STEWART HOME: A PERSPECTIVA RADICAL
Rodrigo Nunes
“A arte não pode ser reformada, ela só pode ser abolida”, diz o escritor e agitador inglês
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Começou, como não poderia deixar de ser, no punk rock. Uma sequência de bandas medíocres e a sua própria mediocridade como guitarrista fizeram Stewart Home abandonar a música. Um dia, olhando uma obra numa exposição, teve um “insight”: “Eu também poderia fazer isso”. “Isso”, no caso, não era a obra em si. A questão que o interessava era: o que é necessário para conseguir pendurar uma peça na parede de uma galeria?
Desde então, Stewart Home tem construído uma trajetória bastante única como “artista” e “antiartista”: exposições, livros de ficção na tradição da “pulp fiction” (“Red London”, “Defiant Pose”), não-ficção sobre o situacionismo, as vanguardas e a antiarte (“Assalto a Cultura”, publicado no Brasil, “Mind Invaders: A Reader In Psychic Warfare”, “Cultural Sabotage And Semiotic Terrorism”), plágios em geral e, principalmente, ações inusitadas e carregadas de críticas contra a arte, suas instituições e a relação de ambas com o capitalismo.
Home virá ao Brasil em maio para o 8ú Cultura Inglesa Festival, onde a artista plástica Graziela Kunsch apresenta o projeto “Um Espaço para a Contracultura Inglesa”, inspirado na obra do escritor inglês.
“A arte não pode ser reformada, ela só pode ser abolida. Assim, a estratégia cultural progressista nesse período de transição deve ser tornar autônomo o negativo dentro da prática artística”, afirma Home na entrevista a seguir.
O termo “vanguarda” tem origem política. à luz de certos acontecimentos dos últimos anos (com as manifestações dos altermundialistas em Seattle, Praga, Gênova, o movimento contra a invasão do Iraque) e o estado atual do mundo artístico, quais podem ser as relações entre arte e política hoje?
Stewart Home: Sempre achei que “vanguarda” tinha uma origem militar antes de uma origem política e artística. Mas o sentido das palavras muda ao longo do tempo e, mesmo se há muito o que discordar de Adorno, seus avisos sobre o risco de se preocupar excessivamente com a etimologia são válidos.
Falando de arte como ideologia, e não em termos de objetos, ela parece estar ligada ao sensual -enquanto a política e a chamada “ciência política” servem ao capitalismo como representação do racional. Essa divisão arte/política ou sensual/racional é claramente desumanizadora e alienada. Um dos objetivos da ação revolucionária é conciliar o sensual e o racional. Em muito do discurso sobre arte, os artistas aparecem como uma representação abstrata daquilo com que os seres humanos deveriam ser. Não apenas os artistas, mas todos nós deveríamos estar realizando os diferentes aspectos -emocionais, físicos, intelectuais- da nossa espécie.
Exatamente como o capitalismo, do qual é uma parte e um microcosmo, a arte não vai desaparecer por livre e espontânea vontade. Aliás, o fim da arte parece se arrastar indefinidamente na forma de neo- e retro-vanguardas. A vanguarda emerge parcialmente de tradições de iconoclastia religiosa, e como consequência parece não ser nem capaz de viver o fim da arte em silêncio. Pelo contrário, as vanguardas parecem ficar mais estúpidas a cada dia, com todas as suas produções “neocríticas”. O bebê é jogado fora junto com a água do banho, já que no seu esforço para parecer crítica, a vanguarda e sua prole abandonam o sensual sem nem chegar ao racional.
Larry Shiner, no seu recente “The Invention of Art”, argumenta que a arte é uma invenção da sociedade européia do século 18. Quando li isso, lembrei-me imediatamente de “Art, an Enemy of the People”, de Roger Taylor, livro que me deixou bastante contente nos anos 80. Taylor foi o primeiro autor que encontrei cujos argumentos sobre arte não exalavam o cheiro de ovo podre da idéia de Deus. A retórica da Escola de Frankfurt sobre a função crítica e negativa da arte era obviamente idealismo burguês coberto de trapos marxistas. Se o capitalismo cria as condições materiais para o aparecimento da “arte”, é o idealismo alemão que lhe fornece a legitimação ideológica.
Partindo das mesmas fontes filosóficas, Marx concluiu que a atividade humana constitui a realidade por meio da sua práxis. A verdade é processo, o processo de auto-desenvolvimento ou, como Marx colocou, o indivíduo completo do comunismo maduro é um caçador de manhã, um pescador í tarde e um crítico í noite -sem ser nenhum dos três.
Como está acorrentada pela comodificação, a prática artística é uma deformação do desenrolar sensual do eu que será possível quando tivermos chegado í comunidade humana real. O objetivo do comunismo é superar a reificação da atividade humana em áreas desconectadas, como trabalho e lazer, o estético e o político. O comunismo deve salvar a estética do gueto da arte e colocá-la no centro da vida.
