A destruição da persona individual e coletiva

buddha

A consolidação do poder taliban no Afeganistão, em meados dos anos 90, foi marcada por um episódio digno de nota.

Todos certamente lembram da destruição, via explosivos, dos budas gigantes no Afeganistão. Em um vale belí­ssimo, uma meia dúzia de estátuas velhas de um milenar e meio foram reduzidas a pó em poucos segundos.

taliban1 Ka….

taliban2 …bummmmm!

Muito mais do que meras representações de ordem religiosa, tais estátuas eram o legí­timo legado simbólico dos homens que ali estiveram antes naquelas terras. E lembrança visual perpétua para os homens do “presente” de que outros ainda haverão de pisar o que consideram a sua terra.

A justificativa dos talebans (no mais das vezes estudantes de teologia de Cabul, com formação em universidades européias e que voltaram para instaurar a teocracia) foi clara: figuras humanas – quaisquer delas – são proscritas pelo dogma. Logo, devem ser destruí­das.

Protestos inflamados se multiplicaram ao redor do mundo (no Brasil, evidentemente, não houve muita conversa a respeito).

O episódio levanta algumas questões, aptas a serem discutidas nesta arena. Não são as únicas, poderia pensar em algumas outras, mas essas são as que me vem í  cabeça:

– O preço da vida eterna é a desumanização completa e radical? Podemos ser/ter deuses totalmente sem rosto e sem personificação? Religiões com deuses não-personificados são signicamente mais profundas ou “mais sérias” (seja lá o que for isso) do que as parcial ou totalmente antropomórficas?

– O que se esconde no ato de destruir compulsivamente imitações da figura humana? Se for uma neurose, pode este ato ser julgado ou valorado por aquele que não a vive?

– A perda da capacidade de nos auto-retratarmos simbolicamente – ainda mais quando essa perda é compulsoriamente implantada pela autocracia dos homens – não nos conduzirá í  animalização? Não precisamos, desde sempre, do espelho, da água da lagoa? Podemos destruir Narciso? Podemos romper a tensão de superfí­cie que separa o mero reflexo da morte por contemplação e nos auto-destruirmos? Quem contará o mito se o contista também cair em paixão e se afogar?

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– Pode o “relativismo cultural” e outras falácias da ordem do dia serem justificativa suficiente para que sejamos condescendentes com a destruição autoritária, deliberada e irreversí­vel de evidências sí­gnicas da passagem do homem no globo? Ao contrário, pode o homem se converter em policial de si mesmo alegando, contra o destruidor, “crime contra o patrimônio da humanidade” ou outra construção idiomática? É validamente concebí­vel a idéia de uma res publica civilizacional? Quem é o curador dessa mostra leviatãnica?

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– O clamor público no Ocidente (muitas vezes induzido), pelo estabelecimento de pontes de tolerância entre as civilizações recomenda que levemos mais em consideração o direito de “destruir em nome do dogma” do que o direito de “impedir a destruição em nome do dogma”. Quem fez esta escolha? Quem não impediu que esta escolha fosse feita? Quem permitiu que não fosse uma escolha?

– Está no preço da tolerância ocidental para com o Outro a permissividade absoluta para com a intolerância venal deste mesmo Outro? Na França podemos discutir se as crianças francesas muçulmanas usam ou não xadors em escolas públicas. Posso, em contrapartida, visitar a Kaaba e ver a Pedra Negra? Como ser cristão em metade da ífrica Central e sobreviver?

– A auto-determinação dos povos é absoluta?
Qual o marco delimitador deste princí­pio? Qual lógica existe entre invocá-lo para justificar e proteger regimes homicidas, ao longo da história recente e se emocionar com os limousine liberals *cantando”We are the world, we are the people”?

– A mesma lógica que impele a derrubada de fronteiras culturais, a derrubada de muros de cemitérios cristãos e israelitas não recomenda, por igual, a condenação – prévia, preventiva, permanente e retrospectiva – da destruição da herança simbólica homem-homem?

– Pode-se relevar o episódio sob a simples justificativa de que, simbolicamente, “construir uma estátua” é o mesmo que “destruir uma estátua”? Ou então as novas noções de civilização cooperativa (sem comunização ou abelhização, bem entendido) vedam que um dos participantes do jogo destrua autoritariamente uma das peças, impedindo que os outros que o sucederão não usufruam ou desfrutem do “item” ou “aparato”?

