A crise do trabalho abstrato*

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John Holloway**

“este ponto (o duplo caráter do trabalho representado pelas mercadorias) é o eixo em torno do qual gira a compreensão da economia polí­tica” (Marx, O capital I, p. 9)

1.
O duplo caráter do trabalho é a chave para entender o desenvolvimento atual da luta de classes.

2.
a) Nos Manuscritos de 1844, o jovem Marx faz uma distinção entre o trabalho alienado e a atividade vital consciente. No capitalismo, a atividade vital consciente, o que nos distingue dos animais, existe na forma de trabalho alienado.

b) Em O Capital, Marx distingue entre o trabalho abstrato e o trabalho útil (ou concreto). O trabalho útil produz valores de uso e existe em qualquer sociedade, mas no capitalismo existe na forma de trabalho abstrato, trabalho abstraí­do de suas especificidades, trabalho que produz valor. A distinção entre trabalho abstrato e trabalho útil é essencialmente a mesma que a distinção prévia entre trabalho alienado e atividade vital consciente. O trabalho útil é atividade ou fazer humano criativo-produtivo, seja qual for a sociedade onde se desenvolve, e o trabalho abstrato é um trabalho não auto-determinante no qual toda distinção qualitativa se reduz a quantidade. Para enfatizar a distinção (e porque a constituição de “trabalho” como algo separado do fluxo geral do fazer é resultado de sua abstração) falaremos de “fazer útil” em lugar de “trabalho útil”.

c) A dicotomia entre trabalho abstrato e fazer útil é um tema central nââ?¬â?¢O capital. O duplo caráter do trabalho cria o duplo caráter da mercadoria como valor de uso e valor; estrutura a discussão do processo de trabalho (como processo de trabalho e processo de produzir mais-valia) e do processo coletivo de trabalho (como cooperação por um lado e divisão do trabalho, manufatura, maquinaria e indústria moderna por outro). O trabalho abstrato se desenvolve como trabalho assalariado que produz valor e capital. O fazer útil se desdobra na categoria da “força produtiva do trabalho social” (O capital I, p. 265) ou, mais concisamente, as “forças de produção”.

3.
A relação entre o trabalho abstrato e o fazer útil é uma relação antagônica. O fazer útil existe no-contra-e-mais-além do trabalho abstrato. Todos estamos conscientes do modo pelo qual o fazer útil existe no trabalho abstrato, do modo pelo qual nossa atividade diária está subordinada í s exigências do trabalho abstrato (ao processo de fazer dinheiro, em outras palavras). Experimentamos isso também como processo antagônico: como antagonismo entre nosso impulso para a autodeterminação de nosso fazer (fazendo o que queremos fazer) e a necessidade de fazer o que temos que fazer para ganhar dinheiro. A existência do fazer contra o trabalho abstrato se experimenta como frustração. O fazer útil existe também mais além de sua forma como trabalho abstrato naqueles momentos ou espaços nos quais logramos, individual ou coletivamente, fazer o que nós consideramos necessário ou desejável. Ainda que o trabalho abstrato subordine e contenha o fazer útil, nunca logra subsumi-lo totalmente. A abstração do fazer para convertê-lo em trabalho não é algo que se acaba nos alvores do capitalismo, mas um processo constantemente renovado.

4.
Portanto, há dois ní­veis de antagonismo estrutural no capitalismo. Primeiro está o antagonismo que Marx chama de “o eixo em torno ao qual gira a compreensão da economia polí­tica”: o antagonismo entre o fazer útil e o trabalho abstrato. Mas também existe um segundo antagonismo. O trabalho abstrato produz não somente valor, mas mais-valia, e esta mais-valia se acumula como capital. A acumulação se realiza através da exploração constante do trabalho abstrato (ou assalariado), e assim se pode falar de um segundo antagonismo, o antagonismo entre capital e trabalho assalariado. Este segundo antagonismo depende da conversão prévia do fazer útil em trabalho abstrato.

Existem assim dois ní­veis de luta de classes. Primeiro a luta do fazer útil contra a sua própria abstração, quer dizer, contra o trabalho abstrato: esta é uma luta contra o trabalho (e portanto contra o capital, já que é o trabalho que cria o capital). Em seguida existe a luta do trabalho abstrato contra o capital: esta é a luta do trabalho. Esta última é a luta do movimento operário; a primeira é a luta do que í s vezes se chama o outro movimento operário, mas não se restringe em nenhum sentido ao lugar de trabalho: a luta contra o trabalho é a luta contra a constituição do trabalho como atividade separada do fluxo geral do fazer.

5.
Os dois tipos de luta são lutas contra o capital, mas têm conseqüências muito distintas. Ao menos até pouco tempo atrás, a luta contra o capital foi dominada pelo trabalho abstrato. Isto significou uma luta marcada por formas burocráticas de organização e idéias fetichizadas.

a) A organização do trabalho abstrato está centrada no sindicato que luta pelos interesses do trabalho assalariado. A luta sindical é entendida normalmente como luta econômica que necessita ser complementada pela luta polí­tica, organizada tipicamente na forma de partidos polí­ticos orientados em direção ao Estado. As concepções “reformistas” e “revolucionárias” do movimento operário compartilham o mesmo enfoque. A organização do trabalho abstrato é tipicamente hierárquica, e isto tende a reproduzir-se dentro das organizações do movimento operário.

