“Se um homem que tivesse a habilidade de transformar-se em muitas pessoas e imitar todas as coisas chegasse a nossa Cidade e quisesse fazer uma performance dos seus poemas (…) diríamos a ele que não existe este tipo de homem em nossa Cidade e nem sequer é permitido que haja. Depois de derramar mirra em sua cabeça e coroá-lo com louros, mandá-lo-íamos para outra Cidade.”
Sócrates – A República
(Utopia Aplicada – glerm soares)
Entrevista de glerm soares p/ Estrela Leminski, para um Doutorado em etnologia da música curitibana. Algumas canções e coagulações pontuando o diletante tateando.
Onde você nasceu?
Curitiba-PR Brasil. América.
Você é descendente de europeus? Quais? Sabe a sua história?
Também. No lado materno tenho mais afirmada a ascendência européia pois vieram de colônias alemãs, minha mãe foi da primeira geração a casar fora da colônia. Originalmente são da região gaúcha de Ijuí, Cruz Alta, Santa Rosa, Horizontina, Santiago, Tupanciretã (Oeste do Rio Grande do Sul). Curiosamente a família do meu pai também é da mesma região, porém na família dele ja tem um orgulho mestiço anterior, diz-se que são descendentes de Bugres, o que não diz exatamente uma etnia e sim é um tipo de apelido da raíz índigena por ali (bastante próxima dos Guarani, mas devem haver outras raízes perdidas nos povos das missões). Recentemente meu pai me disse que sua avó casada com o avô bugre era italiana, disse até o nome e sobrenome dela, mas acho que hoje já estão distantes estes 8 ou 16 sobrenomes…
(Dinossauro de Proveta – glerm soares)
O que é a música Curitibana?
Realmente não sei. Música feita em Curitiba ou música feita por curitibanos? Música feita por descendentes de curitibanos? Uma música que só exista aqui e tenha a cara daqui? É uma cidade bastante provinciana até hoje (pelo bem e pelo mal), que não vive de um ethos cultural próprio e sim de um suposto cosmopolitismo (um cosmopolitismo afetadamente provinciano), o que implica ser uma cidade de consumidores mais do que produtores. Certamente temos vários avatares para afirmar e louvar, que ainda habitam aqui ou até mesmo constroem um imaginário das ruas e mitos locais, porém acho que tendem a fechar-se nelas mesmas quando ficam nessa pequenez de “cena local”. Qual o raio dessa “cena”? Região metropolitana? Ecos em São Paulo e pontuais festivais de gênero em capitais? Muita gente boa com certeza, mas hoje acho bem problemático um músico daqui não extravazar para outros sintomas metropolitanos. A internet acabou com as fronteiras, vivemos uma época de encontrar mapas mais multidimensionais do que o plano cartesiano geopolítico. A pergunta sobre “cena” até fazia algum sentido nos anos 90, o auge daquele delírio de gravadoras pseudo-independentes (braços de multinacionais) e os cadernos de cultura dos jornais criando cenários, mas era sofrido, pra que repetir aquilo? Hoje é possível identificar pares em qualquer sítio do planeta e encontrar seu circuito. Se música curitibana é só aquilo que sai no caderno G da Gazeta do Povo, eu tou fora. A história que vivo é contemporanêa e sem fronteiras.
(Coroa da pena do pássaro sagrado da eternidade – Matema )
Quem são os principais grupos compositores ou autores de Curitiba?