– Especificamente no que se refere ao debate histórico e geopolí­tico. A ocidentalidade não estaria se submetendo a um auto-policiamento (para dentro) e uma indulgência excessiva (para fora)? O genuí­no e admirável gesto de tolerância para com o Outro – mesmo que seja para dar un tapinha nas costas dos talebans – não consiste, muitas vezes, em auto-sacrifí­cio inútil e irreversí­vel?

– Interessante Paradoxo. (1) No Ocidente, em nome do estado laico, debate-se a retirada dos crucifixos de um tribunal ou de uma repartição pública. As cédulas do dólar trazem estampado “in god we trust” mas diretores de escola são multados quando pedem que as crianças rezem o pai nosso em sala de aula. (2) Em contrapartida, no Oriente islâmico, em nome do estado teocrático, impõe-se a destruição dos budas gigantes com dinamite e C-4. Pior do que isso, na China, em nome da divindade Inexistente, prendem-se cristãos e fuzilam-se padres. Quem é intolerante, cara-pálida?

– É válido imputar reprimendas morais para situações pretéritas que não a violavam? Que sentido há em punir os netos dos escravistas? Quem se auto-irroga o monopólio do revanchismo cultural? Quem distribui os papéis do vingador e do punido?

– Na mesma linha, é válido imputar reprimendas morais de um sistema de princí­pios morais para outro? (para esta conversa, sugiro a leitura da Teoria da Justiça de John Rawls e do princí­pio – por ele proposto – do overlapping consensus)

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*Limousine liberals are wealthy people, usually white, who usually live in wealthy white neighborhoods, but who insist on telling the poor, minorities and the working class how to live and with whom to live. Limousine liberals or their forebearers brought us the war on drugs (million man march to prison), urban renewal (people removal), public housing (resembling prisons), the Vietnam War (mass murder), and government schools – also resembling prisons – most of them wouldnââ?¬â?¢t think of sending their children to.

Limousine liberals are elitists who think that common folk are just too stupid to live in freedom. Though their rhetoric emphasizes their deep concern and compassion for the common man, their true feeling is one of contempt for his ability to function without continual external direction from “the best and the brightest.”

So they support centralizing power in distant capitals and glorify those like Lincoln who made it all possible. (See, Mario Cuomo�s new book.) With education, centralizing power in state capitals was not enough. They had to set up a Department of Education in Washington, so the ultra-elites can issue orders to the mid-level elites. (Lew Rockwell)

13 comments

  1. eu me lembrei dos budas e dos talibans quando li hoje uma notÃ?­cia de que o maior – e Ã?ºnico – estÃ?ºdio de cinema da SomÃ?¡lia foi saqueado e destruÃ?­do pelas cortes islÃ?¢micas daquela paÃ?­s, com apoio das milÃ?­cias amrmadas que controlam o poder secular do lugar (os chamados “senhores da guerra”)…

  2. eu vou votar sim no desarmamento. podem atirar. o mart�­rio n�£o tem religi�£o. talvez burrice. talvez mais raiva do que medo.

  3. se isso vai dar certo ou n�£o vale lembrar de que est�¡ nas m�£os de quem aperta o bot�£o da bomba.

    talvez s�³ um comment.

    talvez um tornado ou tsunami subtropical temperado nos salve da culpa.

  4. pensando bem. taz fechada a par�¡bola.

    deixa o bot�£o comigo.

    em nome da autonomia e responsabilidade civil o voto vai ser NULL.

    6-6-6- enter.

    e prossigo desarmado, sem abonar o com�©rcio de armas no paraguai e no morro.

  5. ali�¡s, gil-son, quais seriam as justificativas morais e est�©ticas para a dinamita�§�£o (ou ser�¡ o dinamitamento) da horrenda est�¡tua (?) da Vila da Gl�³ria?

    Porque no primeiro caso �©/pode ser crime e no segundo caso trata-se de mera profilaxia?

    Para quem n�£o lembra ou n�£o viu: http://organismo.art.br/blog/?p=677
    ou “oh, o horror” o horror!”

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