b) A abstração do trabalho é a fonte do que Marx chama de “fetichismo da mercadoria”, um processo de separação entre o que criamos e o processo de criação. O criado, ao invés de entender-se como parte do processo de criação, é entendido como uma série de coisas q eu logo dominam nosso fazer e nosso pensar. As relações sociais (relações entre pessoas) se fetichizam ou se reificam. A centralidade de nosso fazer é substituí­da por nosso fazer e pensar por “coisas” (relações sociais coisificadas) como dinheiro, Estado, capital, universidade, etc. O movimento operário (como movimento do trabalho abstrato) aceita normalmente estas coisas como dadas. Assim, por exemplo, o movimento operário tende a aceitar a auto-apresentação do Estado como organizador da sociedade (ao invés de vê-lo como momento da abstração do trabalho). A abstração do trabalho conduz a um conceito estadocêntrico da mudança social. O movimento do trabalho abstrato fica preso em uma prisão conceitual e organizativa que efetivamente sufoca qualquer aspiração revolucionária.

c) O marxismo ortodoxo é a teoria do movimento operário baseado no trabalho abstrato. Por isso está quase totalmente cego para a questão do fetichismo e para o duplo caráter do trabalho (apesar do fato de que Marx insistiu que este ponto é o eixo em torno do qual gira a compreensão da economia polí­tica).

6.
O movimento do fazer útil contra o trabalho abstrato sempre existiu como corrente subterrânea e subversiva no-contra-e-mais-além do movimento operário. Já que o fazer útil é simplesmente a riqueza enorme da criatividade humana, o movimento tende a ser algo caótico e fragmentado, um movimento de movimentos lutando por um mundo de muitos mundos. A partir desta perspectiva é fácil cair na idéia de que estas lutas não têm conexão, que são as lutas de tantas identidades distintas, que se trata de uma luta de e pelas diferenças. Entretanto, não se trata disso. Ainda que o fazer útil-criativo tenha um potencial infinitamente rico, existe sempre no-contra-e-mais-além de um inimigo comum, a abstração do fazer em trabalho. Por isto é importante pensar em contradição, e não simplesmente em diferença. É a luta da criatividade humana (nosso poder-fazer, a “força produtiva do trabalho social”) contra a sua própria abstração, contra sua redução í  cinzenta produção de valor-dinheiro-capital. O marxismo heterodoxo e a teoria crí­tica têm como eixo central a crí­tica do domí­nio do trabalho abstrato e dos conceitos que derivam deste domí­nio. Já que o movimento do fazer útil é o impulso para a criatividade socialmente autodeterminante, suas formas de organização são tipicamente anti-verticais e orientadas para a participação ativa de todos. Esta é a tradição conselhista ou assembleí­sta que sempre se opôs í  tradição estadocêntrica e partidocêntrica dentro do movimento anticapitalista.

7.
O trabalho abstrato está em crise. Nós (o fazer útil-criativo) somos esta crise.

a) O fazer útil é a crise permanente do trabalho abstrato. A existência do capital é uma luta constante para conter o fazer dentro do trabalho abstrato, mas o fazer sempre transborda.

b) Existe agora uma crise do trabalho abstrato em um sentido agudo.

A crise está vinculada com a crise do fordismo, uma forma especialmente intensa da abstração do trabalho. A crise do fordismo é o fracasso da abstração do faze em trabalho.

As manifestações da crise são evidentes: o declive do movimento sindical em todo o mundo; o enfraquecimento dos partidos social-democratas; o colapso da União Soviética e dos outros “paí­ses comunistas” e a integração da China no capitalismo mundial; a derrota dos movimentos de liberação nacional na América Latina e na ífrica; a crise do marxismo não somente dentro das universidades, mas como teoria da luta.

Tudo isto se entende muitas vezes como uma derrota histórica da classe trabalhadora. Mas talvez se devesse ver mais como uma derrota para o movimento operário, para o movimento baseado no trabalho abstrato, uma derrota para a luta do trabalho contra o capital e possivelmente uma abertura para a luta do fazer contra o trabalho. Se é assim, então não é uma derrota para a luta de classes, mas um deslocamento para um ní­vel mais profundo da luta de classes. A luta do trabalho está sendo substituí­da pela luta contra-e-mais-além do trabalho.

A crise do trabalho abstrato pode ser vista em termos do marxismo clássico como a revolta das forças de produção contra as relações de produção. Mas devem-se entender as forças de produção não como coisas, como tecnologia, mas como a “força produtiva do trabalho social”, como nosso poder-fazer social. E o modo pelo qual o nosso poder-fazer está rompendo “seu invólucro capitalista” (O capital I, p. 648) não é através da criação de unidades de produção cada vez maiores, mas através de milhões de fendas, espaços nos quais a gente está dizendo que não vão permitir que suas capacidades criativas se encerrem dentro do capital, mas que vão fazer o que a eles lhes parece necessário ou desejável.

c) A crise é uma intensificação da luta. A luta do capital para re-impor a abstração do trabalho pode ser entendida como neoliberalismo, pós-fordismo, pós-modernismo, mas a crise segue aberta. A luta contra o capital se debilita se seguimos pensando em termos das velhas categorias derivadas da luta do trabalho abstrato. A única forma de entender a luta anticapitalista agora é como a luta do fazer contra o trabalho.

8.
Perguntando caminhamos.

Referências

Marx, Carlos (1987), El Capital, Tomo I, Fondo de Cultura Económica, México D.F.

* Texto inédito preparatório para o III Colóquio Internacional de Teoria Crí­tica: A Crise do Trabalho Abstrato, Buenos Aires, Novembro/2007: www.herramienta.com.ar.

** Profesor-investigador, Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades “Alfonso Vélez Pliego”, Benemérita Universidad Autónoma de Puebla.

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