a pé no sentido sudeste-noroeste


A estátua do homem nu, em Curitiba, olhando para noroeste; ainda sem a sua companheira, em foto de Wilson Brustolin, na década de 60.

O CAMINHO DO PEABIRU

A palavra Peabiru é tupi-guarani e para ela há uma variedade de definições: “Caminho forrado”; “Caminho antigo de ida e volta”; “Caminho pisado”; “Caminho sem ervas”; “Caminho que leva ao céu”, entre outras.
A intensa ocupação humana destruiu o Peabiru, hoje restam pouquí­ssimos vestí­gios. Os mais importantes deles, até o momento, localizam-se em Pitanga / PR.
Provavelmente milenar, o Caminho foi descrito desde o século 16 como possuindo cerca de oito palmos de largura, uma profundidade de 40 cm. e forrado por gramí­neas que impediam o crescimento do mato.
Ainda não é possí­vel saber a rota exata do Caminho, mas, é possí­vel traçar um roteiro aproximado.
O tronco paulista, que começava em São Vicente e Cananéia, seguia a direção do rio Tietê – municí­pio de Itu – rio Paranapanema – rio Itararé – nascente do rio Ribeira do Iguape.
Entrando no PR, percorria Doutor Ulisses – Cerro Azul – Castro – Tibagi – Reserva – Cândido de Abreu – Pitanga – Palmital – Guaraniaçu – Corbélia – Nova Aurora – Tupãssi – Assis Chateubriand – Palotina – Guaí­ra.
O tronco principal catarinense, iniciava-se provavelmente no Massiambu (Palhoça), seguindo por Florianópolis – litoral norte – rio Itapocu – Guaramirim – São Bento – Mafra. Entrava no PR por Rio Negro – Campo do Tenente – Lapa – Porto Amazonas – Palmeira – Castro, trecho usado depois pelos tropeiros.
O Peabiru deixava o estado do PR por Guaí­ra. Havia outra passagem por Foz do Iguaçu – usada por Alvarez Nunes Cabeza de Vaca em 1542.
O Peabiru então, seguia ao norte até a serra de Santa Luzia, perto de Corumbá / MS. Em Puerto Suarez penetrava na Bolí­via. Passava por Cochabamba – Sucre – Potosí­. Nesses locais existiam caminhos incas com várias opções para alcançar o Pací­fico, as mais próximas eram Tacna, Montegua e Arequipa.

Os estudiosos ainda não sabem quem abriu o Caminho do Peabiru. Há três hipóteses principais:
1 – Caminho da Terra Sem Mal – A primeira hipótese supõe que o Peabiru tenha sido aberto pelos guaranis ou por povos anteriores – talvez os itararés.
Originária do Paraguai, a tribo teria se deslocado para o litoral sul do Brasil entre os anos 1000 e 1300. O Peabiru teria sido aberto nessa migração, cujo objetivo era a procura de um paraí­so, a Terra Sem Mal.
2 – Caminho dos Incas – Supõe a construção da trilha como uma iniciativa inca ou pré inca. Neste caso, o Peabiru seria uma via aberta para a prospecção de territórios do Atlântico, visando o comércio com as tribos selváticas do Paraguai, MS, PR, SP e SC.
Primeiro uma estrada de comércio. Depois quem sabe, uma estrada de penetração definitiva das poderosas civilizações andinas no Atlântico sul.
Como via de mão dupla, o Peabiru permitiu a chegada dos guaranis aos Andes. Mesmo sem relações duradouras, as idas e vindas de guaranis e incas pelo Caminho deixaram vestí­gios de uma certa influência cultural na astronomia (leitura e uso de manchas da Via Lactea), estatí­stica (semelhança do ainhé, cordão de cipó guarani com o quipu dos incas), música (flauta de pã), armamento (semelhança da macaná, borduna guarani com a maqana incaica), denominação de fauna e flora : sara (espiga, em guarani; milho em quêchua), cui (animal roedor, nos dois idiomas), jaguar (felino, nos dois idiomas), mandioca e ioca / iuca, suri (ema, nos dois idiomas).
3 – Caminho de São Tomé – Segundo essa versão, o Peabiru teria sido aberto por São Tomé, apóstolo de Cristo. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, a devoção suscitada pela descoberta deste Caminho de Tomé na América no século 16 foi tal, que quase desbancou o de Santiago de Compostela. “Pouco faltaria em verdade que não apenas na India, mas em todo o mundo colonial português, essa devoção tomasse um pouco o lugar que na metrópole e na Espanha em geral… “tivera o culto bélico de outro companheiro e discí­pulo de Jesus, cujo corpo se julgava sepultado em Compostela”.
A passagem de Tomé pelo Novo Mundo foi mencionada por í­ndios, padres, autoridades e colonos europeus no século 16. A versão corrente é que um homem branco, barbudo, teria chegado ao litoral brasileiro “andando sobre as águas”. Foi chamado de Sumé.
Em sua peregrinação, teria ido ao Paraguai, abrindo o Caminho. Ali foi visto e chamado de Pay Sumé. Saindo do Paraguai, a misteriosa figura teria continuado até os Andes. Os pré incas o chamaram de Kuniraya. Mais tarde, o personagem recebeu dos incas o nome de Viracocha. Após um perí­odo no Peru, ele teria ido embora, também “andando sobre as águas”.