Uma das questões mais importantes da política radical hoje parece ser o espaço: a erosão do espaço público, a criação de espaços autônomos, a ocupação de terras, “squatting”. Grupos como o Reclaim the Streets! e os Space Hijackers vêm í mente. Como você relacionaria essas questões í preocupação dos situacionistas com o espaço?
Home: Exceto num nível estritamente espetacular, não vejo muita relação entre os situacionistas e o Reclaim the Streets! Um dos problemas de críticas recentes da vanguarda dentro das quais os situacionistas foram parcialmente subsumidos é a maneira como a “antiarte” é concebida como privilegiando o espaço ao tempo. A consequência disso é que não há muito interesse em examinar a vanguarda teleologicamente. Considero errado concentrar-se no espaço em detrimento do tempo, e vice-versa; mas já que há tanta ênfase na relação espaço-vanguarda, talvez seja útil corrigir esse desequilíbrio dando mais importância ao tempo.
O papel do artista e seu duplo, o “antiartista”, alterou-se sensivelmente ao longo do último século, devido tanto í transição do paradigma moderno ao pós-moderno quanto ao que poderíamos chamar de “efervescência” da tecnologia. Enquanto não seria errado dizer que o século 20 viu a introdução de novas tecnologias de comunicação, não podemos esquecer que o mesmo pode ser dito do século 19 -que pariu a estrada-de-ferro e o telégrafo.
Fala-se muito ultimamente sobre a expansão global de indústrias culturais, e nunca é demais enfatizar que esse fenômeno só pode ser entendido dentro da lógica do capitalismo. Também gostaria de sugerir que o stalinismo e o maoísmo impuseram o capitalismo ao que até então haviam sido sociedades camponesas, e assim a principal característica do século 20 foi a passagem de uma dominação formal í real dominação do capital em escala global.
Como resultado, a produção industrial se moveu para as zonas periféricas do capitalismo, e algumas das indústrias mais avançadas podem ser encontradas hoje em países antes tidos como “atrasados”, da mesma maneira como regiões antes pesadamente industrializadas -como o Meio-oeste norte-americano ou as Midlands na Inglaterra- tornaram-se cinturões de ferrugem. Tudo isso tem um impacto imenso na produção da arte.
Algumas das nações industriais em declínio transformaram a produção cultural e os negócios imobiliários em importantíssimos geradores de riqueza. Assim como é global, a indústria cultural também é altamente localizada -centralizada em lugares como Londres e Nova York. Além disso, a produção cultural é diretamente relacionada ao aburguesamento daquelas que costumavam ser áreas pobres nessas cidades, e o aumento meteórico do preço dos imóveis nessas áreas tem destruído muito da sua personalidade, justamente o que na origem as tornava atrativas í s vanguardas (entre os burgueses que se mudavam para lá).
Acho que esse é o contexto histórico daquilo que tanto os situacionistas quanto o Reclaim the Streets! tentaram fazer com o espaço público urbano. Por outro lado, os primeiros eram obcecados com uma constante reconstrução da ponte entre compreensões teóricas desse tipo e a prática (fosse da psicogeografia ou dos tumultos de rua), enquanto o Reclaim the Streets! fracassou em realizar seu potencial tático e estratégico porque era excessivamente obcecado com a idéia de ação direta.
Qual é o legado dos situacionistas? Eles ainda são relevantes taticamente (escândalo, reversão etc.)? Eles ainda estão vivos teoricamente ou o seu pensamento foi recuperado?
Home: Na melhor das hipóteses, o que os situacionistas fizeram foi reformular posições clássicas do comunismo de esquerda como poesia. Por exemplo, em “Sobre a Miséria da Vida Estudantil” (manifesto situacionista): “Quanto aos vários grupelhos anarquistas, eles não possuem nada, exceto uma patética e ideológica fé neste rótulo. Eles justificam todo tipo de auto-contradição em termos liberais: liberdade de expressão, de pensamento, e tralhas deste tipo. Como eles toleram uns aos outros, tolerariam qualquer coisa”. Essas frases estão apenas na tradução inglesa de Chris Gray, e não no documento original.
O problema dos situacionistas é que eles são continuamente recuperados pelos anarquistas, que nunca encontraram o comunismo de esquerda em toda a sua originalidade, nem nunca entenderam a natureza de seu rompimento com a Terceira Internacional. Os situacionistas servem de entrada em debates que são de relevância permanente, mas o movimento comunista é bem mais amplo do que isso. Acho que há muita razão para se fazer uma leitura atenta dos trabalhos de Asger Jorn e Chris Gray, mas isso não pode ser feito í s custas de negligenciar Marx ou o trabalho prático.
í« Bricolage í», í« détournement í», í« copyleft í», software livre”¦ Estes são elementos de uma discussão que começou na arte e hoje se espalha por outros campos?
Home: O “détournement” dá um toque político polêmico í noção de “bricolage”. O texto pré-situacionista clássico nessa área é o ensaio “Métodos de ‘Détournement'”, de Debord e Wolman, de 1956. Um filme como “What”s Up, Tiger Lily?” mostra desrespeito completo por um artefato cultural existente e o usa para fazer um trabalho novo: Woody Allen toma um filme de espionagem japonês e o transforma numa história sobre o roubo de uma receita secreta de salada de ovo.