Octavio Camargo, Felipe Cordeiro, Lúcio Araújo, Nillo Ferreira, Gus Pereira, Renê Bernunça, Thadeu Wojciechowski, Marcos Gusso, Rubens Kulczycki, Chico Mello, Barbara Kirchner, Gustavo X.X.X., Jr. Ferreira, Gengivas Negras, Domingos, Wandula, Ruído por milímetro, Magog, Woyzeck, coligere, Igor Ribeiro, Limbonautas, Pogobol, July et Joe, Pelebrói não sei, Imperious Malevolence, Beijo aa Força, Chucrobilly, Marcos Prado, Orquestra de Sopros de Ctba, Digão Duarte, Manoel Neto, Ademir Plá, Mamelucovich, Observatório Nome de Mulher, L.F. Leprevost, Malditos ícaros do Microcosmos, Tenuipalpus Blanch, Matema, um guri de 12 anos que tava tocando violão numa festa da Bicicletada e aquela banda do Rimon que eu não lembro o nome, um amigo gaúcho (Cristiano Figueiró) que morou aqui 6 meses e fez umas 5 músicas conosco, Pan&tone (portoalegrense) e rbrazileiro (olindense) fazendo barulho com Orquestra Organismo no espaço E/ou… essa lista vai aumentar todo dia e não vai ter lógica temporal ou geográfica. Eu moro aqui e quando não moro volto, tudo que é feito aqui ou por gente que ja passou por aqui é daqui também… Muito difícil pra mim pontuar isso, porque pra mim é uma vida diária e cada vez que algo soa e que eu estou junto… Ja toquei com uma banda carioca (Jason) na Eslovênia. Ja berrei trechos do Catatau (Paulo Leminski) fazendo música com amigos valenciano, recifense e siciliano na Noruega ou com bahianos, paulistas, gaúchos e outros ainda sem cidadania curitibana em Recife. Aquilo era música curitibana? Também. Mas do sintoma metropolitano deles também, lembrando ainda que o Catatau fala exatamente disso, deste sentimento de ser um pária na própria língua materna tentando filosofar por categorias que botam em cheque meu latim.
(Leite em Pó – glerm soares)
Você atua de que maneira na música curitibana?
Sendo curitibano e músico. Atualmente estou com um trabalho com software e hardware livre, fazendo softwares de música e instrumentos digitais artesanais que podem ser customizados por qualquer pessoa ( http://artesanato.devolts.org ). Tou com um projeto com gente de varias partes do planeta, chamado “Movimento dos Sem Satélite” (http://devolts.org/msst) disso sai música também, além de outros experimentos pós-industriais e questionamento da tecnocracia.
Quem faz música em Curitiba?
Quem quiser. Música não tem fronteiras e aqui não vamos pedir passaporte ou tolerar xenófobos.
Qual é o papel da política cultural em Curitiba?
Abrir os olhos para uma arte menos alienada em mercado, em genêro musical, em formatos midiáticos fechados. Mandei um projeto pra construir instalações sonoras e instrumentos de artesania digital pro edital de música municipal, ele não passou. O mesmo edital passou em artes visuais. Sabe por que? Porque o edital de música entendia que música é gravar CD e fazer show em palco… agora que ta aparecendo uns editais de publicar songbooks… Gravar CD, prensar 1000 CDs pra ficar dando pra editor de caderno de cultura de jornal escrever uma notinha que amanhã todo mundo esqueceu… isso é política cultural? A política cultural deve investir na base, Universidades livres e liceus de luthiers e musicólogos, em espaços autônomos, em produção de tecnologia musical e de publicação de conteúdo aliada a criatividade artística. Deveríamos ter mais rádios livres, estúdios livres, rádios universitárias. Essa política que finge estar aliada a um pseudo-mercado que nunca existiu por aqui é muito deprimente. O festival de música de Curitiba é um bom eixo, mas poderia ser menos elitista e buscar atender outros fluxos fora os acadêmicos, como arte sonora independente de formação musical proposta por artistas conceituais ou outros poetas e boemias. Aquela divisão “M.P.B” versus “erudita” é muito gagá, eu posso ser um erudito do punk, do noise, da música concreta ou eletrônica, ou posso também estar propondo a criação de paisagens sonoras num ambiente público, nas ruas – e isso seria popular, porque não?
( 0xriFFFFFFFFFFFFFF – glerm soares )
Quais características você apontaria na música Curitibana?