O Caminho do Peabiru tem toda uma parte ligada a cultura indí­gena. Um aspecto interessante é que ele também pode ser relacionado com a astronomia indí­gena.
Oservando o mapa do Peabiru percebemos que ele inclui, na verdade, diversos caminhos. Vamos nos ater a um só, que foi percorrido pelo pioneiro Aleixo Garcia. Este se inicia em Florianópolis, no oceano Atlântico e vai até Potosi na Bolí­via, pegando depois as estradas dos Incas e indo terminar no oceano Pací­fico. Ou seja, é um caminho transcontinental pré-colombiano.
O Caminho do Aleixo – talvez o mais importante de todos – não é na direção norte-sul e nem leste-oeste, mas sim “inclinado”. Ele vai aproximadamente de sudeste para noroeste.
Ao notar essa inclinação a primeira pergunta que se coloca é a seguinte: por que os primeiros í­ndios escolheram essa direção ao abrir a trilha? E como eles se orientaram para percorrer esse caminho?
Ã?Ë? espantoso constatar que os Guarani de Florianópolis falaram para o Aleixo Garcia que conheciam Potosí­ nos Andes. Que sabiam com o ir e como voltar. Isso tudo a pé, em 1524, mais de 2000 kilômetros em linha reta – naturalmente seguiam os acidentes naturais, rios e tudo o mais – mas a direção inicial-final era sudeste-noroeste.
Ao olhar para o céu, em condições propí­cias, vemos a Via Lactea, que é chamada pelos Guarani de Caminho da Anta (Tapirapé), ou Morada dos Deuses.
Ã?Ë? natural supor que o caminho da Terra Sem Mal, para eles era aquele caminho que estáva lá em cima, no Céu. Que é o Caminho dos Deuses, dos espí­ritos, é a própria Via Lactea.
Não são só os nossos í­ndios que viam assim. Pesquisando na História notamos que egí­pcios, os gregos, os indianos, todos viam a Via Lactea como um caminho. Os antigos nos falavam que havia um tesouro no fim e outro no começo do arco-í­ris. E a gente vivia sonhando em em encontrar o começo e o fim dele. Fazendo uma comparação, os í­ndios brasileiros e também os peruanos, queriam saber onde começava ou terminava o arco-í­ris celeste, ou seja, a Via Lactea.
Seguindo a Via Lactea, por terra, viam que o fim do Caminho ia dar no mar, no oceano Atlântico. E a Terra Sem Mal ficava “ali”, ou “lᔝ, em algum lugar. Por isso é que os í­ndios foram í  direção do mar. Por isso é que na maioria dos mitos indí­genas, o profeta, o Sumé, vem do mar. Porque ele vem daquela ponta da Via Lactea í  qual o í­ndio não tem acesso.
Muito bem, pensa o í­ndio, mas e do lado contrário do caminho da Anta, o que existe? O í­ndio não sabe. Então ele vai procurando na terra, seguindo a Via Lactea. E acaba chegando no outro lado, que também não tem fim, chega num outro mar, o oceano Pací­fico.
Então a idéia básica é essa. O Caminho que nosso í­ndio percorreu é aquele da Via Lactea, quando está mais alta no céu. E que é também, aproximadamente o caminho que liga as posições do nascer-do-sol no verão com o pôr-do-sol no inverno. Ou, SUDESTE-NOROESTE.

