SURFACE TENSION – CIRCUITOS HETEROGÃ?Å NEOS – COISA PÚBLICA
– Cineton. Bruno Lechowski, Varsóvia, 1925.
A partir de meados dos anos 90 algumas novas estratégias de circuito artístico têm se efetivado no panorama brasileiro. Denominamos usualmente esse fenômeno como “coletivos de artistas”, “espaços alternativos” ou “arte de ativismo cultural”. Considero “circuitos heterogêneos” um termo mais apropriado, considerando essa heterogeneidade como a capacidade de afirmação coletiva de certos pensamentos, estratégias, poéticas e identidades que fogem aos critérios e valores da ordem predominante. Isso concretiza-se no sistema das artes como um compartilhamento e circulação de novas e diferentes produções, idéias, artistas e produtos. Denominações como “Circuitos autogeridos” ou “autodependentes” ou ainda “redes de trocas culturais” funcionam também como sinônimos dessa definição, incorporando reflexões pertinentes. Dentro desse ambiente da produção contemporânea – os “circuitos heterogêneos” – iniciativas como o Arquivo Bruscky (Recife), Torreão (Porto Alegre), Agora (Rio de janeiro), Capacete (Rio de Janeiro) e Galeria do Poste (Niterói) surgem como precursoras, e desde então muitas outras vem se afirmando. As revistas de arte editadas por artistas constituem-se também numa ação análoga, agregando diferentes discursos e práticas estéticas. Hoje está evidenciado que esse fenômeno é algo que ecoa mundialmente, reabrindo espaços para o exercício de uma arte experimental crítica, envolvida com o entorno social, capaz de propor novos pensamentos sobre o mundo contemporâneo.
O que de mais importante pode se afirmar através desses circuitos artísticos é a potencialidade da reiterpretação dos códigos culturais e a dimensão simbólica da arte na afirmação de novas perspectivas de entendimento sobre o mundo. Através da reinvenção da linguagem artística é possível inserir alguma intervenção real nas práticas sociais cotidianas, é possível reavaliar e até alterar alguns rumos culturais, na microestrutura social de uma cidade, por exemplo. Isso, entretanto, não é algo menor, ao contrário: a ação política é sempre situacional (Alain Badiou), ou seja, leva em consideração seu próprio tempo e espaço. “Pensar global e agir localmente”. Isso reflete uma dimensão política da arte, pois analisa-se a arte em sua dimensão cultural/política e não mais em sua perspectiva exclusivamente artística/estética (Cildo Meireles/ Inserções em Circuitos Ideológicos). Assim, uma arte e um conhecimento sem fronteiras encontra sua razão de existência quando dialoga com seu próprio tempo e espaço, e pode transversalizar sua autoreferencialidade (Felix Guattari, Pierre Bourdieu, Hans Haacke), pode manifestar também suas relações de singularidade.
– Casina. Proposta de Carla Vendrami, Milão, 1992.
Certamente o atrito entre arte X cultura, estética X política, forma X conteúdo, etc, é algo que tensiona a produção artística desde há muito tempo, e só para relembrarmos novamente algumas investidas nesse sentido, basta pensarmos em diferentes aspectos dessa questão inerentes í produção dos dadaístas (notadamente os de Berlim), da Bauhaus, dos Construtivistas russos, do grupo Fluxus, de Joseph Beuys, Hans Haacke, André Buren, Cildo Meireles, pontuando aqui algumas experiências temporalmente mais próximas e cujas poéticas já são patrimônio da humanidade. Existem outros referencias, alguns mais distanciados na história, como Goya, ou ainda pouco conhecidos, como Bruno Lechowski e sua tenda nômade para exposições, o Cineton, com a qual o artista percorreu diversas cidades da Europa e Brasil já nos anos 20. Em Curitiba, essa ancestralidade pode ainda ser lembrada na própria passagem de Lechowski pela cidade em 1925, na radical revista de arte Joaquim, dos anos 40, nos Encontros de Arte Moderna e Art Show, nos anos 70, nos grupos Sensibilizar e Motocontínuo, nos anos 80.
– 31 de março de 64. Sensibilizar, Curitiba, 1984.
Uma afirmação possível é a de que, quando na década de 80 o mundo viveu a derrocada de diversas perspectivas socialistas, simultaneamente a uma onda neoliberal de proporções mundiais, também no meio artístico isso repercutiu, com a desvaloração da arte mais experimental e crítica deflagrada nos anos 60 e 70, e com a retomada de uma arte da linguagem descomprometida com seu entorno social; da “volta í pintura” í s poéticas formalistas. Obviamente o experimentalismo mais radical e crítico nunca deixou de ocorrer, entretanto tentou-se, de certo modo, abafá-lo enquanto perspectiva contemporânea.