Isso é feito principalmente por meio da dublagem, se bem que algumas cenas com Allen e o Lovin’ Spoonful (grupo pop americano) foram incluídas para fazer o produto mais vendável para jovens americanos dos anos 60. “What’s Up, Tiger Lily?” está mais próximo da noção de “détournement” bem-sucedido de Debord e Wolman que os experimentos cinematográficos de um ex-situacionista como René Vienet.
No seu “Pode a Dialética Quebrar Tijolos?”, um filme de kung fu de Hong Kong dos anos 70 foi redublado para dar um ângulo revolucionário í história. No entanto, Debord e Wolman teorizaram que as formas mais efetivas de “détournement” seriam aquelas que demonstrassem desprezo por todas os modos existentes de racionalidade e cultura, ao passo que aquelas que simplesmente invertiam sentidos preexistentes -como no caso de Vienet, que pega uma trama clássica do cinema de Hong Kong da época (o conflito étnico entre Manchus e Mings) e a substitui por um conflito de classe entre proletários e burocratas- são consideradas fracas. Com base na teoria de Debord e Wolman, “What’s Up, Tiger Lily?” deveria ser melhor que “Pode a Dialética Quebrar Tijolos”. Na pratica, eu prefiro o filme de Vienet.
A respeito disso, há um argumento bastante unilateral que eu encontro com frequência -que a prática da vanguarda do início do século 20 teria sido normalizada no interior da arte contemporânea. É verdade, mas apenas até certo ponto, porque, enquanto a técnica da “bricolage” e o tratamento da história da arte inteira como fonte de material para a produção de novos trabalhos foram normalizados, a crítica í instituição da arte que a acompanhava foi jogada pela janela.
Aqui eu me refiro, claro, ao trabalho de Peter Burger, assim como ao envolvimento dos dadaístas de Berlim e da Internacional Situacionista com a esquerda comunista. A vanguarda pretendia integrar arte e vida, e o projeto falhou exatamente porque nem os dadaístas, nem os surrealistas, entenderam direito que a arte ganha sua aparência de autonomia ideológica por meio da sua comodificação.
Uma vez que a prática da apropriação tornou-se disseminada no campo artístico, o que significa levar o campo de práticas culturais a ser regulado pela instituição da arte, esta automaticamente alcançou o seu limite histórico. Essas contradições não podem ser resolvidas dentro do discurso da arte. Dentro desse campo discursivo, é impossível ir além da solução oferecida por Hegel, segundo a qual “o plágio teria de ser uma questão de honra e coibido pela honra” (“Filosofia do Direito”, tese 69). Em outras palavras, enquanto as leis de propriedade intelectual vigorarem, a apropriação como uma prática “artística” seguirá sendo tratada pelo sistema legal caso a caso.
Mas isso não é algo restrito í instituição da arte, mas uma das contradições básicas da cultura capitalista. Como a citação de Hegel demonstra, o debate nessa área é historicamente anterior í sua introdução no discurso da vanguarda e emerge não apenas do interior da instituição de arte, como também de campos como a filosofia.
Tendo dito isto, “copyleft” e software livre são tentativas de resolver essas contradições sob as relações “sociais” capitalistas entre aqueles que não gostam das noções contemporâneas de direito de propriedade, enquanto o “détournement” pretende ser um ataque revolucionário í nossa existência alienada. Claramente, o que é formulado e o que se espera que resulte dessas formulações é bem diferente. Da mesma forma, aqueles que usam a “bricolage” como técnica podem ou não estar conscientes das implicações dessa pratica -é possível praticar a “bricolage” sem aderir a nem mesmo uma crítica reformista das relações sociais capitalistas, muito menos a uma crítica revolucionária.
O dadaísmo queria suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo queria realizar sem suprimir; o situacionismo queria realizar e suprimir. O que sobrou hoje para realizar e/ou suprimir?
Home: Guy Debord diz na tese 191 de “Sociedade do Espetáculo”: “Dadaísmo e surrealismo são duas correntes que marcam o fim da arte moderna. São contemporâneas, ainda que de maneira apenas relativamente consciente, do último grande ataque do movimento proletário; e a derrota desse movimento, que os deixou prisioneiros do mesmo campo artístico cuja decrepitude haviam anunciado, é a razão básica para sua imobilização. Dadaísmo e surrealismo são ao mesmo tempo historicamente relacionados e opostos um ao outro. Essa oposição, que cada um deles considerava sua mais importante e radical contribuição, revela a inadequação interna de sua crítica, que cada um desenvolveu unilateralmente. O dadaísmo queria suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo queria realizar a arte sem suprimi-la. A posição crítica mais tarde elaborada pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são aspectos inseparáveis de uma única superação da arte”.
