­vel crise que atravessa o marxismo, Lefebvre respondeu, em 1990, um ano antes de sua morte:

    “A falÃ?ªncia do marxismo foi jÃ?¡ sinalizada muitas vezes. Sem grandes efeitos, nem entre os “amigos”, nem entre os “inimigos”. Embora isso mostre tanto a fecundidade da obra de Marx, como as dificuldades e as transformaÃ?§Ã?µes do mundo moderno. Como tambÃ?©m a necessidade de reunir, numa unidade nova, os elementos dispersos, o adquirido e o conquistado, o antigo e o novo, ultrapassando antigos sistemas. Com perspectivas e nÃ?£o afirmaÃ?§Ã?µes dogmÃ?¡ticas. Trata-se, portanto, de … a partir dele, inventar o novo. Reunir no devir e abrir um futuro” (Lefebvre. “Ouverture”. In: Du contrat de citoyennetÃ?©, 1990: 19).

  3. O Carnaval est�¡ em marcha
    -David Graeber-

    Ondas de desilusÃ?£o sobre as possibilidades de mudanÃ?§a social nÃ?£o sÃ?£o novidade. O sÃ?©culo passado Ã? s vezes parece uma contÃ?­nua sucessÃ?£o delas. Cada geraÃ?§Ã?£o cresceu na crenÃ?§a ingÃ?ªnua de que a tecnologia, o progresso ou a dialÃ?©tica a catapultaria para um mundo melhor, somente para ver essa esperanÃ?§a desmoronar (nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, na Grande DepressÃ?£o, no Holocausto, na bomba…). NÃ?£o estÃ?¡ totalmente claro se hoje estamos no meio de uma dessas ondas.

    O colapso da f�© nas mudan�§as revolucion�¡rias ap�³s o desmoronamento dos regimes marxistas foi seguido quase imediatamente de uma nova onda de movimentos sociais vision�¡rios, inspirados principalmente pelos zapatistas, que efetivamente contiveram o neoliberalismo global. As elites mundiais come�§aram a entrar em p�¢nico e, como tendem a fazer as elites globais quando entram em p�¢nico, tentaram iniciar uma guerra: uma tarefa nesse caso muito facilitada pelo s�ºbito ressurgimento, desafiando as velhas economias do Atl�¢ntico Norte, de uma economia-mundo muito mais antiga, baseada no oceano �ndico, com seu candidato a avatar pol�­tico, Osama bin Laden. O resultado �©, mais que qualquer outra coisa, um momento de confus�£o.

    O que estamos presenciando �© definitivamente uma desilus�£o sobre as possibilidades de se mudar o mundo tomando o controle do Estado. Mas parece-me que esse �© realmente um sinal positivo, e que de fato estamos vivendo um momento muito esperan�§oso. Porque a antiga estrat�©gia de mudar o mundo apoderando-se do Estado -que em �ºltima an�¡lise n�£o passa de um mecanismo de viol�ªncia- sempre foi criticamente defeituosa. Existem motivos pelos quais um dia ela pode ter parecido realista. Mas nunca poderia funcionar realmente.

    O fato de os revolucionÃ?¡rios e os reformadores sociais a estarem abandonando amplamente abrirÃ?¡, em Ã?ºltima instÃ?¢ncia, um mundo de possibilidades. Ele nos permite, por um lado, repensar completamente o que entendemos pelo termo “democracia”.

    Para chegar a esse ponto, por�©m, precisamos imaginar uma maneira de nos livrarmos dos argumentos dos fil�³sofos liberais, que tendem a aparecer nessas conjunturas com novas raz�µes pelas quais �© imposs�­vel uma verdadeira transforma�§�£o radical. Isso n�£o �© t�£o dif�­cil, na verdade. Os fil�³sofos liberais s�£o artistas do desespero. Muitas vezes parece que sua pr�³pria exist�ªncia �© uma tentativa de elucidar o que um marxista �  moda antiga chamaria de contradi�§�£o social: a exist�ªncia de um grande grupo de classe m�©dia razoavelmente confort�¡vel que, coletivamente, adota princ�­pios sociais -igualdade, liberdade, justi�§a social- que, se levados a suas conclus�µes l�³gicas, implicariam que a sociedade precisa mudar de maneiras muito fundamentais.

    Sua tarefa, ao que parece, Ã?© apresentar constantemente novos motivos pelos quais esses princÃ?­pios nÃ?£o poderiam ou nÃ?£o deveriam ser levados a suas conclusÃ?µes lÃ?³gicas. Pelo menos parece haver um mercado permanente para esse tipo de argumento. Na verdade, Ã?© tÃ?£o forte a demanda que os prÃ?³prios argumentos nÃ?£o precisam fazer muito sentido lÃ?³gico. Ã?â?¬s vezes parece que quase qualquer coisa serve. Nas dÃ?©cadas de 1980 e 90, por exemplo, muitas pessoas consideradas inteligentes nas universidades comeÃ?§aram a adotar avidamente teorias que afirmavam que o reformismo liberal -buscar uma melhor situaÃ?§Ã?£o para as minorias e os grupos de identidade marginalizados, celebrar estilos de vida subversivos etc.- era na realidade a coisa mais radical que se poderia fazer, muito mais radical do que, por exemplo, algo que pudesse contestar o capitalismo ou o Estado (essa posiÃ?§Ã?£o foi chamada de “pÃ?³s-modernismo”). Hoje em dia isso finalmente estÃ?¡ comeÃ?§ando a parecer um pouco tolo, especialmente depois da insurreiÃ?§Ã?£o global contra o neoliberalismo, por isso a nova tendÃ?ªncia Ã?© argumentar exatamente o contrÃ?¡rio.

    Quando para os p�³s-modernos n�£o havia mais grandes sistemas totalit�¡rios e tudo estava reduzido a fluxos e fragmentos (e todos dever�­amos ignorar a intermin�¡vel expans�£o do mercado mundial, o maior e mais totalit�¡rio sistema da hist�³ria mundial, que naquela �©poca tentava subjugar absolutamente tudo), agora o argumento tornou-se precisamente o oposto. O capitalismo �© um enorme sistema totalit�¡rio que subjuga tudo o que toca. Portanto, n�£o adianta tentar combat�ª-lo.

    Os argumentos de Heath

    A �ºltima vers�£o desse argumento foi apresentada recentemente pelos fil�³sofos canadenses Joseph Heath e Andrew Potter. �� a seguinte: o capitalismo �© invenc�­vel porque qualquer meio que voc�ª empregue para contest�¡-lo -uma nova subcultura subversiva, alguma nova forma de rebeli�£o jovem, um movimento social revolucion�¡rio, uma tentativa de desenvolver um sistema alternativo de troca- �© em �ºltima inst�¢ncia apenas mais um estratagema de marketing. Os capitalistas v�£o simplesmente apanh�¡-lo e vend�ª-lo de volta para voc�ª.

    Na verdade, o capitalismo precisa de rebeli�£o para se reproduzir. Por isso, eles afirmam, tudo isso simplesmente faz parte da pr�³pria l�³gica interna do capitalismo. Portanto, vamos apenas esquecer as tentativas de contestar o sistema. �� melhor operar dentro dele, pedir a seus representantes pol�­ticos para limitar os piores abusos, empregar incentivos de mercado para encorajar as corpora�§�µes a n�£o poluir tanto e assim por diante. Voc�ª sequer conseguir�¡ isso se minar seus esfor�§os fazendo exig�ªncias radicais em excesso.

    O argumento �© perfeitamente circular. Ele define princ�­pios a partir de sua conclus�£o. Se o capitalismo nunca poder�¡ ser derrotado, ent�£o, sim, todos os movimentos anticapitalistas est�£o em �ºltima inst�¢ncia destinados a serem reabsorvidos pela l�³gica do capitalismo. Se o capitalismo �© um sistema total cuja l�³gica abrange tudo, ent�£o, �© verdade, qualquer coisa que pare�§a se opor a ele �© somente mais um aspecto do capitalismo. Mas apenas dizer isso n�£o prova nada.

    Na verdade, argumentos como esse invariavelmente come�§am a parecer rid�­culos no momento em que s�£o colocados em algum tipo de perspectiva hist�³rica maior. Deixe-me dar um exemplo revelador.

    Os camponeses da Europa medieval costumavam realizar grandes festas carnavalescas em que zombavam de seus superiores feudais e encenavam fantasias elaboradas de uma terra sem reis ou senhores, onde eles podiam se fartar com a abund�¢ncia de comida e bebida. Isso certamente parece muito subversivo. Os te�³ricos sociais, por�©m, h�¡ muito afirmam que na verdade n�£o �©. Realmente, tudo faz parte do sistema feudal -uma maneira de deixar os camponeses liberarem energia, brincar de rebeli�£o, se desintoxicar, de modo a serem mais capazes de voltar a sua vida rotineira de labuta.

    Muitas pessoas usavam esse argumento j�¡ na �©poca (uma grande parte do motivo pelo qual os senhores aceitavam esse tipo de coisa). �� basicamente o mesmo argumento de Heath e Potter: como o feudalismo �© um sistema totalit�¡rio que sempre existir�¡, esses atos de rebeldia realmente s�£o apenas uma parte de sua pr�³pria l�³gica interna. O problema �© que o feudalismo n�£o existe mais.

    Revoltas camponesas

    Na verdade, se reexaminarmos os registros, descobriremos que praticamente todas as grandes revoltas camponesas na hist�³ria europ�©ia come�§aram durante o carnaval (o Primeiro de Maio era o equivalente ingl�ªs -e �© por isso que hoje �© o o feriado internacional dos trabalhadores; as rebeli�µes populares na Inglaterra quase sempre irromperam no primeiro de maio). �� verdade que as revoltas reais tenderam a ser reprimidas com grande brutalidade, mas tiveram um papel importante para produzir o mundo de hoje -no qual os descendentes daqueles camponeses europeus realmente vivem em um mundo sem reis ou senhores, em que eles podem se fartar com uma abund�¢ncia aparentemente infinita de comida e bebida (mas, obviamente, chegar a isso acarretou certos problemas imprevistos).

    Ent�£o o capitalismo est�¡ destinado a seguir o caminho do feudalismo (ou como quisermos chamar hoje o sistema medieval)?
    Parece inevit�¡vel.

    Veja como aqueles que afirmam o contr�¡rio, que o capitalismo sempre existir�¡, quase nunca nos dizem exatamente o que eles pensam sobre o capitalismo. Geralmente h�¡ uma raz�£o para isso. Geralmente eles s�³ podem defender sua tese alternando constantemente entre defini�§�µes completamente contradit�³rias.