Trecho da palestra do astrônomo Germano Bruno Afonso, no 1 Encontro Nacional dos Estudiosos do Caminho do Peabiru, em Pitanga / PR, em novembro de 2003.

Fonte: Cadernos da Ilha, edição número 2. Curso de Jornalismo da UFSC.
cadernosdailha@yahoo.com.br

catatau no organismo


cartaz da apresentação. Arte: Solda

“LEMINSKI – A JUSTA RAZÃO AQUI DELIRA”.
Teatro Guaí­ra, Auditório Glauco Flores de Sá Brito, Curitiba-PR.
23 de setembro de 2005 – Apresentação única.

Por Mathieu Bertrand Struck.
Fotos Gilson Camargo.

Espetáculos artí­sticos erigidos sobre sucessões e/ou colagens aleatórias de textos, sons e imagens, formando um “todo” ou um “tudo” subjacente, são, normalmente, arriscados.

Cai-se, com muita facilidade, na tentação do hermetismo fácil, exigindo-se do público que apreenda ou entenda relações de informação supostamente “inovadoras” e “modernas”, quando o que há é unicamente a repetição ad nauseam de velhos clichês e lugares-comum.

Hordas de consumidores vorazes para esse tipo de espetáculo (no mais das vezes, crí­ticos e estudantes famintos por “experiências reveladoras”, “momentos totêmicos” e epifanias de todo gênero) ajudam a sustentar a farsa. Coisa que, aliás, diz muito mais sobre o público do que sobre o espetáculo propriamente dito.

A colagem, que poderia ser um aliado poderosí­ssimo para a construção de novos códigos (teatrais, musicais, sonoros, plásticos e visuais) é, via de regra, substituí­da por simples narcisismo e exibicionismo. Casos extremos convertem a mensagem em mero zapatismo cultural, desprovido de qualquer conteúdo metafí­sico, simbólico ou cognitivo.

Um erro comum é basear tais textos unicamente em fatos do quotidiano ou da contemporaneidade, não havendo uma ancoragem do argumento – ainda que implí­cita ou subterrânea – no atemporal ou no eterno. Prova de que faz muito mal ao Brasil não possuir uma edição decente de “Os Últimos Dias da Humanidade”, de Karl Kraus (só para ficar num exemplo).

Cria-se um paradoxo: o espetáculo é mais virtuoso quanto menos compreensí­vel é – ou parece.

Curitiba, cidade dos aplausos fáceis e na qual qualquer espetáculo de meia-tijela encerra í  noite com a platéia de pé (“quem come um, pede bis”), não teria, a rigor, a mí­nima necessidade de aplaudir Leminski – a Justa Razão Aqui Delira. O espetáculo, realizado numa fria e chuvosa noite de quinta-feira, véspera da primavera curitibana de 2005, não foi feito para isso.

Não se está a tratar de uma montagem feita para meramente divertir a assembléia do Planeta dos Macacos, a ser chancelado e carimbado para consumo popular, mediante um coral de estalos frenéticos. Tampouco pode o espetáculo ser considerado uma Arca de Noé rediviva, com assentos limitados a um diminuto rebanho de “eleitos” ou de “predestinados” (outro erro comum).

É, sim, a lógica do acidental, do casual, do eventual e, mais do que tudo, do quântico que permeia a construção da obra. Culturalmente, não há predestinados. Estes podem ter sido avisados que o espetáculo foi cancelado (como, de fato, aconteceu com cerca de 30 potenciais pagantes) e voltarem para casa. Só os não-eleitos assistiram. Como é que fica?

Em outras palavras, a predestinação, em Leminski – a Justa Razão Aqui Delira, pode ser nada mais do que um conceito cultural, imagético. Na sociedade da informação, posso me fazer, a meu bel prazer e aleatoriamente, herdeiro de Atlântida, do Continente Perdido de Mü, do Hopi-Hari ou de Hi-Brasil. O que faz de nós nada além do que os predestinados de nossos próprios dramas individuais (não dos outros).

Não há tempo para que o espectador se lembre de bater palmas, de tanto que foi envolvido, ao longo de mais de duas horas de espetáculo, no manuseio permanente de códigos, linguagens e estruturas, em espí­rito de legí­tima confraria.


