Talvez o grande ponto de diferenciação entre a antiga religiosidade pagã e a teologia cristã pós renascentista seja a dessacralização da natureza. Um giro completo das concepções platônicas panteístas para o núcleo abstrato do Big Bang da era dos megatons. Em nome do deus único abstrato, o “deus de todos” depurado pela teologia cristã medieval, O Sol deixou de ser uma divindade, a Lua, a Terra, os Mares, e também os Rios. Se por um lado isto permitiu o tão celebrado “avanço” da ciência contra as trevas da superstição, e possibilitou a Galileu tratar a terra como uma bola e colocar o sol no centro do sistema planetário (já que os planetas passaram a ser apenas pedras enormes ou massas gigantescas de gases), abriu também espaço para as ações mais ímpias de desrespeito ao “fácies” do ecossistema em nome das comodidades da vida urbana moderna e dos ideais da nova sociedade “esclarecida” pela ilustração. O gesto do Frei Luíz é heróico no sentido mais puro da palavra. Que surjam também os sacerdotes do Belém, do Ivo, e do Iguaçu, enquanto há tempo!
Segue a carta do Sacerdote do Rio São Francisco ao Presidente da República
DECLARAÇÂO
Em nome de Jesus Ressuscitado que vence a morte pela Vida plena, faço saber a todos:
1. De livre e espontânea vontade assumo o propósito de entregar minha vida pela vida do Rio São Francisco e de seu povo contra o Projeto de Transposição, a favor do Projeto de Revitalização.
2. Permanecerei em greve de fome, até a morte, caso não haja uma reversão da decisão do Projeto de Transposição.
3. A greve de fome só será suspensa mediante documento assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República, revogando e arquivando o Projeto de Transposição.
4. Caso o documento de revogação, devidamente assinado pelo Exmo. Sr. Presidente, chegue quando já não for mais senhor dos meus atos e decisões, peço, por caridade, que me prestem socorro, pois não desejo morrer.
5. Caso venha a falecer, gostaria que meus restos mortais descansassem junto ao Bom Jesus dos Navegantes, meu eterno irmão e amigo, a quem, com muito amor, doei toda minha vida, em Barra, minha querida diocese.
6. Peço, encarecidamente, que haja um profundo respeito por essa decisão e que ela seja observada até o fim.
Barra, Bahia, domingo de Páscoa de 2005
Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM
R.G.: 3.609.650
C.P.F.: 291.828.835-72
“Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”.
Frei Luiz
CARTA AO PRESIDENTE LULA
Barra, 26 de setembro de 2005
Senhor Presidente
Paz e Bem!
Quem lhe escreve é Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM, bispo diocesano de Barra, na Bahia.
Tive a oportunidade de conhecê-lo por ocasião da passagem do senhor por Bom Jesus da Lapa, na Caravana da Cidadania pelo São Francisco, em 1994. Isto aconteceu pouco tempo depois que fizemos uma Peregrinação pelo Rio São Francisco, da nascente í foz, com objetivo de conscientizar o povo ribeirinho sobre a importância do rio para a vida de todos e a necessidade de preservá-lo. Fui-lhe apresentado por meu professor de teologia, Frei Leonardo Boff.
Sempre fui seu admirador. Participei ativamente em todas as campanhas eleitorais do PT, alimentando o sonho de ver o povo no poder.
Desde que o Governo Fernando Henrique apresentou a proposta de transposição do Rio São Francisco, fomos críticos acirrados deste projeto. Desde então acentuamos a necessidade urgente de revitalização do rio e de ações que garantam o verdadeiro desenvolvimento para as populações pobres do Nordeste: uma política de convivência com o semi-árido, para todos, próximos e distantes do rio.
Esperávamos do senhor um apoio maior em favor da vida do rio e do seu povo. Esperávamos que, diante de tantos e consistentes questionamentos de ordem política, ambiental, econômica e jurídica, o governo revisse sua disposição de levar a cabo este projeto que carece de verdade e de transparência.
Quando cessa o entendimento e a razão, a loucura fala mais alto. Em meu gesto não existe nenhuma atitude anti-Lula neste momento delicado da vida nacional. Pelo contrário. Quem sabe seja uma maneira extrema de ajudá-lo a entender pelo coração aquilo que a razão não alcança.
Tenha certeza, é um profundo testemunho de amor í vida.
Minha vida está em suas mãos.