– Cartazes de rua. Moto Contínuo, Curitiba, 1983.
O desafio no presente é identificarmos quais as atuais bases de ação para a nossa arte. Há diferenças com o que já foi feito, nosso tempo propõe outras necessidades, somos fruto de outra(s) sociedade(s). No Brasil e na América Latina, por exemplo, muito da arte de cunho político realizada nos anos 60 e 70 originava-se numa dinâmica de resistência cultural e embate com a ditadura. Hoje não há uma ditadura instituída, e os mecanismos de opressão encontram-se muito mais dissimulados no dia-a-dia. A questão não é também focarmos unicamente no “novo pelo novo” como sendo esse o próprio objetivo – seja isso mídia, linguagem, ou estratégia – mas sim, como reinterpretamos nossa sociedade pela arte e através dela contribuirmos para uma vida mais consciente, libertária, justa e criativa. Não é só a “linguagem” que está em jogo, é a própria humanidade.
– Ã?â?nibus. Paranáparapostepara. Proposta de Margit Leisner, Niterói-Curitiba-Nitrói, 2002.
Há um paralelo importante entre a “lógica e a prática” dos atuais “circuitos artísticos heterogêneos” com o pensamento de Alain Badiou. Uma sincronia entre arte e filosofia. Badiou considera que uma ação política possível na contemporaneidade não deve contentar-se no embate direto com as lógicas do “mercado global” e do “Estado”, as quais propagam, por natureza, uma relação de homogeneização social. Não devemos nos contentar com isso porque, dentro dessa dinâmica, estaríamos incorporando os próprios parâmetros de espaço/tempo propostos tanto pelo “Estado” quanto pelo “mercado”. Antes disso, é a proposição da heterogeneidade das coletividades dentro do fluxo social o movimento que melhor abre perspectivas de afirmação de diferentes espaços/tempos, outras formas de ver, pensar e sentir o mundo. Isso é, já na origem, o que de mais radical pode haver contra a lógica homogeneizante. Essa perspectiva é a “política heterogênea”. Há um paralelo possível com o sistema das artes e seus diferentes circuitos. Não entrar na lógica, tempo, espaço e relações de poder estabelecidos pelas instituições culturais, galerias e mercado de arte, com todos os seus vícios de relação (e no Brasil esses vícios são ainda mais acentuados, visto a precariedade social em que vivemos). Entretanto, podemos pensar a possibilidade de afirmação de novas dinâmicas e parâmetros, tempos e espaços próprios. Há aí uma liberdade, e um posicionamento político. Isso fundamenta o conceito de “circuitos heterogêneos”. Os artistas não precisam ser autorizados por nenhuma instituição, nem mediados por nenhum outro agente cultural, para efetivar seu diálogo com o “outro”. O artista, dentro da potencialidade conceitual de seu trabalho, reinventa o próprio sistema das artes, não está submisso a ele, é ele quem afirma a arte na sociedade. Quando uma parceria institucional se apresenta como viável, isso pode ocorrer como um diálogo, troca, reconceituação; não como uma conformidade.
– Desfile de carros alegóricos em miniatura do Carnaval da Escola de Samba Unidos do Botão. Curitiba.