Helena de Jorge

A tecnologia e a linguagem – e o papel do homem no manuseio (hábil ou não) dessas centelhas abandonadas pelos deuses (paternalistas ou negligentes, pouco importa) – são os grandes componentes unificadores do patchwork de idéias e experiências que resultou em uma das montagens mais emblemáticas da história do teatro curitibano.

A Orquestra Eletroacústica Organismo, em Leminski – a Justa Razão Aqui Delira, entre muitos insights bem-aventurados, nos recorda permanentemente, que, antes de sermos homo sapiens, fomos homo faber.

Os personagens propostos em cena não querem ser mais do que vetores – instrumentos também, portanto – das diversas ferramentas fí­sicas e conceituais já envergadas pelo homem, ao longo de sua história simbólica.

E se há canetas, lousas, livros, réguas e instrumentos musicais –ainda imbatí­veis – há também espaço para novas Lanças de Wotan, como o miraculoso CTR-C + CTR-V e os Oráculos Virtuais do momento (Google, Yahoo, Altavista e tutti quanti) que não se incomodam em listar Homero junto com Homer Simpson.

Somos também lembrados que tais artifí­cios podem até ter redobrado a produção humana de natureza faber, mas podem ter aniquilado a de natureza habilis.

As ferramentas em desfile – sim, é um desfile repleto de alegorias – são também conceituais. Cálculo, geometria, métrica poética, abstração literária, epopéia antiga, sofismas jurí­dicos, linguagem de programação, mantras e rezas penitenciais mesclam-se de forma, por vezes, espasmódica, quando não tentam competir entre si, como as plantas por um lugar ao sol, abandonando seus hospedeiros momentâneos ao serem proferidas, declamadas ou demonstradas.


Jorge Brand

Em alguns momentos, a sobreposição de camadas e códigos chega a ensurdecer o ouvinte, lembrando-nos que, no mundo hodierno, embora haja profusão de meios de difusão de idéias, ninguém ouve nada porque todo mundo fala ao mesmo tempo.

O fenômeno se repete no campo visual. Cada personagem de Leminski – a Justa Razão Aqui Delira, está, a cada instante, fazendo alguma coisa ou envolvido em alguma atividade. Não há silêncios, não há pausas. As cenas paralelas são múltiplas e plúrimas.

Uma clara metáfora do mundo, pois se presto atenção em algo, posso muito bem não ver o que se passa exatamente ao lado. Se vejo longe, posso não estar vendo perto. O Google Earth diz muita coisa, mas não diz se a grama do vizinho é mais verde.

Cenicamente, os personagens estão sempre manuseando os utensí­lios fí­sicos e imagéticos que povoam o palco. Diz-nos Octávio Camargo (que nega ser o diretor da obra – os arqueólogos do futuro certamente elucidarão isso) que o processo de escolha dos objetos cenográficos foi, predominantemente, aleatório. Os próprios participantes escolheram-nos, em um bricabraque da Fundação Cultural de Curitiba.

Cada um desses objetos – de bolas de basquete a lamparinas, passando por um imenso espelho – foi visto como uma nota musical, uma partí­cula verbal, um signo visual.


Rodrigo Ferrarini e Claudete Pereira Jorge.

A montagem deriva, pois, de um casting party em que objetos animados e inanimados competem por um espaço no palco – e na memória do público. Lateralmente, o computador – meio termo entre o animado e o inanimado – exige também seu espaço em cena, a ponto de temperar toda a trama com sua presença constante.

Essa é a grande novidade. Sente-se, a todo o momento, que há um elemento não-humano no ambiente, exógeno, ainda mera ferramenta – por quanto tempo não se sabe – para geração e reprodução de vozes guturais ou cadeias dissonantes de som.

A presença do Organismo – sim, é dele que se está a falar – nos lembra permanentemente que nossos corpos se degeneram e fenecem e que, mesmo sem isso, os cérebros humanos acabam sendo devorados pelo Mal de Alzenheimer, enquanto as máquinas – ainda que feitas de elementos triviais como lata, areia e eletricidade – já flertam com o sempiterno.

Se há algo que bem caracteriza a ação teatral Leminski – a Justa Razão Aqui Delira, é a técnica discursiva bem engendrada de sobrepor finas e sucessivas camadas de discurso e código, aparentemente dissonantes ou conflituosas, mas habilmente rejuntadas com o meta-discurso da relação entre (i) o homem, (ii) seu conhecimento e (iii) a tecnologia. Dessa massa folhada, levada ao forno por 120 minutos, é que nasce o homo hiperlincus.