Debord, cuja anticarreira começou com um longa-metragem, “Uivos em Favor de Sade”, que continha apenas uma imagem permanentemente preta interrompida por irrupções de luz, era incapaz de extrair-se do esquema de referência proporcionado pela instituição da arte, e ao invés disso recuou teoricamente rumo a uma compreensão unilateral de Hegel. Está perfeitamente claro, tanto na “Propedêutica Filosófica” (“A Ciência do Conceito”, Terceira Seção, “A Pura Demonstração do Espírito”, teses 203-207) como na “Filosofia do Espírito: O Ser”, terceira parte da “Enciclopédia das Ciências Filosóficas” (Seção três, “O Espírito Absoluto”, teses 553-571), que no sistema hegeliano a superação da arte é encontrada de fato na religião revelada.
Como entre os setores mais avançados da burguesia a “arte” havia, no tempo de Debord, substituído a religião revelada, os situacionistas foram forçados a pular essa inversão hegeliana em particular e, em vez disso, passar direto í filosofia, que representa a mais alta realização do Espírito Absoluto no sistema de Hegel.
Seguindo Marx, Debord via o proletariado como o sujeito que realizaria a filosofia. A concepção situacionista de superação da arte também é filtrada pelas idéias de August von Cieszkowski, cujo “Prolegômenos a Historiosofia”, de 1838, era dedicado í noção de que “o ato e a atividade social irão agora superar a filosofia”. Foi essa fonte que forneceu aos situacionistas o material para completar sua falsa “superação”, o que os permitiu chegar de volta í última categoria da arte romântica dentro do sistema hegeliano, a poesia.
Raoul Vanegeim afirma em “A Arte de Viver para as Novas Gerações”: “A poesia é… o ‘fazer’, mas o ‘fazer’ devolvido í pureza de seu momento de gênese -visto, em outras palavras, do ponto de vista da totalidade”. Nos anos 60, Debord e Vanegeim pretenderam haver “superado” a vanguarda e estar assim “fazendo” uma situação “revolucionária” que fora além do ponto de onde poderia retornar. No entanto, tudo que os situacionistas conseguiram foi repetir os fracassos do dadaísmo e do surrealismo na terminologia hegeliana, com a consequência inevitável de que sua crítica era, em vários sentidos, menos “avançada” que a de seus “precursores”.
Debord, que era um teórico superior a seu “camarada” Vanegeim, parece ter se dado conta desse deslize, embora não soubesse como “recuperá-lo”. O fragmento de Cieszkowski citado na versão em celulóide de “Sociedade do Espetáculo” é mais do que revelador: “Portanto, após a prática direta da arte haver deixado de ser a coisa mais importante, e esse predicado haver sido devolvido í teoria, ela como tal se desliga desta última, na medida em que uma prática sintética pós-teórica é criada, cujo principal fim é ser o fundamento e a verdade da arte enquanto filosofia”.
Os museus tornaram-se marcas corporativas lucrativas, os críticos tornaram-se criadores de tendências profissionais. Como você vê a relação entre a arte e as instituições? Que soluções podem existir para os impasses atuais do mundo e os do mercado da arte?
Home: Tendo adotado uma perspectiva estritamente materialista e antiessencialista, é preciso insistir que a única coisa que as obras de arte têm em comum é o fato de serem tratadas como obras de arte. Em outras palavras, obras de arte são qualquer coisa que aqueles em posição de poder cultural digam que elas são. Ou, dito de outra forma, as instituições de arte e os críticos que são mantidos por e trabalham junto a elas definem o que é tratado como arte em qualquer momento histórico dado.
Se aceitamos que a vanguarda “clássica” -futurismo, dadaísmo, surrealismo- não criou nenhum novo estilo próprio, mas apenas novos trabalhos por meio de uma “bricolage” de todos os estilos até então existentes, então não pode surpreender que a arte no último momento do século 20 não tenha sido marcada por uma simples consolidação dessa prática, mas, ao contrário, tenha testemunhado uma crise da representação artística e uma tendência cada vez maior í iconoclastia.
Fortes inclinações iconoclásticas já são evidentes no futurismo e no dadaísmo, e uma vez que a “bricolage” enquanto principio é incapaz de regenerar a cultura a longo prazo, como surpreenderia que, após o período mais construtivo que foi o surrealismo, houve um movimento de retorno í iconoclastia, manifesto em tendências como Fluxus e a arte auto-destrutiva?
Contudo, é um erro julgar os desenvolvimentos nas artes unicamente da perspectiva do crescimento interno. Com a adoção tanto da colagem quanto da “bricolage”, a vanguarda achou-se desenvolvendo linhas ditadas pela expansão da esfera econômica em processo, o que por sua vez pôs forças culturais progressistas em conflito com o capitalismo. A arena mais imediata para o conflito foi a da propriedade intelectual. Em vários sentidos, o desenvolvimento da legislação nessa área mostrou que a modernização capitalista era uma força ainda mais inconoclástica dentro da cultura do que a vanguarda.
Por meio da introdução de direitos de propriedade sobre criações artísticas, o capitalismo a um só tempo comodificou e democratizou a cultura. Ao fazer toda a cultura igual perante a lei, a burguesia descartou as velhas distinções aristocráticas que privilegiavam algumas formas culturais em detrimento de outras.
