Diabolus in Musica

J.C. –
O diabo é um idiota, Sr. Flusser?
V.F. –
Há uma faceta idiótica no diabo. Desde que a palavra seja tomada no seu sentido grego. A idiotice é a vida, em particular na economia. Um dos deveres do diabo é seduzir-nos para a integração na famí­lia e no emprego. Além disso, o paraí­so da satisfação que nos é prometido pelos diversos messianismos psicossomáticos, psicanalí­ticos e econômicos é uma das metas do diabo enquanto idiota.
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J.C. –
Se o diabo implica Deus, este é também um idiota?
V.F. –
Se o termo Deus pode ter significado, este seria meramente negativo, a saber, “não-diabo”. Desde que nessas perguntas a idiotice do diabo foi salientada, Deus poderia ser concebido como a negação da idiotice, portanto, como o lugar da alienação, da famí­lia e da economia; portanto, da natureza. Resumindo, o idiótico no diabo seria sua sedução para a natureza e Deus seria a sedução para fora da natureza.

J.C. –
Explique-se melhor.
V.F. –
Poderia dizer que no homem há duas tendências: aquela que faz o homem integrar-se na natureza e aquela que o propele para além dela. A tendência integralista é aquela que chamei de diabólica na sua primeira pergunta. Mas seria simplificar demais querer, por isso, identificar a tendência alienadora com a divina. O diabo não é apenas idiota. Ele não seduz também para uma forma de alienação, mas diversas formas.

J.C. –
Isso tudo é muito bonito, mas me parece estudado demais. A alienação não é também uma forma de engajamento?
V.F. –
Sem dúvida. Os termos alienação e engajamento são relativos. Se de fato há duas realidades no homem, uma natural e outra valorativa, toda vez que o homem se engaja na natureza para valorizá-la, aliena-se dos valores mesmos. E toda vez que se engaja na contemplação dos valores, na pura teoria, aliena-se da dimensão natural que o caracteriza. Em outras palavras, a ambivalência humana (a sua liberdade de seguir o diabo ou Deus) reside injustamente no fato de que em toda escolha é simultaneamente um aceitar e um recusar de algo meu.

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J.C. –
Então para a juventude moderna, os termos alienação e engajamento significam a mesma coisa? Isto é, tanto faz estudar filosofia como defender o flagelado nordestino?
V.F. –
Significam a mesma coisa no sentido de serem fugas parciais, embora em dois sentidos diferentes. Se me decido a engajar-me em prol do flagelado fujo de uma realidade em mim que me propele para a filosofia. E se me decido para a filosofia, fujo da realidade do flagelado que afinal de contas também é minha. Naturalmente posso encobrir este dilema trágico com bonitas palavras, dizendo que sacrifico a minha tendência filosófica no altar do flagelado, ou que sacrifico o flagelado no altar da filosofia. Mas deve ser claro que em ambos os casos trata-se de má-fé. É por isso que eu disse que o diabo também funciona como sedutor para a teoria. E o diabo dispõe de mais um truque neste caso; pode insuflar-me que, ao empenhar-me no flagelado, também de alguma forma filosofo. E que ao filosofar, também de alguma forma ajudo o flagelado. Como vê, a situação é extremamente complexa e confusa, que é aliás o significado da palavra diabo.

J.C. –
Concordo que seja confusa, mas não a ponto de imaginar que Heidegger possa fazer algo pelos nordestinos. Isso me parece de extremo cinismo.
V.F. –
Pois é, concordo que é cí­nico, e que a atitude honesta é admitir que quando me decido para o engajamento ao nordestino perdi uma dimensão da minha existência, e a perdi definitivamente, já que todo o instante é irrevogável; e, também, quando me decido para a filosofia devo por honestidade admitir que traí­ a minha capacidade de engajar-me no nordestino. É nesta honestidade que se revela a agonia da existência humana.

J.C. –
Fala-se demasiadamente em sexo. O diabo tem algo a ver com isso? Ele se encontra nas ante-salas do amor e incita ao pecado? Veja o sr. que as revistas e publicações modernas incluem sistematicamente fotografias e falsos estudos de sexologia com o intuito de espicaçar a libido do leitor. Seria o diabo pecador?
V.F. –
Gostaria de enquadrar este problema também no contexto do desenvolvimento. O que impressiona um viajante brasileiro nos EUA. é a circunstância de ter sido o sexo aparentemente abolido pelo diabo em prol de pecados mais refinados. As revistas que você menciona estão sendo vendidas em massa na rua 42, o que provoca apenas bocejos. No seu desenvolvimento, o diabo superou o sexo e a juventude americana usa portanto o sexo como meio para alcançar popularidade, como aqui ainda utiliza-se a popularidade como meio para alcançar o sexo. Comparada com a situação americana a sexualidade da juventude brasileira, longe de ser pecaminosa, parece pia.