Receba minha saudação fraterna e amiga,
Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM
O assessor do presidente Luiz In�¡cio Lula da Silva, Silvino Heck, entregou na manh�£ de hoje uma carta ao bispo de Barra, da Bahia, Luiz Fl�¡vio Cappio.
D. frei Luiz leu a carta, na qual o governo federal diz que entende a luta do bispo, mas n�£o abre m�£o do projeto de transposi�§�£o, porque a obra ir�¡ beneficiar muitas pessoas. Diante do posicionamento de Lula, o frei mant�©m a greve de fome.
Comunicado do Movimento de Artistas
sobre a Greve de Fome de Frei Luiz Cappio
Frei Luiz Cappio, Bispo da diocese de Barra-BA, continua sua greve de fome,
j�¡ no sexto dia HOJE S��TIMO DIA, contra a
transposiÃ?§Ã?£o do rio SÃ?£o Francisco e pela sua revitalizaÃ?§Ã?£o. Seu sacrifÃ?Âcio o
une a cada dia e a cada vez mais
ao lento martÃ?Ârio consentido de um dos rios mais vitais no mundo para a
sobreviv�ªncia de uma popula�§�£o ribeirinha.
A plenitude e o significado do gesto ganham maior grandeza, inclusive
espiritual, por ser um franciscano que
est�¡ a faz�ª-lo. Frei Luiz sabe da import�¢ncia do rio n�£o s�³ para o povo
ribeirinho, mas tamb�©m para toda a
fauna e flora e para todos os elementos dos quais S�£o Francisco, que tanto o
inspira, versou no “CÃ?¢ntico das
Criaturas”, o primeiro poema escrito em lÃ?Ângua italiana lÃ?¡ no remoto sÃ?©culo
XII.
S�£o Francisco se eternizou na arte de Giotto e de tantos mestres da pintura
universal em todos os s�©culos. Sua
ess�ªncia espiritual est�¡ presente e de maneira muito forte na cultura e na
alma do povo barranqueiro, com o
qual Frei Luiz tanto comunga e compreende, e que por este povo �© t�£o amado.
Agora S�£o Francisco, o povo, o rio e um franciscano obstinado, disciplinado,
corajoso, culto e fervoroso, s�£o
um s�³. Nunca poderiam ser tanto. Nunca tamb�©m no Brasil se teve noticia de
algu�©m que h�¡ d�©cadas peregrina por
um rio, trabalhando com seu povo pela sua revitaliza�§�£o de maneira t�£o
eficiente e compartilhada. Mas, Frei
Luiz, tamb�©m vai avisando do muito que se precisa fazer para que as almas
bebam e comam no espÃ?Ârito do rio nÃ?£o
s�³ para matar suas sedes e fomes. Grande �© a sede de ser, a de justi�§a e a
de repartir o p�£o para que n�£o
sejamos t�£o miser�¡veis.
O povo compreende isso, por que esteve do lado de Conselheiro, em Canudos,
e, de outros lideres religiosos que
quiseram viver as bem-aventuran�§as ditas por Cristo no Serm�£o da Montanha.
Por isso, as romarias caminham pelas estradas de poeira do sert�£o nordestino
para encontrar o franciscano em
Cabrob�³. S�£o como afluentes correndo para um rio s�³, mas nunca um rio
solit�¡rio, �© o solid�¡rio simbolizado
agora como um rio, o S�£o Francisco na pessoa de quem doa sua vida.
Temos f�©, j�¡ que n�£o somos um Movimento de cren�§as, que o governo federal
que elegemos e nos representa, e que
por isso somos tambÃ?©m este governo, terÃ?¡ a sensibilidade nÃ?£o sÃ?³ polÃ?Âtica,
mais tamb�©m humanit�¡ria e ecol�³gica,
de parar a transposi�§�£o do rio e come�§ar sua revitaliza�§�£o para valer. Essa
revitaliza�§�£o n�£o pode ser um
disfarce polÃ?Âtico para a conveniÃ?ªncia e a gravidade da situaÃ?§Ã?£o: o rio estÃ?¡
doente h�¡ d�©cadas e n�£o pode doar
sua �¡gua/sangue para a vida de ningu�©m.
Depois da revitaliza�§�£o feita com responsabilidade, compet�ªncia, partilhadas
em decis�µes junto ao povo
ribeirinho, �© que se decide o que se deve doar para a grande car�ªncia de
�¡gua do semi-�¡rido nordestino.