Por quanto tempo resistirá ele í  Assimilação?


Leo Bozo e Lucio de Araújo

A surreal experiência de Descartes em Pindorama – mote do Catatau leminskiano – é permanentemente invocada no espetáculo. No entanto, joga-se uma nova luz sobre tal alegoria: a de que, descambando ou não o cartesianismo dos trópicos em caos, desordem e desrazão, o homem brasileiro (seja lá o que for isso), mergulhado em ambientes virtuais de comunicação constante, deve gerar evidências sí­gnicas de sua passagem no teatro do mundo, sob pena de extinção – ou mesmo inexistência, por ausência de provas.

É agora ou nunca. Falemos agora, ou calemo-nos para sempre. E se não podemos ser cartesianos, tampouco podemos ser dionisí­acos o tempo todo, só porque abaixo da Linha do Equador continua sendo tudo permitido.

Leminski teria gostado do embate cênico travado entre o silencioso manequim de Renatus Cartesius e, na outra ponta do palco, o Organismo-Tamanduá, que, com seus circuitos integrados e sua tela azul (“old blue eyes”) não parou um só minuto de soltar onomatopéicos guinchos, silvos e guturais resmungos, exigindo de humanos permissivos – e pouco ciosos de seu próprio futuro – a sua quota na sociedade do espetáculo.

Cale-se, Cartesius, pois sou o subterrâneo do seu ser! Tema-me, pois sou a Cornucópia informacional! Venere-me, pois sou o Vaso Inesgotável! Meu nome é Terabyte e sou uma das vozes de Satã!

Todos os personagens humanos de Leminski – a Justa Razão Aqui Delira são, via de regra, leitores ou evocadores. Exceto um (interpretado por Lúcio de Araújo), representando figurativamente um professor de geometria. Mudo e calado do iní­cio ao fim da peça, traçando, com seu compasso, mandalas de giz branco nas paredes do Mini-Guaí­ra, o acadêmico abandona inopinadamente seu papel de leitor e, em dado momento, veste a persona do Mensageiro.


Lucio de Araújo

Em um par simbólico talvez acidental – Heisenberg poderia melhor explicar – o Mensageiro sai do palco e sobe as escadas do auditório, portando, em suas mãos, um legí­timo paralelepí­pedo curitibano.

Deposita-as aos pés de um dos percussionistas e entoadores de mantras que até então, limitava-se a hipnotizar o público. O Mensageiro apanha com cuidado o pé descalço do músico e o coloca sobre a Pedra, tal como aconteceu com um certo Simão, pescador que negou três vezes ter fisgado o peixe.

Mais para o final do espetáculo, o Mensageiro vai para o backstage e retorna com uma caixa de pizza (!) – comida pela metade. Não se sabe se estava no script ou era mero atendimento da fome (e se existe “obra aberta”, deve ser bem prático para comer pizza em cena), mas o fato é que os participantes se reuniram ritualisticamente ao redor da Pizza, devorando-a. Eucaristia com anchovas e pepperoni.

O par simbólico retratado merece reflexão. Pedra e Pizza, o sagrado e o casual, em onto-confrontação. No universo do P2P (PEDRA2PIZZA – PEER TO PEER), talvez não importe mais quem procede í  entrega, mas sim o conteúdo da entrega.

É por isso que o chapéu de Hermes estava em R. Cartesius, não no disforme e horrendo – sim, a estética ainda existe! – Organismo-Tamanduá, a desafiá-lo permanentemente com sua imortalidade (passí­vel de ser quebrada apenas pela pureza imberbe de querubins marteladores).


Ferrarini e o Público Curitibano


C. P. Jorge e Leo Bozo


Leo Bozo e detalhe de obra de Cris Mendes

Outros personagens de Leminski – a Justa Razão Aqui Delira passam boa parte do tempo em cena folheando livros a esmo e declamando textos tirados de suas entranhas, incitando a audiência a brincar com as kilo-métricas construções do Finnegans Wake e outros.


Rodrigo Ferrarini


Odacir Mazzarollo


Octávio Camargo

Digna de registro, para a historiografia teatral curitibana, foi o vigor interpretativo da tarimbadí­ssima Claudete Pereira Jorge, que, com suas declamações, encarnou com esmero o caráter deliciosamente insólito das brincadeiras e jogos semânticos de James Joyce (e também das limitações inerentes de qualquer tradução do texto original, por melhor que fosse).