    Por exemplo: muitas vezes ouvimos o argumento de que o capitalismo existe hÃ?¡ 5.000 anos e que, portanto, Ã?© tolice queixar-se da existÃ?ªncia do McDonald’s ou Starbucks ou outras Ã?³bvias emanaÃ?§Ã?µes do capitalismo. Se vocÃ?ª definir o capitalismo como, digamos, “pessoas ricas usando seu dinheiro para ganhar mais dinheiro”, entÃ?£o certamente pode afirmar que ele existe hÃ?¡ muito tempo. Mas nesse caso vocÃ?ª tambÃ?©m teria de admitir que o capitalismo conseguiu existir por pelo menos 4.950 anos sem criar algo remotamente parecido com uma franquia de lanchonetes.

    Usar esse argumento para considerar esse fato como inevit�¡vel parece muito estranho. Mesmo fazer uma vers�£o mais sofisticada desse argumento -digamos, definir o capitalismo como um sistema mundial em que a economia global �© dominada por financistas e industriais privados movidos pela necessidade de continuamente expandir suas opera�§�µes e conquistar lucros sempre maiores- e dizer que portanto o capitalismo existe desde 1492, ou talvez 1750, tamb�©m significaria que uma economia mundial capitalista ainda pode encontrar espa�§o para fen�´menos como o Imp�©rio Otomano, a Uni�£o Sovi�©tica ou as elaboradas redes de troca de porcos na Papua Nova Guin�©. Em outras palavras, quase qualquer coisa. Ainda h�¡ espa�§o para experi�ªncias sociais.

    Alternativamente, se definirmos o capitalismo como um uma vasta m�¡quina movida por enormes corpora�§�µes e consumo de massa determinado a abra�§ar todo o globo, ent�£o estaremos lidando com uma criatura que existe em uma parcela min�ºscula, quase infinitesimal, da hist�³ria mundial. Honestamente: qual �© a probabilidade de que um sistema que existe h�¡ apenas algumas d�©cadas dure pelo resto da hist�³ria humana? Realmente acreditamos que, se a China, por exemplo, tornar-se a hegemonia global no final do s�©culo, o mundo ser�¡ conduzido exatamente da mesma maneira? Qual a probabilidade de que daqui a 50 ou cem anos o mundo seja dirigido por corpora�§�µes maci�§as empregando trabalhadores assalariados, vendendo seus produtos por meio de redes de consumo e envolvidas numa expans�£o intermin�¡vel em busca de lucros?

    Colocada nesses termos, a pergunta torna-se �³bvia. A quest�£o n�£o �© se o capitalismo em sua forma atual ser�¡ substitu�­do. A quest�£o �© pelo qu�ª: uma forma diferente de capitalismo? Um sistema totalmente novo? Um conjunto heterog�ªneo de sistemas econ�´micos? E, �© claro, alguma coisa que substitua o capitalismo ser�¡ melhor ou ainda mais catastr�³fica para a maioria da popula�§�£o mundial? Ao insistir que o capitalismo em sua forma atual �© o fim da hist�³ria, estamos efetivamente nos excluindo do que provavelmente ser�¡ uma das mais importantes conversas na hist�³ria humana.

    O que �© a democracia?

    “Todo mundo ama a democracia. Todo mundo odeia o governo. Anarquismo: isso Ã?© exatamente democracia sem governo” -“The Crimethinc Collective”.
    Neste ponto posso voltar �  minha tese principal.

    O motivo pelo qual considero este momento particularmente esperan�§oso �© que os revolucion�¡rios e at�© os reformistas sociais come�§aram a perceber que n�£o �© poss�­vel realizar seus objetivos tomando o controle do Estado. Grande parte da frustra�§�£o dos �ºltimos anos veio da percep�§�£o de que, se desafiarmos o capitalismo tentando dominar o governo, provavelmente terminaremos (como colocou recentemente meu amigo Andrej Grubacic) como [Jean-Bertrand] Aristide [presidente deposto do Haiti], como [Fidel] Castro ou como Lula -derrubado, presidindo apesar de si mesmo algum tipo de horr�­vel Estado policial, ou sendo obrigado a abandonar quase todos os princ�­pios que o inspiraram a tentar se eleger.

    Ã?â?° por isso que o movimento por justiÃ?§a global foi iniciado principalmente por grupos que rejeitavam explicitamente a idÃ?©ia de tomar o governo, e em vez disso se apoiavam em idÃ?©ias desenvolvidas na tradiÃ?§Ã?£o anarquista -auto-organizaÃ?§Ã?£o, associaÃ?§Ã?£o voluntÃ?¡ria, ajuda mÃ?ºtua-, mesmo que apenas raramente usassem a palavra “anarquista” (a preferÃ?ªncia era geralmente por: horizontalidade, autonomia, associativismo, autogestÃ?£o, zapatismo… Mas, como diria a maioria dos anarquistas, os rÃ?³tulos nÃ?£o importam). Nos Ã?ºltimos anos, muitos sentiram-se encorajados por seu prÃ?³prio sucesso a buscar o poder, ou pelo menos a comeÃ?§ar a trabalhar com os que o buscam. Os resultados foram ambivalentes, para dizer o mÃ?­nimo.

    H�¡ bons motivos para isso. Se h�¡ um grande tema no movimento por justi�§a global, �© a reinven�§�£o da democracia. Os Estados, por�©m, nunca podem ser genuinamente democr�¡ticos, e as pessoas est�£o come�§ando a perceb�ª-lo.

    Para compreender o que quero dizer seria Ã?ºtil voltar aos revolucionÃ?¡rios do sÃ?©culo 18 que criaram os primeiros modelos do que hoje chamamos de constituiÃ?§Ã?µes “democrÃ?¡ticas”. Todos eles eram abertamente hostis Ã?  democracia, que entendiam como algo nas linhas da antiga Atenas, em que a comunidade como um todo toma suas decisÃ?µes por meio de debates em assemblÃ?©ias pÃ?ºblicas. Eles tendiam a ver Atenas como um exemplo de regime da turba. Os federalistas norte-americanos tambÃ?©m foram explÃ?­citos ao insistir que com a verdadeira democracia seria impossÃ?­vel sustentar o aparato de forÃ?§a necessÃ?¡rio para manter as grandes desigualdades de propriedade. Eles adotaram como modelo a “constituiÃ?§Ã?£o mista” da RepÃ?ºblica Romana, que combinava elementos de monarquia (um presidente), aristocracia (o senado) e alguns elementos democrÃ?¡ticos limitados.

    O que tornou tudo isso possÃ?­vel, Ã?© claro, foi a idÃ?©ia relativamente nova de representaÃ?§Ã?£o polÃ?­tica. Originalmente, os representantes populares eram na verdade embaixadores, que “representavam” os interesses do povo diante do soberano. Sob as novas constituiÃ?§Ã?µes republicanas, os poderes do soberano passaram aos prÃ?³prios deputados, que governavam em nome do povo.

    Foi somente quando a franquia se estendeu mais amplamente, nas dÃ?©cadas de 1830 e 40, candidatos populistas na FranÃ?§a e nos Estados Unidos comeÃ?§aram a ganhar eleiÃ?§Ã?µes chamando-se de “democratas” e seus adversÃ?¡rios foram obrigados a imitÃ?¡-los, que as repÃ?ºblicas foram rebatizadas de “democracias”. O fato de as elites polÃ?­ticas terem sido obrigadas a mudar a terminologia Ã?© testemunho do poder persistente da idÃ?©ia democrÃ?¡tica: que pessoas livres deveriam governar seus prÃ?³prios assuntos. Mas foi exatamente isso: uma mudanÃ?§a de terminologia, e nÃ?£o de forma. Como os conservadores norte-americanos Ã? s vezes ainda apontam: os EUA nÃ?£o sÃ?£o uma democracia, sÃ?£o uma repÃ?ºblica.

    Mesmo as maiores conquistas da forma de governo republicana se baseiam na supress�£o do autogoverno popular: os princ�­pios de liberdade de express�£o e liberdade de reuni�£o, por exemplo, s�³ se tornaram direitos sagrados e inalien�¡veis no exato momento em que se estabeleceu que a express�£o e a reuni�£o p�ºblicas n�£o seriam meios reais para se tomar decis�µes pol�­ticas, mas no m�¡ximo meios de protestar contra decis�µes tomadas pelos governantes.

    De fato, a prÃ?³pria idÃ?©ia de um “Estado democrÃ?¡tico” sempre foi uma espÃ?©cie de contradiÃ?§Ã?£o em termos. “Democracia” refere-se a um sistema em que “o povo”, seja como for definido, governa seus prÃ?³prios assuntos. Um Estado Ã?© um aparato de coerÃ?§Ã?£o sistemÃ?¡tica destinado a obrigar as pessoas a obedecerem ordens sob a ameaÃ?§a de violÃ?ªncia. Elementos de ambos podem no mÃ?¡ximo existir em uma proximidade desconfortÃ?¡vel, mas nunca misturar-se. Mesmo nos Estados mais democrÃ?¡ticos, por exemplo, os mecanismos pelos quais a violÃ?ªncia Ã?© de fato exercida -polÃ?­cia, tribunais, prisÃ?µes- operam sobre princÃ?­pios completamente autoritÃ?¡rios.

    Se alguÃ?©m chegar a sugerir que algum aspecto desse sistema seja democratizado -digamos, permitindo que os jÃ?ºris operem fora das ordens de juÃ?­zes-, provavelmente receberia a mesma reaÃ?§Ã?£o horrorizada que alguÃ?©m que propusesse uma constituiÃ?§Ã?£o democrÃ?¡tica na Ã?©poca de Carlos Magno ou da rainha Elizabeth. “Mas isso significaria o governo da turba!”

    Como Michael Mann observou recentemente, os Estados sempre parecem ter a necessidade de citar “o povo” em tribunais e locais de execuÃ?§Ã?£o, ou seja, no momento em que infligem julgamento ou puniÃ?§Ã?£o, para justificar seus atos. Mas o povo nÃ?£o pode realmente ser envolvido. Ainda mais porque nas repÃ?ºblicas liberais nunca estÃ?¡ muito claro quem Ã?© realmente “o povo”. Mann sugere que sÃ?£o exatamente os esforÃ?§os pragmÃ?¡ticos para elucidar essa contradiÃ?§Ã?£o, usar o aparato da violÃ?ªncia para identificar e constituir um “povo”, que aqueles que sustentam esse aparato consideram dignos de ser a fonte de sua autoridade, que no pior dos casos foi responsÃ?¡vel por pelo menos 60 milhÃ?µes de assassinatos somente no sÃ?©culo 21.

    A sociedade contra o voto

    Ent�£o a nova id�©ia �© voltar a algo semelhante �  democracia ateniense? Provavelmente n�£o. Ou n�£o exatamente. Se examinarmos as comunidades ao redor do mundo que administram seus pr�³prios assuntos em uma base relativamente igualit�¡ria -seja porque n�£o h�¡ Estado ou porque o Estado realmente n�£o se importa com a administra�§�£o local-, descobrimos que essas comunidades quase nunca usam o voto majorit�¡rio no estilo da Gr�©cia Antiga.