Cosmopolitismo provinciano, confusão ideológica, português estranho, inglês britânico ou ramonesco, punk finlandês, indie índio, academicismo diluído, erudição onanista, cageanos de raíz, elektronische musik, kraut rock, musique concrí¨te, caipira-curupira-capital, catatau, góticos, pós-punk antes do punk, no-wave cheio de onda, industrial cabeção, psychobilly, macumba pra gringo & mpb pra turista, desespero, ansiedade, perfeccionismo extremo paranóico obsessivo. Falo tudo isso no bom sentido. 🙂
Qual é o lugar de curitiba no mundo?
latitude 25ú25’40″S e longitude 49ú16’23″W
( Gambi Mimese – glerm soares )
Como é a relação da música de curitiba com a indústria cultural?
Depende de qual indústria você se refere. Uma indústria local que autoconsome música composta em Curitiba por seus cidadãos ou habitantes? Uma indústria brasileira ou global da música e sua relação com esta produção local? Seria preciso analisar todos os fatores: industria fonográfica, circuito midiático de rádio e tv, festas e festivais, interrelações com outros circuitos fora deste raio municipal. O problema industrial continua sendo o mesmo: uma grande fatia da produção independente querendo responder a uma suposta demanda dos veículos de massa, as rádios e tvs abertas que tem concessão pra operar impondo um padrão de comportamento que supostamente responde a um mercado de celebridades. Mas no fundo isto é uma máquina de iludir pessoas criativas a entrar num filtro cruel de servidão a um status quo cultural.
Acho curioso que Curitiba tenha um Festival de Teatro e de Música que atrai tantos estudantes e diletantes destas artes do Brasil todo (considerando aqui que teatro precisa de música também), mas que não gere uma continuidade profícua de produção local consumida naquela mesma escala e voracidade. São dois Festivais diferentes em alguns aspectos, pois o festival de música tem um viés didático e parece ser consumido mais por pessoas interessadas na música como métier, já o festival de teatro é uma espécie de carnaval municipal onde as pessoas são guiadas pelo programa das peças mais caras e oficiais, peças que tem atores da globo no elenco e outras figurinhas carimbadas. O curioso é que isso não seja suficiente pra firmar a cidade como um pólo produtor autosuficiente e confiante de suas intenções.
Vale também analisar o circuito de música urbana descendente direto do rock europeu e norte americano, nos anos 90 era fortíssima a diversidade com festivais como o B.I.G. (bandas independents de garagem), o selo Bloody e algumas outras coisas que sucederam. Mas aquela iniciativa sucumbiu a suposta necessidade de incluir-se no eixo Rio-São Paulo entrando naqueles selos pseudo-independentes, braços de multinacionais. Aquela época a internet fez muita falta e a articulação fora desta perspectiva era muito mais lenta. No fim dos noventa veio o estouro do rock feito pra MTV e acho que isso ainda domina até hoje este circuito, neutralizando possibilidades realmente alternativas, que nos melhores casos corre pelas bordas e vai muito bem, fazendo suas conexões em circuitos bem específicos, achando seu lugar por dentro da internet.
Um exemplo interessante e bem específico curitibano ja firmado nessa primeira década dos 2000 foi o PsychoCarnival, que acabou virando uma meca de um genêro bastante peculiar, derivado ali de bandas como Cramps e Meteors, mas com uma raíz bem específicas em bandas curitibanas como Missionários e Cervejas e toda aquela cena “punk o’ billy” que rolava no fim dos oitenta também em outras praças.
Mas a palavra indústria já é por si só muito cruel. Prefiro pensar a música se reproduzindo e sobrevivendo como um organismo, um ser-vivo com sua própria subjetividade do que essa coisa de esteira de montagem.
De alguma maneira a configuração dos imigrantes europeus refletiu na música de Curitiba?
Da mesma que a resistência nativo-americana, africana, asiática e de outros continentes perdidos, pois o que não reflete, reverbera como falta. Agora, nessas décadas que sucedem ao delírio industrial do século dos estados-nação, somos muito mais universais, somos muito mais poliglotas e o limite dos continentes são só estes oceanos a serem transpostos com nossa música em comum. A música pode revelar este elo perdido onde a diversidade de nossas raízes entram em curto-circuito e criam cidades psicogeograficas entre os pares.
(Da capo! – ensaio de orquestra – Fellini )