Assim, o que sociólogos como Pierre Bourdieu chamam de capital cultural pode ser melhor descrito -com um aceno para Jacques Camatte- como capital cultural virtual. A lei, buscando controlar a cultura, ao mesmo tempo tornou-a autônoma. No passado, a classe dominante usou a alta cultura como uma cola ideológica capaz de unir seus membros, simultaneamente excluindo outras classes de seus privilégios. Hoje, uma cultura pós-moderna banal oprime uma classe humana universal (“universal” ao menos nos termos da lei).
Para os românticos, o artista era o depositário oficial da criatividade humana e da consciência. Em face dos compromissos e confusões da então nascente sociedade industrial, apenas o artista possuía as paixões que a necessidade espiritual finalmente, um dia, forçaria a sociedade como um todo a adotar. A necessidade espiritual falhou na sua tarefa histórica, porém. Ao fim, surgiu o movimento modernista e afirmou que apenas uma vanguarda historicamente bem informada, o artista como agitador, era capaz da total transformação da civilização industrial. Para os modernistas, o sentimento -que está na raiz da tentativa romântica de educação da humanidade- foi transformado em ofensa. Com o tempo, a vanguarda pareceu por demais rígida e restritiva. Assim, a pós-modernidade quis apenas “liberar geral”, sem a necessidade onerosa de buscar qualquer coerência teórica.
É justamente graças a suas posições antiteóricas que não se pode esperar “originalidade” da cultura pós-moderna e de seus filhos. Tomemos Jean Baudrillard, cujo nome é quase sinônimo de pós-modernismo -ele demorou terrivelmente até incorporar esse termo em seu próprio trabalho. Seus textos -sua fotografia é igualmente trivial, mas como não tem o humor de seus textos, é tediosa demais para que a discutamos- não são nem teoria nem sociologia, mas somente uma patafísica de baixa qualidade numa embalagem nova. Se a arte pós-moderna, seja pintura, foto, vídeo, performance ou instalação, claramente não é uma teoria, e pode no máximo pretender ser teoricamente bem informada ou coerente, ela sofre de falhas semelhantes í s bobagens de Baudrillard.
Mesmo assim, os trabalhos produzidos sob a égide do “pós-modernismo” nos anos 80 ainda são teoricamente rigorosos comparados ao que veio depois. Não se trata que artistas contemporâneos de sucesso como Tracey Emin tenham ficado estúpidos, eles tornaram-se celebridades culturais com base em sua evidente estupidez. Emin repete os gestos da vanguarda -exibindo uma cama, por exemplo-, mas com uma crença ingênua e romântica na autenticidade de seu projeto.
Ela interpreta, não representa, seus traumas, molhando a famosa cama. Provavelmente ela inclusive pensa que, fazendo isso, está indo um passo além de exibir um “ready made”, como um mictório. Não obstante, ela é uma celebridade, e a vida que ela leva com uma sinceridade tão sem arte é portanto ironizada -não por ela, que é pessoalmente imune a ironia e ao kitsch, mas pela fria digitalidade da mídia.
Essa mídia, em permanente expansão, é voraz no seu apetite por novidades, fofocas, personalidades e opiniões. Mas o espectro do que é efetivamente processado é muito estreito. A maioria das revistas e jornais publica resenhas de cem palavras de livros, e poucos dos responsáveis por apregoar essas mercadorias do momento fazem mais que ler um release ou a orelha. A “opinião de especialistas” consiste em meia dúzia de frases.
Dos testas-de-ferro da indústria cultural, sejam novelistas ou “pop stars”, espera-se que atuem no circo. Hoje os “criadores” de produtos culturais “de sucesso” inevitavelmente acabam na TV, e assim não é mais necessário questionar classificações como “gênio”. No faz-de-conta dos “mass media”, há uma parada interminável de celebridades intercambiáveis, por definição imbecis. Embora nunca tenha sido mais que um fantasma, a noção de gênio já foi uma arma de verdade no arsenal da alta cultura. Hoje é um conceito que só pode ser invocado ironicamente.
Tradicionalmente, e mesmo hoje, o artista ocupa uma posição anacrônica na economia capitalista. Ao invés de assalariados, artistas são nominalmente autônomos, mas na prática tendem a ser dependentes de uma ou algumas pessoas (agente, marchand…) para manter sua renda. Essa situação virtualmente feudal suportada pelos artistas, somada a um “star system” que garante que uma pequena minoria seja imensamente remunerada, enquanto a maioria recebe muito pouco (embora esse trabalho pouco remunerado seja evidentemente necessário do ponto de vista econômico, já que serve para valorizar e justificar os preços pagos í s estrelas), significou até recentemente que aqueles que produzem arte profissionalmente eram particularmente susceptíveis a ideologias reacionárias, como o anarquismo e o fascismo.