    Quase invariavelmente elas t�ªm algum tipo de processo de consenso -todos os envolvidos na tomada de uma decis�£o, mesmo que n�£o gostem muito dela, t�ªm de pelo menos oferecer seu consentimento passivo. Isso realmente faz muito sentido se n�£o podemos -ou n�£o desejamos- obrigar fisicamente algu�©m a acatar a decis�£o do grupo. Porque �© muito mais f�¡cil, em uma comunidade realmente igualit�¡ria, descobrir o que a maioria das pessoas quer do que descobrir como convencer a minoria a aceitar a decis�£o. A �ºltima coisa que se deseja �© realizar um concurso p�ºblico em que a minoria ser�¡ vista publicamente como perdedora. Isso quase certamente garantir�¡ ressentimento e resist�ªncia.

    O prÃ?³prio voto majoritÃ?¡rio parece ter nascido de uma circunstÃ?¢ncia incomum: um sistema em que havia ao mesmo tempo um ideal de que “o povo” devia tomar suas prÃ?³prias decisÃ?µes e tambÃ?©m um aparato de coerÃ?§Ã?£o capaz de impor essas decisÃ?µes a qualquer um que discordasse. A prÃ?³pria Atenas foi uma espÃ?©cie de anomalia histÃ?³rica nesse sentido, uma polis situada em algum lugar entre uma comunidade tradicional autogovernante e um Estado real. (Vemos vestÃ?­gios dessas polis democrÃ?¡ticas espalhados pelo mundo, na Ã?ndia, na China e tambÃ?©m no Oriente MÃ?©dio, sempre nos primÃ?³rdios do registro histÃ?³rico. Quase sempre elas foram desprezadas pelos filÃ?³sofos e poetas que sÃ?£o responsÃ?¡veis por preservar esse “registro histÃ?³rico”; quase sempre elas desapareceram em algumas centenas de anos e foram substituÃ?­das por impÃ?©rios, que duraram milÃ?ªnios. Esse Ã?© incidentalmente um dos motivos pelos quais os argumentos de que a democracia Ã?© de certa forma um produto da tradiÃ?§Ã?£o “ocidental” sÃ?£o tÃ?£o ridÃ?­culos.)

    Na GrÃ?©cia Antiga, a democracia era basicamente uma instituiÃ?§Ã?£o militar: como notou AristÃ?³teles, as democracias ocorriam nas cidades onde todos os homens adultos livres estavam supostamente armados. Podemos ver claramente como a lÃ?³gica funcionava na “AnÃ?¡basis” de Xenofonte, que conta a histÃ?³ria de um exÃ?©rcito de mercenÃ?¡rios gregos que de repente se vÃ?ª sem lÃ?­der e perdido no meio da PÃ?©rsia. Eles elegem novos oficiais e entÃ?£o realizam uma votaÃ?§Ã?£o coletiva para decidir o que farÃ?£o. Em um caso como esse, mesmo que a votaÃ?§Ã?£o fosse 60/40, todos podiam ver o equilÃ?­brio de forÃ?§as e o que aconteceria se as coisas realmente chegassem a um conflito. Cada voto era, num sentido real, uma conquista. Em outras palavras, essas foram formas mÃ?­nimas, muito cruas, de Estado, onde potencialmente nÃ?£o havia distinÃ?§Ã?£o entre o aparato de tomada de decisÃ?µes e o aparato de coerÃ?§Ã?£o. O prÃ?³prio eleitorado podia impor sua vontade.

    Considerando tudo isso, �© not�¡vel que o sistema raramente tenha degenerado em guerra civil, mas n�£o �© de surpreender que os revolucion�¡rios norte-americanos e franceses suspeitassem dele. O sistema representativo que eles inventaram era realmente apenas uma maneira de adotar uma l�³gica parecida ao Estado burocr�¡tico moderno, em que o aparato coercitivo foi entregue a especialistas.

    O que temos hoje, entÃ?£o, Ã?© um mundo dividido entre uma interminÃ?¡vel sucessÃ?£o de repÃ?ºblicas. Algumas sÃ?£o mais “democrÃ?¡ticas” que outras, Ã?© claro: pelo menos no sentido de que tÃ?ªm muito menor probabilidade de matar dissidentes e maior probabilidade de permitir que os cidadÃ?£os ocasionalmente escolham entre grupos diferentes de potenciais governantes. (Quando poderes imperiais como os Estados Unidos afirmam estar “disseminando a democracia”, por outro lado, tudo o que realmente querem dizer Ã?© que desejam ver mais repÃ?ºblicas com maior respeito pelo Estado de direito, pelo menos na medida em que o direito seja amistoso com os investidores estrangeiros.)

    Assim como o capitalismo, as rep�ºblicas desse tipo s�³ existem h�¡ um per�­odo muito curto do tempo hist�³rico. Elas n�£o existir�£o para sempre. Certamente n�£o existir�£o por tanto tempo quanto as comunidades de pequena escala que realmente se governam por consenso igualit�¡rio: estas existem desde o in�­cio da hist�³ria e continuam existindo hoje, mesmo que escondidas em partes obscuras do globo.

    O trabalho de criar alternativas genuinamente democrÃ?¡ticas apropriadas Ã? s condiÃ?§Ã?µes modernas estÃ?¡ apenas comeÃ?§ando: embora estejam ocorrendo esforÃ?§os enormes, seja nos “caracoles” de Chiapas, nas “asambleas” e fÃ?¡bricas ocupadas da Argentina, nos conselhos de cidadÃ?£os norte-americanos, ocupaÃ?§Ã?µes e centros sociais da ItÃ?¡lia, guetos da Ã?frica do Sul, ninhos de hackers de computador em toda parte e outras brechas e fissuras na estrutura de poder mundial que provavelmente ainda nem conhecemos. Parece-me que a grande pergunta do dia Ã?© se um nÃ?ºmero significativo de liberais, que afinal acreditam nos princÃ?­pios de liberdade e igualdade, eventualmente comeÃ?§arÃ?£o a unir-se a eles ou se continuarÃ?£o buscando novas garantias de que nada que eles faÃ?§am realmente possa contribuir para um mundo fundamentalmente melhor.

    Tradu�§�£o de Luiz Roberto Mendes Gon�§alves.

  4. T.A.Z. – ZONA AUTÃ?â?NOMA TEMPORÃ?RIA (Temporary Autonomous Zone) (Parte 1)
    Hakim Bey

    “…desta vez, no entanto, eu venho como o vitorioso DionÃ?­sio, que transformarÃ?¡ o mundo numa festa… NÃ?£o que eu tenha muito tempo…”

    Nietzsche (em sua Ã?ºltima carta “insana” a Cosima Wagner)

    Utopias Piratas

    OS PIRATAS E CORSÃ?RIOS do sÃ?©culo XVIII montaram uma “rede de informaÃ?§Ã?µes” que se estendia sobre o globo. Mesmo sendo primitiva e voltada basicamente para negÃ?³cios cruÃ?©is, a rede funcionava de forma admirÃ?¡vel. Era formada por ilhas, esconderijos remotos onde os navios podiam ser abastecidos com Ã?¡gua e comida, e os resultados das pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade. Algumas dessas ilhas hospedavam “comunidades intencionais”, mini-sociedades que conscientemente viviam fora da lei e estavam determinadas a continuar assim, ainda que por uma temporada curta, mas alegre.

    HÃ?¡ alguns anos, vasculhei uma grande quantidade de fontes secundÃ?¡rias sobre pirataria esperando encontrar algum estudo sobre esses enclaves – mas parecia que nenhum historiador ainda os havia considerado merecedores de anÃ?¡lise. (William Burroughs mencionou o assunto, assim como o anarquista britÃ?¢nico Larry Law – mas nenhuma pesquisa sistemÃ?¡tica foi levada adiante.) Fui entÃ?£o em busca das fontes primÃ?¡rias e construÃ?­ minha prÃ?³pria teoria, da qual discutiremos alguns aspectos neste ensaio. Eu chamei esses assentamentos de Utopias Piratas (1).

    Recentemente, Bruce Sterling, um dos principais expoentes da ficÃ?§Ã?£o cientifica cyberpunk, publicou um romance ambientado num futuro prÃ?³ximo e tendo como base o pressuposto de que a decadÃ?ªncia dos sistemas polÃ?­ticos vai gerar uma proliferaÃ?§Ã?£o de experiÃ?ªncias comunitÃ?¡rias descentralizadas: corporaÃ?§Ã?µes gigantescas mantidas por seus funcionÃ?¡rios, enclaves independentes dedicados Ã?  “pirataria de dados”, enclaves verdes e social-democratas, enclaves de Trabalho-Zero, zonas anarquistas liberadas etc. A economia de informaÃ?§Ã?£o que sustenta esta diversidade Ã?© chamada de Rede. Os enclaves (e o tÃ?­tulo do livro) sÃ?£o Ilhas na Rede (2).

    Os Assassins (3) medievais fundaram um “Estado” que consistia de uma rede de remotos castelos em vales montanhosos, separados entre si por milhares de quilÃ?´metros, estrategicamente invulnerÃ?¡veis a qualquer invasÃ?£o, conectados por um fluxo de informaÃ?§Ã?µes conduzidas por agentes secretos, em guerra com todos os governos, e dedicado apenas ao saber. A tecnologia moderna, culminando no satÃ?©lite espiÃ?£o, reduz esse tipo de autonomia a um sonho romÃ?¢ntico. Chega de ilhas piratas! No futuro, essa mesma tecnologia – livre de todo controle polÃ?­tico – pode tornar possÃ?­vel um mundo inteiro de zonas autÃ?´nomas. Mas, por enquanto, o conceito continua sendo apenas ficÃ?§Ã?£o cientÃ?­fica – pura especulaÃ?§Ã?£o.

    Estamos n�³s, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento sequer, num peda�§o de terra governado apenas pela liberdade? Estamos reduzidos a sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar at�© que o mundo inteiro esteja livre do controle pol�­tico para que pelo menos um de n�³s possa afirmar que sabe o que �© ser livre? Tanto a l�³gica quanto a emo�§�£o condenam tal suposi�§�£o. A raz�£o diz que o indiv�­duo n�£o pode lutar por aquilo que n�£o conhece. E o cora�§�£o revolta-se diante de um universo t�£o cruel a ponto de cometer tais injusti�§as justamente com a nossa, dentre todas as gera�§�µes da humanidade.

    Dizer “sÃ?³ serei livre quando todos os seres humanos (ou todas as criaturas sensÃ?­veis) forem livres”, Ã?© simplesmente enfurnar-se numa espÃ?©cie de estupor de nirvana, abdicar da nossa prÃ?³pria humanidade, definirmo-nos como fracassados.