Ali�¡s, sabemos que a transposi�§�£o n�£o �© a forma mais pratica e mais
econÃ?´mica de resolver a questÃ?£o hÃ?Âdrica. O
mesmo Frei Luiz lan�§ou h�¡ alguns anos a campanha de constru�§�£o de cisternas
para capta�§�£o de �¡gua das chuvas
feitas em mutir�£o. Esta campanha j�¡ construiu mais de 100.000 unidades e
virou um programa governamental com
apoio da Caritas e at�© do Banco Mundial.
Perguntamos: por que o projeto de transposi�§�£o est�¡ no topo da lista de
obras com superfaturamento no Tribunal
de Contas da Uni�£o mesmo antes de come�§ar a transposi�§�£o?
Por que se passou por cima das decis�µes dos comit�ªs de bacia, se manipulou
at�© �³rg�£os federais como o Ibama e o
Minist�©rio do Meio Ambiente, cuja ministra quer a revitaliza�§�£o do rio e n�£o
a transposi�§�£o, como j�¡ deixou bem
claro em suas declara�§�µes?
Por que tanta urg�ªncia de uma obra que poderia ter mais tempo de consulta
t�©cnica, e tamb�©m de uma ampla
consulta ao insatisfeito povo do rio, que �© quem mais sabe, vive dele, e
pode verdadeiramente decidir seu destino?
As perguntas querem respostas urgentes e nÃ?£o o oportunismo polÃ?Âtico nas
articula�§�µes da reelei�§�£o presidencial.
O governo e suas alian�§as j�¡ cometeram muitas incoer�ªncias e tem agido com
uma insensibilidade inacredit�¡vel
nas quest�µes sociais para as quais foi eleito. Prova disso �© a carta
recebida hoje por Frei Luiz do Presidente
da Rep�ºblica, cheia de suas evasivas naturais, e que a nada se compromete e
responde ao compromisso do
franciscano e de todos que o rodeiam. A resposta coerente de Frei Luiz �©
continuar a luta atrav�©s da greve de
fome e esperar a sensatez e a coragem de mudar de opini�£o e interesses do
governo federal.
Portanto �© hora do governo se redimir e provar a que veio, e n�£o pensar em
usar a transposi�§�£o como trampolim
eleitoral em meio ao fracasso de um projeto polÃ?Âtico manchado pela corrupÃ?§Ã?£o
que decepcionou toda a sociedade
civil.
Como defensores da vida do rio e de Frei Luiz, como conhecedores do Rio S�£o
Francisco e do que ele quer e
sonha, podemos dizer pela voz dos seres que o habitam, que ele deseja a vida
para fluir da nascente a foz e que
Frei Luiz ainda a desfrute, e muito, em defesa desta vida.
Quem n�£o tiver do lado deste desejo sagrado, deve responder com
responsabilidade pelos seus atos
inconseq�¼entes, inclusive, por transformar Frei Luiz Cappio em m�¡rtir de uma
grande causa e em mais um dos
mitos que o rio j�¡ incorporou a sua hist�³ria. Tamb�©m, corre perigo pela
falta de estrat�©gia e intelig�ªncia
governamental, de transform�¡-lo em um santo. Ali�¡s, este processo natural j�¡
de certa forma ocorre pelo seu
carisma e pelas suas a�§�µes de desprendimento a servi�§o da popula�§�£o de sua
par�³quia como padre, e como bispo,
desde 1997, na diocese de Barra na Bahia � s margens do rio que ele tanto
quer ver s�£.
O bispo Frei Luiz Cappio foi convidado pelo pr�³prio papa Jo�£o Paulo II a ser
embaixador de sua Igreja no
semi-�¡rido baiano, convite que aceitou com grande resist�ªncia, pois n�£o �©
muito chegado ao poder temporal. E
aceitando, somente, para ter maior influ�ªncia na revitaliza�§�£o do rio, e na
condu�§�£o espiritual de seu povo,
t�£o carente de resolver as quest�µes sociais.
Para este bispo que nunca deixou de ser um humilde frei franciscano,
enviamos um recado amoroso e solid�¡rio:
estamos com voc�ª at�© a Vida, n�£o s�³ a de um rio, mais de todos os rios
brasileiros, e tamb�©m, dos rios que
passam por nossas vidas rumo a foz da exist�ªncia Eterna.