Mas hoje a política (e em especial aquelas formas ancoradas no rancor pequeno burguês) é um peso morto para os aspirantes í celebridade cultural. Não é mais necessário defender banalidades reacionárias, já que a própria cultura em que estão inseridos é totalitária. O que temos visto é a iconoclastia transformada em um mecanismo cego e automático que necessariamente acompanha a digitalização da propriedade intelectual e a comodificação da “personalidade” na forma incorpórea das celebridades inumanas.
O capitalismo não é apenas o motor por trás da iconoclastia. Na sua indiferença para com o que oblitera (a comunidade humana, a inteligência humana, os corpos humanos), a economia de mercadorias é a força monumentalmente destrutiva que ergue a destruição de ídolos a níveis inéditos de banalidade.
A grande tendência da arte brasileira hoje é a formação de coletivos de artistas que, ao menos em tese, trabalham na fronteira entre arte e política. Quais podem ser os perigos e as vantagens disso? Existe o risco de a arte danificar a política e vice-versa? Isso é perigo ou uma vantagem?
Home: Como sob o capitalismo todos reproduzem as condições de sua própria alienação, enquanto a arte como nós a conhecemos continua a existir, seria ridículo esperar que aqueles que desejam sua abolição como uma esfera separada do fazer humano não se envolvam com ela. Entretanto, artistas progressistas devem ter em mente que o seu papel como especialistas não-especializados deve ser negado. A arte não pode ser reformada, ela só pode ser abolida. Assim, a estratégia cultural progressista nesse período de transição deve ser tornar autônomo o negativo dentro da prática artística.
Eu quero que a política danifique a arte, e a arte danifique a política, visto que ambas são produtos da reificação. Precisamos viver a morte da vanguarda não só na teoria, mas na prática. Não aprendemos nada com a arte morta de gente viva. Aprendemos tudo com a arte viva de gente morta. Vida longa aos mortos! A principal preocupação de coletivos de artistas “saudáveis” será e deve ser o sexo.
Rodrigo Nunes é doutorando em filosofia pela Universidade de Essex, Inglaterra, como bolsista da Capes. Faz intervençõe em diferentes midias e participa de coletivos ativistas, como Grumo – Artivismo Nômade, London School of Falcatrua.
Fonte: Trópico (http://p.php.uol.com.br/tropico/html/index.shl).
Contra a nostalgia – Por Lisette Lagnado
O artista Rirkrit Tiravanija, convidado da 27ê Bienal de São Paulo, defende uma outra experiência do tempo e da arte
Rirkrit Tiravanija é um dos convidados da 27ê Bienal de São Paulo, intitulada “Como viver junto” (inspirada nos seminários de Roland Barthes). Este artista de origem tailandesa, nascido em Buenos Aires, em 1961, tem acompanhado os escritos de Nicolas Bourriaud acerca da “estética relacional”. Entretanto, na Bienal, que abre ao público no próximo dia 7 de outubro, Rirkrit está no bloco em homenagem a Marcel Broodthaers, a convite do curador Jochen Volz.
A entrevista abaixo começou a ser elaborada em março de 2005, por ocasião da polêmica mostra chamada “Retrospective – Tomorrow is Another Day”, que o artista apresentou em Paris. Não havia nada para ser visto, a não ser os títulos de suas intervenções artísticas desde 1989. Um conferencista e alguns atores foram tentando dar vida a uma obra que não pode ser “reconstruída”, por meio de um texto de Philippe Parreno. As palavras tomaram conta do vazio, e a figura do narrador de Walter Benjamin esteve mais do que nunca evocada para estimular a imaginação do público e, sobretudo, para denunciar a falta de experiência na vida contemporânea.
Discuti com Rirkrit o Programa Ambiental de Hélio Oiticica (1937-1980), que propunha a participação do não-artista e a transformação do artista em “propositor”. Em que medida Rirkrit estaria se diferenciando de uma visada experimental enunciada nos anos 60 e 70, quando Oiticica inventa o Parangolé? Será que o conceito de “trocas”, tão difundido entre os artistas, pode ser um dispositivo de inclusão social?
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Rirkrit Tiravanija: Oi, Lisette, acho que tive um sonho no qual já respondi a essas perguntas! Mas Glori me disse que não… Ou então ainda estou dormindo. Em todo caso, espero que sejam as mesmas respostas que dei no meu sonho…
Toda sua prática “contra trabalhos acabados” me lembra muito do artista brasileiro Hélio Oiticica, cuja tentativa nos anos 70 era mudar o comportamento do visitante no espaço. A música e a dança talvez fossem o que o cozinhar representa em suas ações. Ele nunca dirigia suas propostas, apenas deixava algumas instruções resumidas. Quando vivia em seu loft em Nova York, ele o transformou em uma de suas “propostas” (um grande Ninho). Ele morreu depois de ter conceitualizado uma nova idéia de lazer (Creleasure e Playground), mas antes de suas propostas serem compreendidas pelo público (não apenas o público de arte). Não sei se você já ouviu falar de seu Programa Experimental, mas minha pergunta é: como você consegue traçar essa distinção indistinta entre arte e não-arte e ainda ser considerado artista?