    Acredito que, dando consequÃ?ªncia ao que aprendemos com histÃ?³rias sobre “ilhas na rede”, tanto do passado quanto do futuro, possamos coletar evidÃ?ªncias suficientes para sugerir que um certo tipo de “enclave livre” nÃ?£o Ã?© apenas possÃ?­vel nos dias de hoje, mas Ã?© tambÃ?©m real. Toda minha pesquisa e minhas especulaÃ?§Ã?µes cristalizaram-se em torno do conceito de ZONA AUTÃ?â?NOMA TEMPORÃ?RIA (daqui por diante abreviada por TAZ). Apesar de sua forÃ?§a sintetizadora para o meu prÃ?³prio pensamento, nÃ?£o pretendo, no entanto, que a TAZ seja percebida como algo mais do que um ensaio (“uma tentativa”), uma sugestÃ?£o, quase que uma fantasia poÃ?©tica. Apesar do ocasional excesso de entusiasmo da minha linguagem, nÃ?£o estou tentando construir dogmas polÃ?­ticos. Na verdade, deliberadamente procurei nÃ?£o definir o que Ã?© a TAZ – circundo o assunto, lanÃ?§ando alguns fachos exploratÃ?³rios. No final, a TAZ Ã?© quase auto-explicativa. Se o termo entrasse em uso seria compreendido sem dificuldades… compreendido em aÃ?§Ã?£o.

    Esperando pela Revolu�§�£o

    COMO Ã?â?° QUE O MUNDO “virado-de-cabeÃ?§a-para-baixo” sempre acaba se endireitando? Por quÃ?ª, como estaÃ?§Ã?µes no Inferno, apÃ?³s a revoluÃ?§Ã?£o sempre vem uma reaÃ?§Ã?£o?

    Levante e insurreiÃ?§Ã?£o sÃ?£o palavras usadas pelos historiadores para caracterizar revoluÃ?§Ã?µes que fracassaram – movimentos que nÃ?£o chegaram a terminar seu ciclo, a trajetÃ?³ria padrÃ?£o: revoluÃ?§Ã?£o, reaÃ?§Ã?£o, traiÃ?§Ã?£o, a fundaÃ?§Ã?£o de um Estado mais forte e ainda mais opressivo -, a volta completa, o eterno retorno da histÃ?³ria, uma e outra vez mais, atÃ?© o Ã?¡pice: botas marchando eternamente sobre o rosto da humanidade.

    Ao falhar em completar esta trajetÃ?³ria, o levante sugere a possibilidade de um movimento fora e alÃ?©m da espiral hegeliana do “progresso”, que secretamente nÃ?£o passa de um ciclo vicioso. Surgo: levante, revolta. Insurgo: rebelar-se, levantar-se. Uma aÃ?§Ã?£o de independÃ?ªncia. Um adeus a essa miserÃ?¡vel parÃ?³dia da roda kÃ?¡rmica, histÃ?³rica futilidade revolucionÃ?¡ria. O slogan “RevoluÃ?§Ã?£o!” transformou-se de sinal de alerta em toxina, uma maligna e pseudo-gnÃ?³stica armadilha-do-destino, um pesadelo no qual, nÃ?£o importa o quanto lutamos, nunca nos livramos do maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado apÃ?³s o outro, cada “paraÃ?­so” governado por um anjo ainda mais cruel.

    Se a HistÃ?³ria Ã?â?° “Tempo”, como declara ser, entÃ?£o um levante Ã?© um momento que surge acima e alÃ?©m do Tempo, viola a “lei” da HistÃ?³ria. Se o Estado Ã?â?° HistÃ?³ria, como declara ser, entÃ?£o o levante Ã?© o momento proibido, uma imperdoÃ?¡vel negaÃ?§Ã?£o da dialÃ?©tica como danÃ?§ar sobre um poste e escapar por uma fresta, uma manobra xamanÃ?­stica realizada num “Ã?¢ngulo impossÃ?­vel” em relaÃ?§Ã?£o ao universo.

    A HistÃ?³ria diz que uma RevoluÃ?§Ã?£o conquista “permanÃ?ªncia”, ou pelo menos alguma duraÃ?§Ã?£o, enquanto o levante Ã?© “temporÃ?¡rio”. Nesse sentido, um levante Ã?© uma “experiÃ?ªncia de pico” se comparada ao padrÃ?£o “normal” de consciÃ?ªncia e experiÃ?ªncia. Como os festivais, os levantes nÃ?£o podem acontecer todos os dias – ou nÃ?£o seriam “extraordinÃ?¡rios”. Mas tais momentos de intensidade moldam e dÃ?£o sentido a toda uma vida. O xamÃ?£ retorna – uma pessoa nÃ?£o pode Ficar no telhado para sempre – mas algo mudou, trocas e integraÃ?§Ã?µes ocorreram – foi feita uma diferenÃ?§a.

    Poderia se dizer que essa �© uma postura de desespero. O que foi feito do sonho anarquista, do fim do Estado, da comuna, da zona aut�´noma com dura�§�£o, da sociedade livre, da cultura livre? Devemos abandonar esta esperan�§a em troca de um acte gratuit existencialista? A id�©ia n�£o �© mudar a consci�ªncia, mas mudar o mundo.

    Aceitaria isso como uma crÃ?­tica justa. No entanto, daria duas respostas. Primeiro, a revoluÃ?§Ã?£o atÃ?© hoje nÃ?£o nos levou Ã?  concretizaÃ?§Ã?£o desse sonho. A visÃ?£o ganha vida no momento do levante – mas assim que a “RevoluÃ?§Ã?£o” triunfa e o Estado retorna, o sonho e o ideal jÃ?¡ estÃ?£o traÃ?­dos. NÃ?£o deixo de ter esperanÃ?§a, nem deixo de ansiar por mudanÃ?§as – mas desconfio da palavra RevoluÃ?§Ã?£o. Em segundo lugar, mesmo se substituirmos a abordagem revolucionÃ?¡ria pelo conceito de levante transformando-se espontaneamente numa cultura anarquista, a nossa situaÃ?§Ã?£o histÃ?³rica especÃ?­fica nÃ?£o Ã?© propÃ?­cia para tarefa tÃ?£o vasta. Absolutamente nada, alÃ?©m de um martÃ?­rio inÃ?ºtil, poderia resultar de um confronto direto com o Estado terminal, esta megacorporaÃ?§Ã?£o/Estado de informaÃ?§Ã?µes, o impÃ?©rio do EspetÃ?¡culo e da SimulaÃ?§Ã?£o. Todos os seus revÃ?³lveres estÃ?£o apontados para nÃ?³s. Por outro lado, com nosso armamento miserÃ?¡vel, nÃ?£o temos em que atirar, a nÃ?£o ser numa histerese, num vazio rÃ?­gido, num fantasma capaz de transformar todo lampejo num ectoplasma de informaÃ?§Ã?£o, uma sociedade de capitulaÃ?§Ã?£o regida pela imagem do policial e pelo olho absorvente da tela de
    TV.

    Em resumo, nÃ?£o queremos dizer que a TAZ Ã?© um fim em si mesmo, substituindo todas as outras formas de organizaÃ?§Ã?£o, tÃ?¡ticas e objetivos. NÃ?³s a recomendamos porque ela pode fornecer a qualidade do enlevamento associado ao levante sem necessariamente levar Ã?  violÃ?ªncia e ao martÃ?­rio. A TAZ Ã?© uma espÃ?©cie de rebeliÃ?£o que nÃ?£o confronta o Estado diretamente, uma operaÃ?§Ã?£o de guerrilha que libera uma Ã?¡rea (de terra, de tempo, de imaginaÃ?§Ã?£o) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagÃ?¡-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a SimulaÃ?§Ã?£o, e nÃ?£o com a substÃ?¢ncia, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, “ocupar” clandestinamente essas Ã?¡reas e realizar seus propÃ?³sitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado por geraÃ?§Ã?µes – como alguns enclaves rurais – porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o EspetÃ?¡culo, porque nunca emergiram para fora daquela vida real que Ã?© invisÃ?­vel para os agentes da SimulaÃ?§Ã?£o.

    A BabilÃ?´nia toma suas abstraÃ?§Ã?µes como realidades. Ã?â?° precisamente dentro dessa margem de erro que a TAZ surge. Iniciar a TAZ pode envolver vÃ?¡rias tÃ?¡ticas de violÃ?ªncia e defesa, mas seu grande trunfo estÃ?¡ em sua invisibilidade – o Estado nÃ?£o pode reconhecÃ?ª-la porque a HistÃ?³ria nÃ?£o a define. Assim que a TAZ Ã?© nomeada (representada, mediada), ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trÃ?¡s um invÃ?³lucro vazio, e brotarÃ?¡ novamente em outro lugar, novamente invisÃ?­vel, porque Ã?©
    indefinÃ?­vel pelos termos do EspetÃ?¡culo. Assim sendo, a TAZ Ã?© uma tÃ?¡tica perfeita para uma Ã?©poca em que o Estado Ã?© onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas. E, uma vez que a TAZ Ã?© um microcosmo daquele “sonho anarquista” de uma cultura de liberdade, nÃ?£o consigo pensar em tÃ?¡tica melhor para prosseguir em direÃ?§Ã?£o a esse objetivo e, ao mesmo tempo, viver alguns de seus benefÃ?­cios aqui e agora.

    Em suma, uma postura realista exige nÃ?£o apenas que desistamos de esperar pela “RevoluÃ?§Ã?£o”, mas tambÃ?©m que desistamos de desejÃ?¡-la. “Levantes”, sim – sempre que possÃ?­vel, atÃ?© mesmo com o risco de violÃ?ªncia. Os espasmos do Estado Simulado serÃ?£o “espetaculares”, mas na maioria dos casos a tÃ?¡tica mais radical serÃ?¡ a recusa de participar da violÃ?ªncia espetacular, retirar-se da Ã?¡rea de simulaÃ?§Ã?£o, desaparecer.

    A TAZ Ã?© um acampamento de guerrilheiros ontologistas: ataque e fuja. Continue movendo a tribo inteira, mesmo que ela seja apenas dados na web. A TAZ deve ser capaz de se defender; mas, se possÃ?­vel, tanto o “ataque” quanto a “defesa” devem evadir a violÃ?ªncia do Estado, que jÃ?¡ nÃ?£o Ã?© uma violÃ?ªncia com sentido. O ataque Ã?© feito Ã? s estruturas de controle, essencialmente Ã? s idÃ?©ias. As tÃ?¡ticas de defesa sÃ?£o a “invisibilidade”, que Ã?© uma arte marcial, e a “invulnerabilidade”, uma arte “oculta” dentro das artes marciais. A “mÃ?¡quina de guerra nÃ?´made” conquista sem ser notada e se move antes do mapa ser retificado. Quanto ao futuro, apenas o autÃ?´nomo pode planejar a autonomia, organizar-se para ela, criÃ?¡-la. E uma aÃ?§Ã?£o conduzida por esforÃ?§o prÃ?³prio. O primeiro passo se assemelha a um satori – a constataÃ?§Ã?£o de que a TAZ comeÃ?§a com um simples ato de percepÃ?§Ã?£o.