J.C. –
E o adágio “faça amor e não a guerra” é um convite ao amor ou uma distração da guerra?
V.F. –
O adágio comprova exatemente o que acabo de dizer. No contexto desenvolvido o ato sexual, se ainda for conseguido, é um sintoma de simplicidade cristã e voltado para a sanidade ingênua. Com efeito, o ato sexual neste contexto é algo semelhante í  sentença do Cristo: tornai-vos como crianças. Compare o ato sexual, que afinal é um ato natural a dois, com as cenas psicodélicas em [Green Village].

J.C. –
Os “hippies” são, ao que parece, os últimos cristãos sobre a Terra, afinal pregam descaradamente o “amai-vos uns aos outros”. O que fazem eles em [Green Village]?
V.F. –
Justamente, o problema é o de distinguir Deus do diabo. Se os hippies te parecem ser cristãos é que estams perdendo a noção da distinção entre o bem e o mal. Finalmente Nietszche alcançou-nos.

J.C. –
E daí­?
V.F. –
Quando Nietszche falou que estamos no além do bem e do mal ele estava apenas articulando o desespero individual e profético. Agora esse desespero da indiferença alcançou-nos com camadas amplas.

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J.C. –
Camadas amplas brasileiras? Veja bem, sr. Flusser, aqui e agora esse Nietszche como pode ser aplicado?
V.F. –
Na nossa situação de intelectuais paulistanos estamos literalmente flutuando sobre um abismo. Se enquanto intelectuais participamos da problemática da nossa época que é a problemática do super-desenvolvimento, enquanto paulistas participamos da problemática do sub-desenvolvimento. De maneira que o diabo nos agarra de ambos os lados, na forma nietszcheniana da indiferença e na forma tradicional da impotência ante problemas fora do nosso alcance. Estas duas garras se superam dialeticamente da seguinte forma: recusamo-nos de agir já que nenhuma ação adianta e já que toda ação é indiferente. Ou agimos a despeito da nossa plena consciência da inocuidade da nossa ação e da aleatoriedade da nossa escolha. No entanto não quero negar que talvez haja uma brecha nas garras do diabo. A nossa tarefa é talvez encontrá-la.

J.C. –
É isso que senhor tem pretendido ao longo de sua vida?
V.F. –
Tenho caminhado em duas direções diferentes. Na primeira etapa procurei encontrar-me negativamente, isto é, por redução sistemática de todas as falsidades que deturpam a visão da situação na qual nos encontramos. Sem ter alcançado essa meta talvez movido por impaciência, iniciei uma segunda etapa, na qual procuro, na medida das minhas forças extremamente limitadas, influir na situação imediata no sentido de um saneamento conta essas falsidades. Em outras palavras, publico e ensino.

J.C. –
O sr. vem sido acusado sistematicamente de ótimo poeta. Agora vejo que seus acusadores têm razão.
V.F. –
Se você levar a pergunta a um campo pessoal, devo admitir que me engajei em filosofia e que portanto resisti ao diabo idiótico para talvez cair nas malhas de um diabo estetizante. Com efeito, a filosofia e a teologia são para mim indistintas, já que ambas propõem o terreno do até agora não pensado, e o propõem no clima da beleza. Não me iludo; sei que a minha decisão em prol da teoria é uma decisão que abre mão da minha ação imediata no campo daquilo que é geralmente chamado de subdesenvolvimento. Como desculpa, que talvez me foi insuflada pelo diabo, só posso recorrer ao seguinte: talvez a minha incompetência seja um pouco menos desesperadamente limitada no campo da teoria, do que na ação imediata.

J.C. –
O sr. falou em subdesenvolvimento. Se somos subdesenvolvidos, como o diabo se comporta entre nós? Ele o é igualmente? A figura de um diabo subdesenvolvido me parece extremamente melancólica.
V.F. –
Pelo contrário, no subdesenvolvimento o diabo tem muito mais seiva, seduz com armas tão ingênuas como o são o sexo e o dinheiro. E castiga com pragas tão palpáveis como o são a doença e a fome. Compare isso com o diabo desenvolvido.

J.C. –
Assim nos EUA o diabo morreu?
V.F. –
Quem morreu obviamente é Deus, ou como dizem os bottons americanos, vive mas não quer ser envolvido. O diabo nos EUA seduz por pseudo-comunicações e pseudo-sensações e castiga pelo tédio e pela falta de meta, mas não se iluda com a “cocacolonização” do Brasil, também, há infiltração deste tipo adiantado no nosso meio.