Rirkrit: Bem, acho que a condição na qual eu estava trabalhando cria o primeiro contexto do próprio trabalho. O trabalho em si sempre possui o contexto de arte; ele foi feito e exposto nesses espaços, embora o trabalho fosse criar uma resistência em relação í estrutura (galerias, museus, cubos brancos). Mas acho que, em geral, venho trabalhando dentro do contexto da arte. Eu imagino que teria sido diferente criar os mesmos trabalhos na Tailândia, e, nessa relação, teria sido mais Oiticica.
Agora estou enfrentando essa condição, na qual não há contexto para a arte. Não gosto de traçar definições, isso é ocidental demais para mim, então o evito e me recuso a lhe dar um nome. Até certo ponto, hesito em me chamar de “artista”; procuro manter o termo de lado. Apesar disso, há perguntas que indagam se o que eu já fiz é arte ou não arte. Parece não haver muita dúvida em relação a saber se sou artista ou não. Eu diria, talvez, que sou considerado artista em função da atitude que conservo em minhas abordagens, tanto em relação ao trabalho quanto ao não-trabalho.
A quantas anda o projeto “The Land”, iniciado in 1998?
Rirkrit: Bom, a Terra é sua própria entidade. Eu e muitos amigos meus nos vemos apenas como zeladores ou jardineiros etc. Não existe expectativa ou antecipação; fazemos coisas í medida que elas surgem e desaparecem. É um laboratório quando há pessoas trabalhando nela/sobre ela, e torna-se paisagem quando não há ninguém nela. Existe interesse considerável por esse projeto, talvez devido í s personalidades que são as zeladoras (ou colaboradoras) do lugar, e talvez também em função de sua distância do centro (Nova York, Londres, Paris, Berlim), mas esse é também o espaço ou a distância necessários para a curiosidade.
É um sintoma da globalização que é igualado apenas pela noção de colonialismo, mas agora trata-se da informação, de quem tem acesso í informação e da dispersão dessa informação no fluxo cultural; é o efeito Google. Assim, conservamos a Terra no nível que é sustentável, sem muita manutenção ou input, embora esperemos um output máximo em termos do que ela é capaz de gerar como idéia ou modelo.
Construir lugares comuns (chamados “comunidades” nos anos 60 e 70) é especialmente importante em países como o Brasil, onde as disparidades sociais são gigantescas. Como você definiria a linha do tempo entre o processo de troca (de valores, leituras, memórias, percepções, sensibilidades…) e uma espécie de “assistência social”? Você não enxerga um risco em assumir uma tarefa que deveria ficar a cargo do Estado?
Rirkrit: Bem, acho que “The Land”, como mencionei a idéia do output máximo, certamente tem a ver com essa preocupação. Para nós, ela deve funcionar em todas as direções, desde o mundo urbanizado, globalizado e interconectado até as comunidades rurais, localizadas, orgânicas e fora da grade. Mas é fato que a informação é usada para a sustentabilidade e não para o consumo, que a conectividade sustenta identidades locais. E que o local pode ser tanto periferia quanto centro.
Você conserva uma espécie de “tensão” ou atrito entre arte e vida para marcar uma diferença (uma resistência) entre elas, ou você defende uma fusão completa?
Rirkrit: Tendo a conservar um fluxo, talvez mais no sentido de fusão. Mas um fluxo pode, no caos, mover-se em todas as direções ao mesmo tempo, e talvez na tensão tanto a resistência quanto a abertura. Não faço arte e não faço vida, apenas respiro.
Qual é a importância da Tailândia na construção de um projeto como o seu? Quando temos que enfrentar uma ausência crônica de instituições, como estar politicamente presente no cenário? O que fazer diante da ausência de coleções, quando os professores precisam falar de arte?
Rirkrit: Começar do zero. Todos os sistemas (e as instituições) já foram esgotados, e temos tudo isso como referência. Conhecemos os êxitos e os fracassos, conhecemos seus desejos e devemos saber como resistir í s idéias que não são úteis e roubar o que for utilizável. A falta de instituições pode ser útil, já que o vazio pode ser preenchido com idéias, que estavam ausentes nas “instituições”, talvez alternativas (o que também é uma instituição), mas pensando em paralelo. A arte e os artistas devem voltar í sua capacidade de sustentar idéias sem a necessidade da economia.
Você poderia diferenciar entre os termos “mundo” e “mundano”? Você não tem essa sensação quando vemos as imagens das performances de Yves Klein?
Rirkrit: É uma imagem, e uma imagem é tudo o que você menciona.
Quando vemos as imagens das performances de Yves Klein, hoje, temos a sensação de que elas foram destinadas a um grupo restrito de pessoas, era uma performance bastante elitista. Como você é afetado por sua platéia? As pessoas acreditam que são parte de um trabalho de arte? Ou você percebe uma distância entre o que está propondo e uma espécie de estranhamento vindo da platéia?