    A Psicotopologia da Vida Cotidiana

    O CONCEITO DA TAZ surge inicialmente de uma crÃ?­tica Ã?  revoluÃ?§Ã?£o, e de uma anÃ?¡lise do levante. A revoluÃ?§Ã?£o classifica o levante como um “fracasso”. Mas, para nÃ?³s, um levante representa uma possibilidade muito mais interessante, do ponto de vista de uma psicologia de libertaÃ?§Ã?£o, do que as “bem-sucedidas” revoluÃ?§Ã?µes burguesas, comunistas, fascistas etc.

    Um outro elemento gerador do conceito da TAZ surge de um processo histÃ?³rico que eu chamo de “fechamento do mapa”. O Ã?ºltimo pedaÃ?§o da Terra nÃ?£o reivindicado por uma naÃ?§Ã?£o-Estado foi devorado em 1899. O nosso sÃ?©culo Ã?© o primeiro sem terra incÃ?³gnita, sem fronteiras. Nacionalidade Ã?© o princÃ?­pio mais importante do conceito de “governo” – nenhuma ponta de rocha no Mar do Sul pode ficar em aberto, nem um vale remoto, sequer a lua ou os planetas. Essa Ã?© a apoteose do “gangsterismo territorial”. Nenhum centÃ?­metro quadrado da Terra estÃ?¡ livre da polÃ?­cia ou dos impostos… em teoria.

    O “mapa” Ã?© uma malha polÃ?­tica abstrata, uma proibiÃ?§Ã?£o gigantesca imposta pela cenoura/cacetete condicionante do Estado “Especializado”, atÃ?© que para a maioria de nÃ?³s o mapa se torne o territÃ?³rio – nÃ?£o mais a “Ilha da Tartaruga (4)”, mas os “Estados Unidos”. E ainda assim o mapa continua sendo uma abstraÃ?§Ã?£o, porque nÃ?£o pode cobrir a Terra com a precisÃ?£o 1:1. Dentro das complexidades fractais da geografia atual, o mapa pode detectar apenas malhas dimensionais. ImensidÃ?µes embutidas e escondidas escapam da fita mÃ?©trica. O mapa nÃ?£o Ã?© exato, o mapa nÃ?£o pode ser exato.

    A RevoluÃ?§Ã?£o fechou-se, mas a possibilidade do levante estÃ?¡ aberta. Por ora, concentramos nossas forÃ?§as em “irrupÃ?§Ã?µes” temporÃ?¡rias, evitando enredamentos com “soluÃ?§Ã?µes permanentes”.

    O mapa estÃ?¡ fechado, mas a zona autÃ?´noma estÃ?¡ aberta. Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensÃ?µes fractais invisÃ?­veis Ã?  cartografia do Controle. E aqui podemos apresentar o conceito de psicotopologia (e psicotopografia) como uma “ciÃ?ªncia” alternativa Ã? quela da pesquisa e criaÃ?§Ã?£o de mapas e “imperialismo psÃ?­quico” do Estado. Apenas a psicotopografia Ã?© capaz de desenhar mapas da realidade em escala 1:1, porque apenas a mente humana tem a complexidade suficiente para modelar o real. Mas um mapa 1:1 nÃ?£o pode “controlar” seu territÃ?³rio, porque Ã?© completamente idÃ?ªntico a esse territÃ?³rio. Ele pode ser usado apenas para sugerir ou, de certo modo, indicar atravÃ?©s de gestos algumas caracterÃ?­sticas. Estamos Ã?  procura de “espaÃ?§os” (geogrÃ?¡ficos, sociais, culturais, imaginÃ?¡rios) com potencial de florescer como zonas autÃ?´nomas – dos momentos em que estejam relativamente abertos, seja por negligÃ?ªncia do Estado ou pelo fato de terem passado despercebidos pelos cartÃ?³grafos, ou por qualquer outra razÃ?£o. A psicotopologia Ã?© a arte de submergir em busca de potenciais TAZs.

    O fim da RevoluÃ?§Ã?£o e o fechamento do mapa sÃ?£o, no entanto, apenas as fontes negativas da TAZ: ainda hÃ?¡ muito a dizer sobre as suas inspiraÃ?§Ã?µes positivas. ReaÃ?§Ã?£o somente nÃ?£o pode gerar a energia necessÃ?¡ria para “manifestar” uma TAZ. Um levante tambÃ?©m precisa ser a favor de alguma coisa.

    1. Em primeiro lugar, podemos falar de uma antropologia natural da TAZ. A famÃ?­lia nuclear Ã?© a unidade base da sociedade de consenso, mas nÃ?£o da TAZ. (“FamÃ?­lias! Os avaros do amor! Como eu as odeio!” – Gide.) A famÃ?­lia nuclear, com suas consequentes “dores edipianas”, parece ter sido uma invenÃ?§Ã?£o neolÃ?­tica, uma resposta Ã?  “revoluÃ?§Ã?£o agrÃ?­cola” com sua escassez e hierarquia impostas. O modelo paleolÃ?­tico Ã?© mais primÃ?¡rio e mais radical: o bando. O tÃ?­pico bando nÃ?´made ou semi-nÃ?´made de caÃ?§adores/coletores Ã?© formado por cerca de cinquenta pessoas. Em sociedades tribais mais populosas, a estrutura de bando Ã?© mantida por clÃ?£s dentro da tribo, ou por confrarias como sociedades secretas ou iniciÃ?¡ticas, sociedades de caÃ?§a ou de guerra, associaÃ?§Ã?µes de gÃ?ªnero, as “repÃ?ºblicas de crianÃ?§as” e por aÃ?­ adiante. Se a famÃ?­lia nuclear Ã?© gerada pela escassez (e resulta em avareza), o bando Ã?© gerado pela abundÃ?¢ncia (e produz prodigalidade). A famÃ?­lia Ã?© fechada, geneticamente, pela posse masculina sobre as mulheres e crianÃ?§as, pela totalidade hierÃ?¡rquica da sociedade agrÃ?­cola/industrial. Por outro lado, o bando Ã?© aberto – nÃ?£o para todos, Ã?© claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram sobre um laÃ?§o de amor. O bando nÃ?£o pertence a uma hierarquia maior, ele Ã?© parte de um padrÃ?£o horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianÃ?§as, afinidades espirituais etc. (A sociedade dos Ã?­ndios norte-americanos preserva atÃ?© hoje certos aspectos dessa estrutura.)

    Muitas forÃ?§as estÃ?£o trabalhando – de forma invisÃ?­vel – para dissolver a famÃ?­lia nuclear e resgatar o bando em nossa prÃ?³pria sociedade da SimulaÃ?§Ã?£o pÃ?³s-Espetacular. Rupturas na estrutura do trabalho refletem a “estabilidade” estilhaÃ?§ada da unidade-lar e da unidade-famÃ?­lia. Hoje em dia, o “bando” de alguÃ?©m inclui amigos, ex-esposos e amantes, pessoas conhecidas em diferentes empregos e encontros, grupos de afinidade, redes de pessoas com interesses especÃ?­ficos, listas de discussÃ?£o etc. Cada vez mais fica evidente que a famÃ?­lia nuclear se torna uma armadilha, um ralo cultural, uma secreta implosÃ?£o neurÃ?³tica de Ã?¡tomos rompidos. E a contra-estratÃ?©gia Ã?³bvia emerge de forma espontÃ?¢nea na quase inconsciente redescoberta da possibilidade – mais arcaica e, no entanto, mais pÃ?³s-industrial – do bando.

    2. A TAZ como um festival. Stephen Pearl Andrews certa vez elaborou uma imagem da sociedade anarquista como um jantar, no qual todas as estruturas de autoridade se dissolvem no convÃ?­vio e na celebraÃ?§Ã?£o (veja o apÃ?ªndice C). Aqui poderÃ?­amos tambÃ?©m invocar Fourier e seu conceito dos sentidos como base de transformaÃ?§Ã?£o social – “toque do cio” e “gastrosofia”, e seu louvor Ã? s negligenciadas implicaÃ?§Ã?µes do olfato e do paladar. Os antigos conceitos de jubileu e bacanal se originaram a partir da intuiÃ?§Ã?£o de que certos eventos existem fora do “tempo profano”, a unidade de medida da HistÃ?³ria e do Estado. Essas ocasiÃ?µes literalmente ocupavam espaÃ?§os vazios no calendÃ?¡rio ââ?¬â?? intervalos intercalados. Na Idade MÃ?©dia, quase um terÃ?§o do ano era reservado para feriados e dias santos. Talvez os protestos contra a reforma no calendÃ?¡rio tenham tido menos a ver com os “onze dias perdidos” do que com a sensaÃ?§Ã?£o de que a ciÃ?ªncia imperial estava conspirando para preencher esses espaÃ?§os vazios dentro do calendÃ?¡rio, onde a liberdade das pessoas havia se concentrado. Um golpe de Estado, um mapeamento do ano, a dominaÃ?§Ã?£o do prÃ?³prio tempo, transformando o cosmo orgÃ?¢nico num universo que funciona como um relÃ?³gio. A morte do festival.

    Os que participam de levantes invariavelmente notam seus aspectos festivos, mesmo em meio Ã?  luta armada, perigo e risco. O levante Ã?© como um bacanal que escapou (ou foi forÃ?§ado a desaparecer) de seu intervalo intercalado e agora estÃ?¡ livre para aparecer em qualquer lugar ou a qualquer hora. Liberto do tempo e do espaÃ?§o, ele, no entanto, possui bom faro para o amadurecimento dos eventos e afinidade com o genius loci. A ciÃ?ªncia da psicotopologia indica “fluxos de forÃ?§a” e “pontos de poder” (para usar metÃ?¡foras ocultistas) que localizam a TAZ num espaÃ?§o-temporal, ou que, pelo menos, ajudam a definir sua relaÃ?§Ã?£o com um determinado momento e local.

    A mÃ?­dia nos convida a “celebrar os momentos da nossa vida” com a unificaÃ?§Ã?£o espÃ?ºria entre mercadoria e espetÃ?¡culo, o famoso nÃ?£o-evento da representaÃ?§Ã?£o pura. Em resposta a tamanha obscenidade, nÃ?³s temos, por um lado, o espectro da recusa (comentado pelos situacionistas John Zerzan, Bob Black et al.) e, por outro, a emergÃ?ªncia de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso lazer. “Lute pelo direito de festejar” nÃ?£o Ã?©, na verdade, uma parÃ?³dia da luta radical, mas uma nova manifestaÃ?§Ã?£o dessa luta, apropriada para uma Ã?©poca que oferece a TV e o telefone como maneiras de “alcanÃ?§ar e tocar” outros seres humanos, maneiras de “estar junto!”