Claudete Pereira Jorge lava o palco do Mini Guaí­ra

Em outros momentos da montagem, o frenesi das declamações evoca, no campo da tecnologia, os downloads de pacotes de informação, vindos sabe-se-lá-onde e sabe-se-lá-de-quando.

O homem de hoje não pensa mais, está apenas í  espera de pacotes de dados, que reenvia a desconhecidos, também í  espera. Todos como pequenas e laboriosas formigas: empacotando, armazenando e transportando a informação. Ser cigarra e morrer de frio no inverno ainda é mais divertido.

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Ferrarini e Helena de Jorge

Um dos participantes da peça relata que, em todas as camadas de linguagem, desde a iluminação até o storyboard, procurou-se escrever as partituras. Cada objeto aleatório escolhido para compor a trama, teve sua participação escrita e definida. Alunos do Professor Richard Wagner, evidentemente, brincando de Arte Total. Prato cheio para os arqueólogos e sociólogos do amanhã. Os de hoje encontram pinturas rupestres e túmulos. Os do amanhã terão óperas-rock, capas do super-homem e montanhas de hard-disk.

A codificação total (ou idealmente total) do espetáculo, em partituras para cada uma das linguagens empregadas, é talvez a grande realização de Leminski – A justa razão aqui delira. Como os cadáveres fatiados a laser e petrificados, para estudo em universidades européias e exibições í  la P.T. Barnum, todas as camadas de linguagem foram objeto de algum tipo de encriptação.

Outro par simbólico digno de nota: o público recebeu bolachas (sortidas) para comer, mas quem estava em palco também comeu a pizza do Mensageiro. Mesmo sem querer, todos os participantes comungaram sob as estrelas, ao redor da fogueira, enquanto os demais animais, na Sombra, os rodeavam ameaçadoramente.

Como que a provar a alegoria, ao lado, no Guairão, acontecia um show dos sertanejos Zezé di Camargo & Luciano. Partí­culas de som mela-cueca adentravam baixinho, sabe lá por onde, talvez pelas galerias de aeração comum. Um integrante não-identificado da Orquestra relata que, pouco antes do espetáculo, o indigitado ââ?¬Ë?Zezéââ?¬â?¢ esteve no ensaio geral. Curioso.

Em Leminski”¦, a Orquestra Eletroacústica Organismo não brinca despretensiosa ou inconsequentemente com os mitos. Antes os cataloga. Expõe-os – í  glória, ao julgamento, í  execração, ao ostracismo, ao nojo, í  adoração e ao apedrejamento moral e fí­sico – numa ampla vitrine de heróis e anti-heróis, animados ou inanimados.

Sem exageros, a véspera da primavera curitibana foi marcada por uma Babel cognitiva, na qual odisséias e epopéias, poesia e prosa, teatro e análise, compêndios e catataus, vibrações indianas, seqüências cromáticas e poemas curitibanos polacos foram cozinhados em fogo lento – e panela de ferro – num legí­timo smorgasborg informacional.


Rodrigo Ferrarini, Lucio de Araújo (com balde na cabeça), Glerm Soares, Claudete Pereira Jorge e o Público Curitibano (manequim)

Em suma, o fim do Inverno, mas mantendo o Sol-da-meia-noite.

Um espelho no palco – terá sido aleatória a escolha desse especí­fico item? – dizia í  platéia que ela, sim estava mais do que tudo retratada naquela montagem. É claro que é clichê, mas o Outro somos nós mesmos.

Topicamente, Leminski – A justa razão aqui delira evoca as seguintes partí­culas: polifonia, anarquia, sentidos, improvisação, mistura de linguagens, artificialidade, sobreposição de camadas, fluxo de códigos, transhumanização.

Sabendo que o Golem já tinha sido criado e que era preciso ser original, a Orquestra optou por exumá-lo e dissecá-lo. Suas entranhas transistorizadas e sua alma sí­lica são expostas a céu aberto, como feridas. Queremos ininterruptamente abrir essas caixas-pretas, mostrar a nós mesmos que elas não são feitas de carne ou de sangue (e nem de casca ou seiva), que estão por isso fora do plano divino ou do jogo de dados da negligência demiúrgica.