Além dos espaços e programações gerenciados por artistas há também as propostas que se constroem diretamente na participação criativa, proporcionando microinserções de dinâmicas artísticas no cotidiano das cidades. São também “circuitos heterogêneos”. Muitos trabalhos artísticos contemporâneos podem ser compreendidos por esse viés, a exemplo das propostas da dupla Maurício Dias e Walter Riedweg (Brasil/Suíça), Eduardo Aquino e Karen Shanski (spmb – Brasil/Canadá), Ricardo Basbaum (Rio de Janeiro), Giordani Maia (Rio de Janeiro), Rubens Mano (São Paulo), o grupo A Revolução Não Será Televisionada (São Paulo), entre outros. Pensando ainda numa experiência “brasileira”, também nessa perspectiva há antecedentes nas poéticas de Caminhando de Lygia Clark, nos Parangolés de Hélio Oiticica, e no projeto Inserções em Circuitos Ideológicos de Cildo Meireles, Trouxas Ensangüentadas, de Artur Barrio, entre outros. Localmente alguns artistas também desenvolvem mais sistematicamente propostas focadas numa dinâmica de circuitos, participação e diálogo social, como nos trabalhos de Carla Vendrami, Laura Miranda e Denise Bandeira, Tania Bloomfield, Ana González, Hélio Leites, Octávio Camargo, Rubens Pillegi (Londrina), Cristiane Bouger, Ari Almeida, Cimples, Margit Leisner, Cleverson Salvaro. Há também as dinâmicas propostas por coletivos de jovens artistas, como o InterluxArteLivre (Paradox, Muzca, Dimaxx, Olho, Marc Bullet) e o Organismo (Guilherme Soares, Lucio Araújo, Nillow e Octávio Camargo), além dos fluxos gerados nos espaços autogeridos por artistas, como o Museu do Poste, ACT/Ciclo Multiárea, Espaço Umbigo, A Grande Garagem que Grava e Companhia do Abração, entre outros. Obviamente meu interesse e prática individuais também convergem para esse manancial poético/político dos “circuitos heterogêneos”, e venho propondo algumas ações construídas na participação criativa (como as propostas Contatos e Remix Corpobras, por exemplo) ou em ações de inserção crítica (como os projetos Ocupação e Arte para Salão, entre outros). Há ainda uma outra vertente de ação, a qual denomino EPA! (Expansão Pública do Artista), minha expansão pública, no caso. Com a EPA! proponho ações de pesquisa teórica, organizo eventos, curadorias e publicações, focando sempre numa produção cultural coletiva e agenciando outros artistas e instituições como participantes e/ou parceiros. O repertório de interesse teórico da EPA! está centrado nas produções de arte crítica, as quais muitas vezes fogem do foco de interesse prioritário das Instituições culturais tradicionais e do mercado de arte. A EPA! busca assim contribuir para a multiplicação do pensamento crítico e incentivar a prática de circuitos artísticos autogeridos.
– Ocupação, Goto, Curitiba, 1999.
Há algo ainda que considero pertinente resgatar para nosso diálogo que se inicia, uma conceituação gerada pela dupla Eduardo Aquino e Karen Shanski, do grupo spmb. Eles vivem simultaneamente em duas cidades, São Paulo – SP (sp), Brasil, e Winnipeg – Manitoba (mb), no Canadá. Dentro da proposta da dupla há uma questão reincidente: a possibilidade de se interpretar o mundo a partir de um olhar “americano” gerado a partir de outras experiências de “América”, uma fusão de experiências americanas de origem latina, aglo-saxônica, afro, indígena, etc, etc. Uma alternativa de pensamento í tradição e predominância cultural difundidas por EUA e Europa. spmb alimenta-se também das idéias de uma geografia sem fronteiras enunciadas por Guillermo Gómez-Peí±a e da inversão dos rumos do pensamento proposto por Torres-García: “nosso norte é o sul”. Como prática, tentam “dobrar” o mapa das “Américas”, aproximando distintas experiências vivencias. No caso específico, buscam misturar Canadá e Brasil, gerando poesia e reflexão. E essa é uma possibilidade muito distante das guerras diplomáticas travadas na Organização Mundial de Comércio entre Brasil e Canadá por conta de suas respectivas indústrias aeronáuticas de ponta…
– Museu do Poste. Proposta de Octávio Camargo, Curitiba, 2002
Em nosso contato BRASIL/EUA, algo dessa tensão geográfica está por se iniciar, Califórnia/Paraná. Isso é uma perspectiva instigante. Gostaria que a fala resultante desse nosso diálogo – Surface Tension – pudesse se articular como fruto de nossa própria autogestão cultural, gerando nossos próprios espaços/tempos. Proponho a nós mesmos agora o desafio de deixarmos de lado inclusive eventuais parcerias com o sistema institucional tradicional – sejam museus ou galerias comercias. E alimento também o desejo de que nosso diálogo reverbere também como uma ação prática, uma ação direta no âmbito da cidade ou de seus fluxos culturais, aqui ou aí, ou em ambos os lugares. Uma ou mais ações fundadas em nossas distintas singularidades e em nossa troca cultural.
– Contatos. Proposta de Goto, Recife, 2002.
Em termos práticos, venho pensando numa ação de interesse coletivo e artístico, a qual tenho denominado de “coisa pública”, para a qual em breve (próxima semana) pretendo compartilhar um início de reflexão e participação.
Saudações,
Goto
Curitiba, 31/08/2005.