    Pearl Andrews estava certo: o jantar jÃ?¡ Ã?© “a semente de uma nova sociedade tomando forma dentro do invÃ?³lucro da antiga” (IWW Preamble). A “reuniÃ?£o tribal” dos anos 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane (5) idÃ?­lico dos neo-pagÃ?£os, as conferÃ?ªncias anarquistas, as festas gays… as festas de aluguel no Harlem dos anos 20, as casas noturnas, os banquetes, os piqueniques dos antigos libertÃ?¡rios – devemos perceber que todos esses eventos sÃ?£o, de certo modo, “zonas libertas”, ou pelo menos TAZs em potencial. Seja ela apenas para poucos amigos, como Ã?© o caso de um jantar, ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa Ã?© sempre “aberta” porque nÃ?£o Ã?© “ordenada”. Ela pode atÃ?© ser planejada, mas se ela nÃ?£o acontece Ã?© um fracasso. A espontaneidade Ã?© crucial.

    A essÃ?ªncia da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos coloca seus esforÃ?§os em sinergia para realizar desejos mÃ?ºtuos, seja por boa comida e alegria, por danÃ?§a, conversa, pelas artes da vida. Talvez atÃ?© mesmo por prazer erÃ?³tico ou para criar uma obra de arte comunal, ou para alcanÃ?§ar o arroubamento do Ã?ªxtase. Em suma, uma “uniÃ?£o de Ã?ºnicos” (como coloca Stirner) em sua forma mais simples, ou entÃ?£o, nos termos de Kropotkin, um bÃ?¡sico impulso biolÃ?³gico de “ajuda mÃ?ºtua”. (Aqui devemos mencionar a “economia do excesso” de Bataille e sua teoria sobre a cultura potlatch.)

    3. O conceito de nomadismo psÃ?­quico (ou, como o chamamos por brincadeira, “cosmopolitismo desenraizado”) Ã?© vital para a formaÃ?§Ã?£o da realidade da TAZ. Aspectos desse fenÃ?´meno foram discutidos por Deleuze e Guattari em Tratado de Nomadologia: a mÃ?¡quina de guerra, por Lyotard em Driftworks e por vÃ?¡rios autores na ediÃ?§Ã?£o “OÃ?¡sis” da Semiotext(e). Preferimos o termo “nomadismo psÃ?­quico” a “nomadismo urbano” ou “nomadologia”, “aÃ?§Ã?µes Ã?  deriva” etc., simplesmente para poder juntar todos esses conceitos num Ã?ºnico sistema complexo que serÃ?¡ estudado Ã?  luz da emergÃ?ªncia da TAZ.

    “A morte de Deus”, que de certo modo representou a descentralizaÃ?§Ã?£o do “projeto europeu”, abriu a possibilidade de uma visÃ?£o de mundo pÃ?³s-ideolÃ?³gica e multifacetada, capaz de se mover, de forma “desenraizada”, da filosofia para o mito tribal, da ciÃ?ªncia natural para o taoÃ?­smo. Capaz de enxergar, pela primeira vez, atravÃ?©s de olhos caleidoscÃ?³picos como os olhos de algum inseto dourado, cada faceta apresentando a concepÃ?§Ã?£o de outro mundo inteiramente diverso.

    Mas essa visÃ?£o foi alcanÃ?§ada Ã? s custas de se viver numa Ã?©poca na qual a velocidade e o “fetichismo da mercadoria” criaram uma unidade tirÃ?¢nica e falsa que tende a ofuscar toda a diversidade cultural e toda a individualidade para que “todo lugar seja igual ao outro”. Este paradoxo cria “ciganos”, viajantes psÃ?­quicos guiados pelo desejo ou pela curiosidade, errantes com laÃ?§os de lealdade frouxos (na verdade, desleais ao “projeto europeu”, que perdeu todo o seu charme e vitalidade), desligados de qualquer local ou tempo determinado, em busca de diversidade e aventura…Essa descriÃ?§Ã?£o engloba nÃ?£o apenas artistas e intelectuais classe X, como tambÃ?©m trabalhadores imigrantes, refugiados, os “sem-teto”, turistas, e todos aqueles que vivem em trailers – assim como pessoas que “viajam” na internet, sem talvez jamais saÃ?­rem de seus quartos (ou aquelas como Thoreau, que “viajou demais ââ?¬â?? em Concord”), para finalmente englobar “todo mundo”, todos nÃ?³s, vivendo em nossos automÃ?³veis, em nossas fÃ?©rias, aparelhos de TV, livros, filmes, telefones, trocando de emprego, mudando
    de “estilo de vida”, de religiÃ?£o, de dieta etc. etc.

    O nomadismo psÃ?­quico como uma tÃ?¡tica, aquilo que Deleuze e Guattari metaforicamente chamam de “mÃ?¡quina de guerra”, muda o paradoxo de um modo passivo para um modo ativo e talvez atÃ?© mesmo “violento”. Os Ã?ºltimos espasmos de “Deus” e seus sacolejos no leito de morte vÃ?ªm se arrastando por tanto tempo – nas formas do capitalismo, fascismo e comunismo, por exemplo – que ainda existe muita “destruiÃ?§Ã?£o criativa” para ser executada por comandos ou apaches (literalmente, inimigos) pÃ?³s-bakunianos e pÃ?³s-nietzscheanos. Esses nÃ?´mades exercitam a razzia, sÃ?£o corsÃ?¡rios, sÃ?£o vÃ?­rus. Sentem tanto o desejo quanto a necessidade de TAZs, acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto, interzonas, oÃ?¡sis fortificados escondidos nas rotas das caravanas secretas, trechos de selva e sertÃ?µes “liberados”, Ã?¡reas proibidas, mercados negros e bazares underground.

    Esses n�´mades orientam seu percurso por estrelas estranhas, que podem ser n�ºcleos luminosos de dados no ciberespa�§o ou, talvez, alucina�§�µes. Abra um mapa do territ�³rio; sobre ele, coloque um mapa das mudan�§as pol�­ticas; sobre ele, ponha um mapa da internet, especialmente da contra-net, com sua �ªnfase no fluxo clandestino de informa�§�µes e log�­stica; e, por �ºltimo, sobre tudo isso, o mapa 1:1 da imagina�§�£o criativa, est�©tica, valores. A malha resultante ganha vida, animada por inesperados redemoinhos e explos�µes de energia, coagula�§�µes de luz, t�ºneis secretos, surpresas.

    A Net e a Web

    O PRÃ?â??XIMO ELEMENTO que contribui para a TAZ Ã?© tÃ?£o vasto e ambÃ?­guo que precisa de uma seÃ?§Ã?£o Ã?  parte somente para ele.

    JÃ?¡ falamos da net, que pode ser definida como a totalidade de todas as transferÃ?ªncias de informaÃ?§Ã?µes e de dados. Algumas dessas transferÃ?ªncias sÃ?£o privilÃ?©gio e exclusividade de vÃ?¡rias elites, o que lhes confere um aspecto hierÃ?¡rquico. Outras transaÃ?§Ã?µes sÃ?£o abertas a todos – e deste modo a internet tambÃ?©m possui um aspecto horizontal e nÃ?£o-hierÃ?¡rquico. Dados militares e de seguranÃ?§a nacional sÃ?£o restritos, assim como informaÃ?§Ã?µes bancÃ?¡rias e monetÃ?¡rias, e outras informaÃ?§Ã?µes deste tipo. PorÃ?©m, de maneira geral, a telefonia, o sistema postal, os bancos de dados pÃ?ºblicos etc. sÃ?£o acessÃ?­veis a todos. Desta forma, de dentro da net comeÃ?§ou a emergir um tipo de contra-net, que nÃ?³s chamaremos de web (como se a internet fosse uma rede de pesca e a web as teias de aranha tecidas entre os interstÃ?­cios e rupturas da net). Em termos gerais, empregaremos a palavra web para designar a estrutura aberta, alternada e horizontal de troca de informaÃ?§Ã?µes, ou seja, a rede nÃ?£o-hierÃ?¡rquica, e reservaremos o termo contra-net para indicar o uso clandestino, ilegal e rebelde da web, incluindo a pirataria de dados e outras formas de parasitar a prÃ?³pria net. A net, a web e a contra-net sÃ?£o partes do mesmo complexo, e se mesclam em inÃ?ºmeros pontos. Esses termos nÃ?£o foram criados para definir Ã?¡reas, mas para sugerir
    tend�ªncias.

    (DigressÃ?£o: Antes de condenar a web ou a contra-net por seu “parasitismo”, que jamais poderia ser uma forÃ?§a verdadeiramente revolucionÃ?¡ria, pergunte-se o que significa “produÃ?§Ã?£o” na era da SimulaÃ?§Ã?£o. Qual Ã?© a “classe produtora”? Talvez vocÃ?ª seja forÃ?§ado a admitir que esses termos perderam o sentido. De qualquer forma, as respostas a essas perguntas sÃ?£o tÃ?£o complexas que a TAZ tende a ignorÃ?¡-las por completo e simplesmente escolhe o que pode usar. “Cultura Ã?© nossa natureza”, e nÃ?³s somos os corvos ladrÃ?µes, os caÃ?§adores/coletores do mundo da ComunicaÃ?§Ã?£o TecnolÃ?³gica.)

    SupÃ?µe-se que as formas atuais da web nÃ?£o-oficial sejam ainda bastante primitivas: a rede marginal de zines, as redes BBS (6), softwares piratas, grampos telefÃ?´nicos, alguma influÃ?ªncia na mÃ?­dia impressa e no rÃ?¡dio e quase nenhuma nos outros grandes canais de comunicaÃ?§Ã?£o – nenhuma emissora de TV, nenhum satÃ?©lite, nenhuma fibra Ã?³tica, nenhum cabo etc. etc. No entanto, a prÃ?³pria net apresenta um padrÃ?£o de relaÃ?§Ã?µes entre sujeitos (“usuÃ?¡rios”) e objetos (“dados”) em constante mutaÃ?§Ã?£o/evoluÃ?§Ã?£o. A natureza dessas relaÃ?§Ã?µes tem sido explorada exaustivamente, de McLuhan a Virilio. UsarÃ?­amos pÃ?¡ginas e mais pÃ?¡ginas para “provar” o que agora “todo mundo jÃ?¡ sabe”. Em vez de rediscutir tudo isso, estou interessado em investigar como essas relaÃ?§Ã?µes em constante evoluÃ?§Ã?£o sugerem modos de implementaÃ?§Ã?£o para a TAZ.