Ben�© Fonteles
Coordenador do Movimento Artistas pela Natureza
e articulador do Movimento Arte Solid�¡ria
05/10/2005 – 10h45
Governo promete revitaliza�§�£o do rio S�£o Francisco para tirar bispo de greve
BRASÃ?ÂLIA – O governo teme pelas conseqÃ?¼Ã?ªncias polÃ?Âticas da greve de fome realizada pelo bispo de Barra (BA), Luiz FlÃ?¡vio Cappio, 59 anos, como forma de protesto contra a obra de transposiÃ?§Ã?£o das Ã?¡guas do rio SÃ?£o Francisco. O presidente Luiz InÃ?¡cio Lula da Silva credenciou o ministro de RelaÃ?§Ã?µes Institucionais, Jaques Wagner, a buscar um diÃ?¡logo com religioso. O ministro, que Ã?© baiano, deve viajar hoje a CabrobÃ?³ (PE) para conversar com o bispo. A ministra Marina Silva (Meio Ambiente) tambÃ?©m foi acionada pelo PalÃ?¡cio do Planalto ontem. EstÃ?¡ prevista a concessÃ?£o, nesta semana, de uma licenÃ?§a do Ibama autorizando o inÃ?Âcio das obras de transposiÃ?§Ã?£o. Uma das possibilidades estudadas pelo governo para convencer o bispo a abandonar a greve Ã?© assumir de forma enfÃ?¡tica o compromisso com as obras de revitalizaÃ?§Ã?£o do rio – jÃ?¡ em curso -, adiando temporariamente o inÃ?Âcio da transposiÃ?§Ã?£o.
” A prioridade zero do governo neste momento Ã?© evitar um desfecho grave da greve de fome ” , afirmou o ministro. A contragosto da equipe econÃ?´mica, o presidente Lula orientou Jacques Wagner a defender e agilizar a votaÃ?§Ã?£o da proposta de emenda constitucional (PEC) que tramita no Congresso – jÃ?¡ aprovada no Senado – que destina R$ 300 milhÃ?µes, por 20 anos, Ã? revitalizaÃ?§Ã?£o do rio. ” Essa emenda terÃ?¡ apoio e empenho do governo ” , disse.
Jacques Wagner descartou a hipÃ?³tese de interrupÃ?§Ã?£o das obras. Ao ser indagado se seria possÃ?Âvel estender a revitalizaÃ?§Ã?£o antes de iniciar a transposiÃ?§Ã?£o em si, o ministro argumentou que quando entra num processo de negociaÃ?§Ã?£o nÃ?£o gosta de dizer ” quais sÃ?£o os limites ” dele.
A avaliaÃ?§Ã?£o de parte do governo Ã?© que o ministro da IntegraÃ?§Ã?£o Nacional, Ciro Gomes, nÃ?£o teria a habilidade polÃ?Âtica necessÃ?¡ria para negociar com o religioso. A transposiÃ?§Ã?£o das Ã?¡guas da bacia do SÃ?£o Francisco seria apresentada Ã? populaÃ?§Ã?£o, especialmente do Nordeste, como a principal obra do governo Lula. Deputados petistas e aliados governistas do Nordeste tiveram uma reuniÃ?£o com Wagner atÃ?© a madrugada de ontem para alertar ao governo sobre a seriedade do episÃ?³dio e os impactos que poderia gerar na reeleiÃ?§Ã?£o do presidente Lula. O PT, que em sua origem teve forte relaÃ?§Ã?£o com a Igreja CatÃ?³lica, vÃ?ª a situaÃ?§Ã?£o com extrema preocupaÃ?§Ã?£o. Petistas nordestinos tÃ?ªm procurado grupos catÃ?³licos para abertura de diÃ?¡logo.
A oposi�§�£o come�§ou ontem a explorar o assunto de forma mais sistem�¡tica no plen�¡rio. No Senado, parlamentares do PSDB e do PFL criticaram o governo.
Cerca de 2.500 pessoas, segundo a PolÃ?Âcia Militar, acompanharam, em CabrobÃ?³ (a 600 km de Recife, PE), a missa celebrada na caatinga pelo bispo. Em um altar improvisado sobre um palco montado ao lado da capela onde se isolou em jejum, Cappio recebeu o apoio de quatro integrantes do Movimento dos Pequenos Agricultores que aderiram Ã? greve de fome.
” Precisamos defender a vida do rio atÃ?© a morte ” , disse Pessoa. Os voluntÃ?¡rios foram recrutados tanto em Estados afetados pela transposiÃ?§Ã?£o (CearÃ?¡ e ParaÃ?Âba) quanto em nÃ?£o-afetados (Sergipe e Alagoas).
(Maria L�ºcia Delgado)