Rirkrit: Eu me esforço muito para não privilegiar as imagens posteriores, para não fazer documentação, nem ter consciência do efeito do trabalho, que toma muitos rumos. E para não usar a imagem como representação do evento (convertendo-a no próprio trabalho). Prefiro abrir mão da imagem. Com relação í platéia e a quão amplo ou restrito pode ser o alcance de um trabalho desse tipo, venho tentando mudar a noção de duração ou de aproximação de duração. Mas acho que o que me interessa não é fixar o tempo; não é uma experiência que possa ser captada em uma única imagem ou um único instantâneo.
Quem sabe, mais do que uma relação com a fotografia, tenha a ver com o cinemático, e talvez o estranhamento se deva ao fato de que nem sempre podemos nos enxergar nele. Tem muito a ver com movimento e movimentações, com caminhos e rastros, mas nada é ou precisa ser fixado. Por outro lado, nunca posso realmente sentir minha platéia e não tenho esse privilégio; sou parte da platéia e me movo na mesma proximidade. Fica claro na performance de Yves Klein (ou na idéia de performance) que há aquele que faz a performance e a platéia, há a visão e aquele que a vê. Eu não gostaria de montar as coisas com essas idéias. Prefiro que a situação tenha escorregões e erupções.
“Utopia Station” foi apresentado neste ano em Porto Alegre. Qual é, a grosso modo, a idéia das “negociações perpétuas de culturas e linguagens”? Como isso funciona? Ainda está em progresso?
Rirkrit: Eu estive lá e, sim, ainda não está tanto em progresso quanto em processo. Ainda estou pensando sobre o que fazemos para sermos mais relevantes em negociações. Mas existe um abismo entre a imagem e a realização. Talvez não se trate tanto de negociação quanto de absorção -como o respirar, deve ser natural.
A modernidade é nossa Antigüidade?
Rirkrit: Certa vez um jornalista ocidental perguntou ao rei de Sião o que ele pensava das vitórias dos colonialismos ocidentais no mundo (a Tailândia, ou o Sião, como era conhecida na época, era um dos poucos Estados a não ter sido colonizado). Sua Majestade respondeu que, no Ocidente, os soldados marcham no mesmo ritmo, mas que na Tailândia, por exemplo, os soldados tailandeses encontram seu fluxo próprio e seguem em seu próprio ritmo. No ano seguinte, Sua Majestade contratou uma banda militar italiana para liderar o exército tailandês.
A ascensão do motor de combustão interna pode ser vista como condição paralela ao idealismo da modernidade. Se todos concordássemos com o fato de que o petróleo cru vai se esgotar em pouco tempo e com o recente aumento do valor desse produto natural, uma afirmação como a de que “a modernidade é nossa Antigüidade” poderia ser feita com clareza.
Mas a questão em pauta é “a modernidade é nossa Antigüidade?”. Talvez seja questão de um tempo e um lugar onde possamos encontrar ou identificar uma resposta a essa pergunta. Primeiramente porque a idéia de progresso requer tempo, com a velha idéia de que o tempo é sequencial; precisamos indagar no tempo de quem estamos. Em segundo lugar porque a idéia de lugar, local ou proximidade, onde o progresso aparece como não sincronizado, nos obriga a perguntar onde estamos. “Nossa”, nessa pergunta, parece implicar uma universalidade que é uma condição problemática da modernidade e sua premissa de universalidade.
Um “nossa” é diferente do “nossa” de outros, e acho que, nisso, podemos dissecar a relação entre tempo e lugar. A idéia de que o progresso -ou uma série de progressões- se tornou antiquado só é necessária se gostaríamos de proceder de maneira seqüencial na vida. Porém, a diferença de culturas pode solapar essa serialidade das condições diárias, e, assim, muitos podem se descobrir fora da modernidade.
A modernidade ou Antigüidade é um lugar e uma condição da sociedade que olha para ela mesma de dentro para fora; suas referências são internas, e por isso lhe falta a experiência fora de seu próprio local. O “nossa”, dentro dessa condição, se localiza claramente dentro de uma esfera ou um domínio, em que o tempo e o lugar são sequenciais e seriais. Portanto, dentro de tal condição, a resposta seria “sim”. Sim ao fato de que a modernidade hoje está localizada na Antigüidade, na nostalgia do “passado”.
O tempo da modernidade chegou e se foi, e sua localização pode ser situada numa distância, com algumas referências de perspectiva. Felizmente, há os outros “nossas”, que vivem ou residem fora de tal serialidade e seqüencialidade. A modernidade é incapaz de lidar com este outro “nossa”; a condição de tempo e local é deslocada dos conceitos de progressão.
Dessa maneira, a progressividade não pode ser distribuída de maneira linear, nem visível, como um bloco erguido sobre outro, mas é uma experiência, como um fluxo. Sua forma é espalhada, o tempo é feito de camadas e o lugar não tem limites; este outro “nossa” pode ser localizado através da experiência, ou das camadas de experiência. Aqui não precisamos formular perguntas sobre modernidade ou Antigüidade, nem localizar um no outro ou em cima do outro _é aqui e é isso.
Tradução de Clara Allain