    A TAZ possui uma localizaÃ?§Ã?£o temporÃ?¡ria mas real no tempo, e uma localizaÃ?§Ã?£o temporÃ?¡ria mas real no espaÃ?§o. PorÃ?©m, obviamente, ela tambÃ?©m precisa ter um local dentro da web, outro tipo de local: nÃ?£o real, mas virtual; nÃ?£o imediato, mas instantÃ?¢neo. A web nÃ?£o fornece apenas um apoio logÃ?­stico Ã?  TAZ, tambÃ?©m ajuda a criÃ?¡-la. Grosso modo, poderÃ?­amos dizer que a TAZ “existe” tanto no espaÃ?§o da informaÃ?§Ã?£o quanto no “mundo real”. A web pode compactar muito tempo, em forma de dados, num “espaÃ?§o” infinitesimal. Dizemos que a TAZ, por ser temporÃ?¡ria, nÃ?£o oferece algumas das vantagens de uma liberdade com duraÃ?§Ã?£o e de uma localizaÃ?§Ã?£o mais ou menos estÃ?¡vel. Mas a web oferece uma espÃ?©cie de substituto para parte disso – ela pode informar a TAZ, desde o seu inÃ?­cio, com vastas quantidades de tempo e espaÃ?§o compactados que estavam sendo “subutilizados” na forma de dados.

    Nesse ponto da evoluÃ?§Ã?£o da web, e considerando nossas exigÃ?ªncias por algo que seja palpÃ?¡vel e sensual, devemos considerar a web fundamentalmente como um sistema de suporte, capaz de transmitir informaÃ?§Ã?µes de uma TAZ a outra, ou defender a TAZ, tornando-a “invisÃ?­vel” ou dando-lhe garras, conforme a situaÃ?§Ã?£o exigir. PorÃ?©m mais do que isso: se a TAZ Ã?© um acampamento nÃ?´made, entÃ?£o a web ajuda a criar Ã?©picos, canÃ?§Ã?µes, genealogias e lendas da tribo. Ela fornece as trilhas de assalto e as rotas secretas que compÃ?µem o fluxo da economia tribal. Ela atÃ?© mesmo contÃ?©m alguns dos caminhos que as tribos seguirÃ?£o sÃ?³ no futuro, alguns dos sonhos que eles viverÃ?£o como sinais e pressÃ?¡gios.

    Nossa web nÃ?£o depende de nenhuma tecnologia de computaÃ?§Ã?£o para existir. O boca-a-boca, os correios, a rede marginal de zines, as “Ã?¡rvores telefÃ?´nicas” e coisas do gÃ?ªnero sÃ?£o suficientes para se construir uma rede de informaÃ?§Ã?£o. A chave nÃ?£o Ã?© o tipo ou o nÃ?­vel da tecnologia envolvida, mas a abertura e a horizontalidade da estrutura. Contudo, o prÃ?³prio conceito da net implica o uso de computadores. Na imaginaÃ?§Ã?£o da ficÃ?§Ã?£o cientÃ?­fica, a net Ã?© conduzida para a condiÃ?§Ã?£o de ciberespaÃ?§o (como Tron e no livro de William Gibson, Neuromancer) e para a pseudo-telepatia da “realidade virtual”. Como fÃ?£ do cyberpunk, nÃ?£o consigo deixar de antever o importante papel que o “hacking da realidade” terÃ?¡ na criaÃ?§Ã?£o das TAZs. Assim como Gibson e Sterling, acredito que a net oficial jamais conseguirÃ?¡ conter a web ou a contra-net – a pirataria de dados, as transmissÃ?µes nÃ?£o autorizadas e o fluxo livre de informaÃ?§Ã?µes nÃ?£o podem ser detidos. (Na verdade, no meu entender, a Teoria do Caos pressupÃ?µe que nenhum sistema de controle universal seja possÃ?­vel.)

    No entanto, deixando de lado as meras especulaÃ?§Ã?µes sobre o futuro, devemos encarar uma questÃ?£o sÃ?©ria sobre a web e a tecnologia que ela envolve. A TAZ deseja, acima de tudo, evitar a mediaÃ?§Ã?£o, experimentar a existÃ?ªncia de forma imediata. A essÃ?ªncia da TAZ Ã?© “peito-a-peito”, como dizem os sufis, ou cara-a-cara. Mas, MAS: a essÃ?ªncia da web Ã?© mediaÃ?§Ã?£o, onde as mÃ?¡quinas sÃ?£o nossos embaixadores – a carne Ã?© irrelevante exceto como um terminal, com todas as conotaÃ?§Ã?µes sinistras do termo.

    Talvez a melhor maneira para a TAZ encontrar seu pr�³prio espa�§o seja adotando duas atitudes aparentemente contradit�³rias em rela�§�£o �  alta tecnologia e sua apoteose, a net: a) aquilo que podemos chamar de Quinto Estado, a posi�§�£o neo-paleol�­tica, p�³s-situacionista e ultra-verde, que se traduz como um argumento ludita contra a media�§�£o e contra a internet; e b) os cyberpunks ut�³picos, os futuro-libert�¡rios, os hackers da realidade e seus aliados, que percebem a internet como um passo adiante na nossa evolu�§�£o, e que acreditam que qualquer poss�­vel efeito maligno da media�§�£o possa ser superado, ao menos depois de termos liberado os meios de produ�§�£o.

    A TAZ concorda com os hackers porque deseja – em parte -ganhar existÃ?ªncia atravÃ?©s da net, e atÃ?© mesmo atravÃ?©s da mediaÃ?§Ã?£o da net. Mas ela tambÃ?©m concorda com os partidÃ?¡rios do ambientalismo porque possui uma intensa percepÃ?§Ã?£o de si mesma como corpo e sente nojo da cibergnose, a tentativa de transcender o corpo atravÃ?©s da instantaneidade e da simulaÃ?§Ã?£o. A TAZ tende a condenar a dicotomia entre tecnologia e antitecnologia como um equÃ?­voco: como Ã?© um equÃ?­voco a maioria das dicotomias, onde opostos aparentes acabam se revelando falsificaÃ?§Ã?µes ou mesmo alucinaÃ?§Ã?µes provocadas pela semÃ?¢ntica. Essa Ã?© uma forma de dizer que a TAZ quer viver neste mundo, nÃ?£o na idÃ?©ia de outro mundo, um mundo visionÃ?¡rio qualquer nascido de uma falsa unificaÃ?§Ã?£o (todo verde OU todo metal), que sÃ?³ pode ser mais um castelo nas nuvens (ou, como disse Alice, “GelÃ?©ia ontem ou gelÃ?©ia amanhÃ?£, mas jamais gelÃ?©ia hoje”).

    A TAZ Ã?© “utÃ?³pica” no sentido que imagina uma intensificaÃ?§Ã?£o da vida cotidiana ou, como diriam os surrealistas, a penetraÃ?§Ã?£o do Maravilhoso na vida. Mas nÃ?£o pode ser utÃ?³pica no sentido literal do termo, sem local, ou “lugar do lugar nenhum” A TAZ existe em algum lugar. Ela fica na interseÃ?§Ã?£o de muitas forÃ?§as, como um ponto de poder pagÃ?£o na junÃ?§Ã?£o das misteriosas linhas de realidades paralelas, visÃ?­vel para o adepto em detalhes do terreno, da paisagem, das correntes de ar, da Ã?¡gua, dos animais e, aparentemente, sem qualquer relaÃ?§Ã?£o um com o outro. Mas agora essas linhas nÃ?£o pertencem apenas ao tempo e ao espaÃ?§o. Algumas existem unicamente “dentro” da web, apesar de possuÃ?­rem tambÃ?©m interseÃ?§Ã?£o com o tempo e os lugares reais. Talvez algumas dessas linhas sejam “extraordinÃ?¡rias”, no sentido que nÃ?£o existem convenÃ?§Ã?µes para sua classificaÃ?§Ã?£o. Talvez essas linhas possam ser melhor estudadas Ã?  luz da ciÃ?ªncia do caos do que Ã?  luz da sociologia, estatÃ?­stica, economia etc. Os padrÃ?µes de forÃ?§a que geram a existÃ?ªncia da TAZ tÃ?ªm algo em comum com estes caÃ?³ticos “Atratores Estranhos” que existem, por modo de dizer, entre as dimensÃ?µes.

    Por uma caracterÃ?­stica de sua prÃ?³pria natureza, a TAZ faz uso de qualquer meio disponÃ?­vel para concretizar-se – pode ganhar vida tanto numa caverna quanto numa cidade espacial – mas, acima de tudo, ela vai viver, agora, ou o quanto antes, sob qualquer forma, seja ela suspeita ou desorganizada. Espontaneamente, sem preocupar-se com ideologias ou antiideologias. Ela vai fazer uso do computador porque o computador existe, mas tambÃ?©m usarÃ?¡ poderes tÃ?£o completamente divorciados da alienaÃ?§Ã?£o e da simulaÃ?§Ã?£o que lhe garantirÃ?£o um certo paleolitismo psÃ?­quico, um espÃ?­rito xamÃ?¢nico primordial que vai “infectar” atÃ?© a prÃ?³pria net (o verdadeiro sentido do cyberpunk, como eu o entendo). Porque a TAZ Ã?© uma intensificaÃ?§Ã?£o, um excesso, uma abundÃ?¢ncia, um potlatch, a vida vivida em vez de sobrevivida (a chorosa marca dos anos 80), e nÃ?£o pode ser definida como tecnolÃ?³gica ou anti-tecnolÃ?³gica. Ela se contradiz, como alguÃ?©m que verdadeiramente despreza fantasmas e apariÃ?§Ã?µes, porque deseja ser, a qualquer custo ou prejuÃ?­zo para a “perfeiÃ?§Ã?£o” ou imobilidade final.

    No Mandelbrot Set (7) e em suas variaÃ?§Ã?µes no campo da computaÃ?§Ã?£o grÃ?¡fica, encontramos ââ?¬â?? num universo fractal – mapas que estÃ?£o embutidos e escondidos dentro de mapas que estÃ?£o dentro de outros mapas etc., atÃ?© o limite do poder do computador. Qual Ã?© a funÃ?§Ã?£o deste mapa que de certo modo apresenta uma escala de 1:1 em relaÃ?§Ã?£o Ã?  dimensÃ?£o fractal? O que podemos fazer com ele, alÃ?©m de admirar sua elegÃ?¢ncia psicodÃ?©lica?

    Se fÃ?´ssemos imaginar um mapa da informaÃ?§Ã?£o – uma projeÃ?§Ã?£o cartogrÃ?¡fica da net como um todo – terÃ?­amos que incluir os elementos do caos que jÃ?¡ comeÃ?§aram a aparecer, por exemplo, nas operaÃ?§Ã?µes de processos paralelos complexos, nas telecomunicaÃ?§Ã?µes, na transferÃ?ªncia de “dinheiro” eletrÃ?´nico, nos vÃ?­rus, na guerrilha dos hackers etc.