J.C. –
O senhor falou em comunicação que já me parece uma palavra gastí­ssima. Afinal, ela significa verdadeiramente algo?
V.F. –
Você tem razão, já ouvi que os que não podem comunicar poderiam calar a boca. Quando falei em pseudo-comunicação referi-me justamente í quela massa de mensagens sem informação que amalgama as solidões individuais em solidões coletivas. Não resta dúvida que exista comunicação autêntica. Não quero recorrer ao exemplo do amor, já que esse nosso diálogo presente prova ser ela possí­vel. Aventuro a tese que onde há autêntica comunicação, isto é, onde dois seres humanos se abrem mutuamente o diabo é derrotado. Talvez por isso mesmo a comunicação autêntica é tão rara. Por exemplo, será que esta entrevista comunicará com alguém entre os leitores?

J.C. –
É outro lugar comum, sr. Flusser, dizer que a incomunicabilidade destroi o amor. Talvez os seres não se comuniquem simplesmente porque não há nada para se comunicar. O diálogo já foi há muito interrompido, talvez por se ter alhures realizado. Agora há o silêncio, o ensimesmamento de que falava o cordial Ortega.
V.F. –
Você está tocando num ponto crucial da problemática da felicidade. A nossa tradição imagina a felicidade como um lugar de eterna contemplação e também de diálogo eterno. Compare Sócrates com o cristianismo. Mas há uma óbvia contradição nessas duas imagens. Onde há contemplação não pode haver diálogo porque todas as informações possí­veis já foram trocadas. Nesse sentido a felicidade é tédio imenso e não pode haver diálogo, onde há diálogo não pode haver contemplação porque o diálogo é um processo, portanto algo imperfeito. Em suma, a felicidade é inimaginável.

J.C. –
Assim, o céu é um lugar miseravelmente silencioso e entendiante?
V.F. –
Já disse que não podemos sequer imaginá-lo, mas certamente um dos seus aspectos está sendo realizado na terra, a saber nos subúrbios novaiorquinos e outro aspecto nos parques de cultura e diversão moscovita.

J.C. –
No seu livro “A história do diabo” o senhor se referiu ao Brasil como sendo um território periférico do Ocidente, em cuja sociedade se distinguiam dois traços fundamentais: a tristeza e a preguiça, cuja superação seria a meta do pensamento brasileiro. Ainda endossa essas palavras?
V.F. –
Permita um esclarecimento: tristeza e preguiça no trabalho mencionado na pergunta são termos emprestados í  terminologia teológica da Igreja e são usados ironicamente. Traduzidos para uma linguagem mais comum seriam aproximadamente ideologia alienante e ensimesmamento mistificante. Subscrevo ainda a afirmativa anterior que superar tais perigos é, ou deve ser, a meta do pensamento dos que habitam o Brasil, como aliás do pensamento tout court. Admito que a grandiloqüência alienada e alienante é maior no Brasil do que, por exemplo, na França e neste sentido admito ser o Brasil território periférico do Ocidente. Mas não admito tratar-se de juí­zo valorativo. Trata-se simplesmente da constatação que o Brasil enfrenta os acontecimentos atuais de posição diferente da ocupada pelos paí­ses ditos desenvolvidos, embora os eventos enfrentados sejam os mesmos: a lenta decadência dos valores ditos ocidentais e sua substituição por outros ainda mal definidos.

J.C. –
Seu livro “A história do diabo” me parece ser uma longa e penosa meditação sobre a morte. O senhor pretendeu forçar o leitor a pensar na morte, principalmente, é claro, o leitor brasileiro? Se o fez, por que o fez?
V.F. –
A elaboração daquele livro fez parte da minha primeira etapa. Com efeito, a conversa fiada que encobre a morte me parece ser a máxima falsidade a ser destruí­da. Se publiquei o livro, foi depois de muitas dúvidas, hesitações e devo dizer que felizmente o livro teve uma repercussão pequena. Exije não apenas uma ginástica mental por parte do leitor, mas também uma prontidão de brincar comigo que poucos terão me concedido. Mas as minhas publicações posteriores já são deliberadas, fazem parte da segunda etapa.

J.C. –
Isso quer dizer que o diabo riu por último?
V.F. –
Não superei a problemática do diabo, apenas decidi-me contra a loucura. Se tivesse continuado no mesmo caminho teria perdido o controle crí­tico dos meus pensamentos, portanto optei pela sanidade e contra a radicalidade de pesquisa. Outra demonstração do fato de que toda escolha prefere uma alternativa em detrimento í  outra.