Um dos personagens, interpretado por Guilherme Soares, passa boa parte da trama ensandecido í  frente de uma lousa, a escrever e apagar sucessivas fórmulas e equações. É um professor. Não parece encontrar o que quer. Também não aparenta saber – ou dizer – o que quer (o que é a mesma coisa). Seu comportamento é febril e confuso. O desespero o toma. A solução não é encontrada. As equações estão erradas. São apagadas e reescritas. Trocadas por outras. Ora são fractais, ora seqüências binárias, ora jogos de palavra. Palavras cruzadas. O caos informacional o envolve. Folheia compêndios e cânones a esmo, não encontra nada. Consome-o, paranoicamente, uma suposta unidade subjacente do discurso, que “ninguém” – a não ser ele – consegue perceber. O professor vive a utopia da descoberta da Fórmula Secreta, do Mapa do Tesouro, do Número de Ouro e da Proporção Ideal.


Glerm Soares

Enquanto o Professor descamba no caos e na desordem, o Organismo-Tamanduá tudo vê, não chora, não ri, não se manifesta. Assiste impassí­vel í  ruí­na cerebral de um cartesiano nos trópicos. Continua com sua polifonia artificial, como se falasse sozinho. Frieza absoluta. Nossos potenciais sucessores poderiam ao menos dizer algumas palavras finais.

A Grande Guerra do Futuro = Dataflow X Dataflower.

Se as máquinas já pudessem ver – e entender que vêem – notariam que estamos, nós mesmos, com seu auxí­lio, nos devassando e expondo – com câmeras, filmadoras, gravadores, transmissores, copiadores e multiplicadores – mostrando a todos e a tudo o que pode bem ser a metástase silenciosa de nossa decrepitude civilizacional. Cria-se uma inversão: hoje, o que vale mesmo não é o que é filmado e fotografado, mas aquilo que não é.

Como não lembrar das práticas médicas mais modernas, em que, antes de começarem a retalhar o paciente, os médicos compõem o storyboard da cirurgia com sondas dotadas de olhos digitais? (oito olhos, como os das aranhas). É exagero dizer que Rembrandt previra isso, simbolicamente, em a Lição de Anatomia?

Como não lembrar que as pessoas estão aceitando cada vez mais serem filmadas, individualizadas como gotas no grande oceano, nominadas e classificadas no grande catálogo telemático dos vivos, dos mortos e dos não-nascidos? Breve em WIKIPEDIA: Ermitões e Náufragos dos Cinco Continentes: Phone Book.

O Organismo-Tamanduá de Leminski – A justa razão aqui delira evoca, efetivamente, o Mito do Golem. Disforme, em pleno processo mutagênico, guinchando e cortando as falas de seus colegas de palco com suas ondas bufferizadas.

É de se pensar se o sopro vital para o teatro lhe foi insuflado quando um cí­rculo de giz, traçado com compasso no chão do teatro foi abandonado pelo seu desenhista e assumido por uma das personagens femininas (o bicho mulher, sempre na raiz simbólica da nossa ruí­na) que, brincando com suas pequenas pedras, usava o cí­rculo como esfera de contenção para seus encantamentos arcanos. Visualmente, tinha-se a impressão de que se tratava de leitura em ossos de animais.

Bookmark para historiadores: 22-09-2005 marca a entrada do primeiro pedido formal (se houve outros, não foram registrados – não estão no mundo) de um ente não-humano para fazer arte em Curitiba. Os cérebros eletrônicos demandam sua quota da sociedade do espetáculo. Querem seus 1,44 MB de fama.

Silêncio! Organismo (tamanduá, dodô, fênix, velocino, unicórnio, sagitário, hidra, dragão, leviatã) quer falar. Resta saber se o Logaritmo Organizado traz mesmo o logos.

E a julgar pela cena apoteótica do final de Leminski – A justa razão aqui delira, a máquina quer ter a última palavra. Os atores estavam todos quietos. A tela azul permaneceu acesa, até o fim dos tempos.

Vigiai e temei.

NOTAS: A Embaixada Polaca a tudo assistiu, deliciada. Isso sim é Cápsula do Tempo.

Soldações

só loucos
são capazes de tempestade
em copo dôágua
só loucos
fazem baladas
pra outros loucos
só loucos enlouquecem
loucamente
só loucos
mas aos poucos
que ninguém é louco
de ficar louco
sem levar
nada em troco

Solda. Revista Idéias #20.