    Cada uma dessas “Ã?¡reas” de caos poderiam ser representadas por topografias semelhantes Ã? s do Mandelbrot Set, de forma que as “penÃ?­nsulas” ficassem embutidas ou escondidas dentro do mapa e quase “desaparecessem”. Esta “escrita” – que em parte desaparece e em parte se esconde – representa o prÃ?³prio processo que jÃ?¡ Ã?© parte intrÃ?­nseca da net, nÃ?£o totalmente visÃ?­vel nem para si mesmo, in-ControlÃ?¡vel. Em outras palavras, o M Set, ou qualquer coisa semelhante, pode vir a ser Ã?ºtil na “armaÃ?§Ã?£o” (em todos os sentidos da palavra) para o surgimento da contra-net como um processo caÃ?³tico ou, para usar um termo de Prigogine, como uma “evoluÃ?§Ã?£o criativa”. No mÃ?­nimo, o M Set serve como uma metÃ?¡fora para o “mapeamento” da interface da TAZ com a net como um desaparecimento da informaÃ?§Ã?£o. Toda “catÃ?¡strofe” na net Ã?© um nÃ?³dulo de poder para a web, a contra-net. A net serÃ?¡ prejudicada pelo caos, enquanto que a web vai prosperar nele.

    Seja atravÃ?©s de uma simples pirataria de dados, ou do desenvolvimento de formas mais complexas de relacionamento com o caos, o hacker da web, o cibernauta da TAZ, encontrarÃ?¡ maneiras de aproveitar as perturbaÃ?§Ã?µes, quedas e breakdowns da net (maneiras de gerar informaÃ?§Ã?£o a partir da “entropia”). O hacker da TAZ trabalharÃ?¡ para a evoluÃ?§Ã?£o de conexÃ?µes fractais clandestinas como um rastreador de fragmentos de informaÃ?§Ã?µes, um contrabandista, um chantagista, talvez atÃ?© mesmo como um ciber-terrorista. Estas conexÃ?µes, e as diferentes informaÃ?§Ã?µes que fluem entre elas e por elas, formarÃ?£o as “vÃ?¡lvulas de poder” para a emergÃ?ªncia da prÃ?³pria TAZ – como Ã?© necessÃ?¡rio roubar energia elÃ?©trica dos monopÃ?³lios distribuidores de eletricidade para iluminar uma casa abandonada que foi invadida.

    Desta forma, a web, para produzir situaÃ?§Ã?µes propÃ?­cias para a TAZ, irÃ?¡ paralisar a net. Mas tambÃ?©m podemos conceber esta estratÃ?©gia como uma tentativa de arquitetar a construÃ?§Ã?£o de uma net alternativa e autÃ?´noma, “livre” e nÃ?£o parasÃ?­tica, que servirÃ?¡ como a base de uma “nova sociedade emergindo do invÃ?³lucro da antiga”. Em termos prÃ?¡ticos, a contranet e a TAZ podem ser consideradas como fins em si mesmas – mas, em teoria, tambÃ?©m podem ser vistas como formas da batalha para se forjar uma realidade diferente.

    Uma vez dito isso, devemos admitir algumas falhas nos computadores, algumas quest�µes ainda sem resposta, especialmente em rela�§�£o aos PCs (computadores pessoais).

    A histÃ?³ria da rede de computadores, BBS e vÃ?¡rias outras experiÃ?ªncias em eletro-democracia tem sido atÃ?© agora mais um hobby do que qualquer outra coisa. Muitos anarquistas e liberais mantÃ?ªm uma grande esperanÃ?§a no PC como uma arma para a libertaÃ?§Ã?£o e auto-liberaÃ?§Ã?£o – mas nÃ?£o temos ainda nenhum ganho real, nenhuma liberdade palpÃ?¡vel.

    NÃ?£o tenho interesse algum por uma hipotÃ?©tica classe empreendedora emergente formada por processadores de dados autÃ?´nomos que logo estarÃ?£o capacitados para administrar uma grande empresa de queijos ou qualquer outro trabalho de merda para vÃ?¡rias corporaÃ?§Ã?µes e burocracias. No entanto, nÃ?£o Ã?© preciso ser bidu para prever que esta “classe” vai gerar sua subclasse – um tipo de proletariado mauricinho: por exemplo, donas-de-casa que trarÃ?£o um “segundo salÃ?¡rio” para suas famÃ?­lias transformando suas prÃ?³prias casas em lojinhas eletrÃ?´nicas, formando pequenas tiranias de trabalho, onde o “patrÃ?£o” Ã?© a rede de computadores.

    TambÃ?©m nÃ?£o me impressionam os tipos de informaÃ?§Ã?µes e serviÃ?§os oferecidos pelas redes contemporÃ?¢neas “radicais”. Dizem que em algum lugar existe uma “economia da informaÃ?§Ã?£o”. Talvez, mas a info trocada pelos canais “alternativos” de BBS parece ser constituÃ?­da integralmente de conversa fiada ou papo tecnolÃ?³gico. Isso Ã?© uma nova economia? Ou apenas um passatempo para os aficionados? OK, os PCs causaram uma nova “revoluÃ?§Ã?£o da imprensa”. OK, redes marginais na web estÃ?£o evoluindo. OK, posso agora fazer seis telefonemas ao mesmo tempo. Mas que diferenÃ?§a isso faz para minha vida diÃ?¡ria?

    Francamente, eu jÃ?¡ possuÃ?­a muitos dados para alimentar meus sentidos e percepÃ?§Ã?µes: livros, filmes, TV, teatro, telefone, correio, estados alterados de consciÃ?ªncia, e daÃ?­ por diante. Preciso realmente de um PC para obter ainda mais informaÃ?§Ã?µes desse tipo? VocÃ?ª me oferece informaÃ?§Ã?£o secreta? Bem… talvez. Fico tentado, mas eu exijo segredos maravilhosos, e nÃ?£o apenas os nÃ?ºmeros de telefones que nÃ?£o estÃ?£o na lista ou trivialidades sobre a polÃ?­cia e os polÃ?­ticos. Sobretudo, quero que os computadores me forneÃ?§am informaÃ?§Ã?µes relacionadas a bens reais – “as coisas boas da vida”, como o IWW Preamble diz. Agora, jÃ?¡ que acuso os hackers e os usuÃ?¡rios das BBS de possuÃ?­rem uma irritante vacuidade intelectual, devo descer das nuvens barrocas da teoria e da crÃ?­tica e explicar o que quero dizer com bens reais.

    Eu diria que tanto por razÃ?µes polÃ?­ticas quanto culturais eu desejo boa comida, uma comida melhor do que esta que posso obter do capitalismo – nÃ?£o poluÃ?­da e agraciada com sabores fortes e naturais. Para complicar, imagine que a comida que eu desejo Ã?© ilegal – talvez leite nÃ?£o pasteurizado, ou a deliciosa fruta cubana mamey, que nÃ?£o pode ser importada pelos EUA porque suas sementes sÃ?£o alucinÃ?³genas (pelo menos foi isso que me disseram). NÃ?£o sou um fazendeiro. Finja que eu seja um importador de perfumes raros e afrodisÃ?­acos, e suponha que a maior parte do meu estoque seja ilegal. Ou talvez eu apenas queira trocar serviÃ?§os de processamento de dados por nabos orgÃ?¢nicos, mas recuse a declarÃ?¡-lo no imposto de renda (como a lei exige, acredite se puder). Ou talvez eu queira encontrar-me com outros seres humanos para atos de prazer de comum acordo, mas ilegais(isto jÃ?¡ foi tentado, mas todas as BBS de sexo hardcore foram proibidas – e de que serve um mundo underground com uma torpe seguranÃ?§a?). Em suma, suponha que eu esteja cansado de mera informaÃ?§Ã?£o, do fantasma dentro da mÃ?¡quina. De acordo com vocÃ?ªs, os computadores jÃ?¡ deveriam ser capazes de possibilitar a realizaÃ?§Ã?£o dos meus desejos por comida, drogas, sexo, sonegaÃ?§Ã?£o fiscal. EntÃ?£o, qual Ã?© o problema? Por que isso nÃ?£o estÃ?¡ acontecendo?

    A TAZ aconteceu, estÃ?¡ acontecendo e vai acontecer com ou sem o computador. Mas para que a TAZ realize plenamente o seu potencial, ela deve tornar-se menos um caso de combustÃ?£o espontÃ?¢nea e mais uma situaÃ?§Ã?£o de “ilhas na net”. A net, ou melhor, a contra-net assume a promessa de ser um aspecto integral da TAZ, uma adiÃ?§Ã?£o que irÃ?¡ multiplicar o seu potencial, um salto “quantum”, um salto enorme em termos de complexidade e significÃ?¢ncia. A TAZ agora deve existir dentro de um mundo de espaÃ?§o puro, o mundo dos sentidos. No limiar, mesmo num ponto de evanescÃ?ªncia, a TAZ deve combinar informaÃ?§Ã?µes e desejos para realizar sua aventura (seu “acontecimento”), para preencher-se atÃ?© as bordas de seu destino, para intensificar-se com sua prÃ?³pria emergÃ?ªncia.

    Talvez a escola neo-paleolÃ?­tica tenha razÃ?£o quando diz que todas as formas de alienaÃ?§Ã?£o e mediaÃ?§Ã?£o devem ser destruÃ?­das ou abandonadas como condiÃ?§Ã?£o para que nossas metas sejam alcanÃ?§adas – ou talvez o anarquismo verdadeiro sÃ?³ possa ser realizado no espaÃ?§o sideral, como dizem alguns libertÃ?¡rios futurÃ?³logos. Mas a TAZ nÃ?£o se preocupa muito com o “foi” ou o “serÃ?¡”. A TAZ estÃ?¡ interessada em resultados, ataques com Ã?ªxito Ã?  realidade consensual, conquistas de patamares de vida mais altos e intensos. Se o computador nÃ?£o pode ser utilizado para este projeto, entÃ?£o ele precisa ser dispensado. Minha intuiÃ?§Ã?£o, no entanto, diz que a contra-net jÃ?¡ estÃ?¡ se formando, ou talvez jÃ?¡ exista – embora eu nÃ?£o possa provÃ?¡-lo. A teoria da TAZ estÃ?¡, em grande parte, baseada nesta intuiÃ?§Ã?£o. Ã?â?° claro que a nossa web tambÃ?©m encerra redes de troca nÃ?£o-computadorizadas, como o samizdat, o mercado negro etc. – mas o pleno potencial de redes de informaÃ?§Ã?£o nÃ?£o-hierÃ?¡rquicas aponta para o computador como seu instrumento por excelÃ?ªncia. Agora, espero pelos hackers que provem que estou certo, que minha intuiÃ?§Ã?£o Ã?© vÃ?¡lida. Onde estÃ?£o meus nabos?

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