Apresentado no Curso de Pós – Graduação História da Arte Moderna e Contemporânea
Módulo: Teoria da Arte (Profê Mê José Justino)
por Sergio Moura, dez 2008.
Era pra ser uma exposição de arte com os ajustes corriqueiros que envolvem um espaço convencional e o artista expositor. Os lugares oficiais (museus, galerias, instituições etc), tradicionalmente estão habituados a receber objetos de arte formalista (pinturas, esculturas, gravuras etc) para ser contemplados. A arte aqui, e na maioria dos casos pode-se pensar assim, limita-se í retina e a atitude do observador é quase sempre passiva.
Mas não era o que o artista tinha planejado e escrito em seu projeto: (1)
“A arte do século XX tornou visível, entre tantas revelações, os espaços artísticos tradicionais do Museu e da Galeria não apenas como locais para se colocar pinturas e esculturas, mas definiu-os também como um lugar para o debate crítico, um ambiente de confluência para idéias conflitantes”. E prossegue: “Um dos mecanismos de atuação utilizados foi a apropriação de produtos com função definida em seu uso social e o deslocamento destes para o “ campo ” de exposições artísticas, acrescentando a eles colagens e outras interferências, reordenamentos disfuncionais, e um discurso invisível – fazendo com que os caminhos percorridos para o entendimento da obra seguissem rotas não só visuais. Duchamp foi o protagonista mais radical dessa nova postura frente a obra de arte. Uma das conseqüências conceituais resultantes deste novo posicionamento foi a percepção de que cabe ao homem dar valor de uso í matéria; o pensamento criativo pode dar novas funções í s coisas e então tudo o que existe no mundo pode ser objeto e instrumento de criação artística (recriação, refuncionalização, resignificação)”.
Sua intenção tinha origem no ideal por uma arte que pudesse “refletir questões além das específicas ao campo artístico”.
Diz o artista: (2)
“O social na arte e a arte como objeto social: é a partir desta dupla relação (dialética) que esta proposta manifesta seu intuito construtivo. Dentro dessa abordagem a estruturação da obra se dá através de uma análise da relação entre arte e mídia”.
De natureza conceitual, onde o que mais conta é a veiculação da idéia, a obra propunha inúmeras questões para serem pensadas, cobrando do público uma atitude cerebral. O que essa arte tinha a ver com reivindicações política sociais, movimento organizado, problemas, exercício do pensamento e reflexão, exigindo em contrapartida a ação do observador que, na maioria das vezes, sabe apenas contemplar? Que questões eram essas?
O artista antecipa ainda que “a obra é elaborada, a princípio, em dois sentidos processuais”:
– Apropriação da imagem símbolo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, reproduzindo-se a imagem e levando-a para dentro da galeria, concretizando, pela modalidade da instalação, a ocupação do espaço físico arquitetônico do espaço expositivo.
– A imagem do símbolo destinado a galeria é reproduzida e tornada mídia divulgando e registrando o evento. A ocupação se apropria do espaço público de circulação de informações.
Ousadia e radicalidade são atributos favoráveis ao artista que sabe da importância de construir e preservar sua integridade. Mas, pra tomar esse partido, precisa de coragem, desprendimento e liberdade assumida.
Ao pretender discutir em seu trabalho as questões do MST, movimento organizado de forte engajamento político social e que ostenta um retrospecto assumido de ocupação e cidadania em favor da luta pela terra, da conquista de moradia, da autonomia do trabalho pelo cultivo da própria terra, o artista não poderia evitar a abordagem contundente e daí o inevitável conflito com a galeria. E Goto promove a ação ética, atitude que é fundamental e indispensável para a sobrevivência da democracia.
No ofício de artista pensador tenta alterar velhas regras do jogo, mas, o que não sabia era que seria censurado e proibido de mostrar, aquilo que os dominantes não tem vontade de desvelar.
Repensando a verdadeira função da arte quando esta é próxima da ação política, reafirma valores essenciais e exalta a liberdade como premissa inteligente a todas as demais formas de ser, sentir, pensar, agir, atestando, sobretudo seu compromisso com sua verdade e elevando a Arte í sua dimensão monumental.
A arte dita contemporânea, para honrar seu título pomposo, deve antes de tudo lidar com a realidade, e, portanto, em primeiro lugar estar mais relacionada com a vida e com a liberdade. Como enfatiza Gregory Battcock: (3)
“A arte ignora a crise e se frauda na busca de irrelevantes estéticas, enquanto o sistema político destrói a vida humana. Esse mesmo sistema político representa interesses de grupos ao invés de servir í s necessidades do povo e, portanto, tornou-se uma mentira para a verdadeira democracia. A arte tornou-se um jogo sem sentido para exclusivo benefício dos que estejam engajados na supressão da vida humana e de seus valores, o brinquedo da cultura branca que, neste país, destrói a cultura dos negros e dos índios, a elite que lhes impõe a cultura estrangeira e irrelevante.
A arte é usada para distrair as pessoas da urgência de suas crises. E se você, como artista, aceita a repressão da sociedade e trabalha com o sistema, você pode retardar as transformações. Enquanto o artista lisonjear a elite, ela estará apta a controlar a arte e não permitirá a sua livre expressão. É preciso que seja relevante e antitrivial. É preciso que agite a mente dos que a admiram a fim de que se compenetrem da essência da crise; É preciso que dirija e envolva seus admiradores para a ação; É preciso que questione; É preciso que provoque.”
O próprio artista reafirma: “Minha intenção é burlar as especificidades de cada área”. Colagem, reprodução serial, e ainda, visão crítica da sociedade, posicionamento político, provocação í s elites dominantes, crítica a hegemonia de mercado, ausência de conscientização sóciopolítica da categoria, e por aí vai.
E Susan Sontag nos faz lembrar: (4)
“O que importa agora é recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais”.
Entretanto, uma grande dúvida que fica: porque expor um trabalho de natureza questionadora, crítica e filosófica, explosiva até, dentro de uma galeria que tem total comprometimento com o status quo, que é associada ao mercado e vinculada ao poder econômico, que estimula a competitividade e que como qualquer empresa necessita de lucro para sua manutenção e existência? Onde a ética está submetida por uma estética de aparências e superficialidades camufladas por pseudo-culturalidade? O que tem a ver uma proposta de arte que resolve negar um sistema que, nas palavras de Lebel (5) “produz mais abortos do que partos”, impede a real democracia e a transformação da vida, e ao mesmo tempo procurar nele o suporte de viabilização para a fruição da sensibilidade estética (?).
Aqui a sacada reveladora que atingiu o alvo: A proposta que o artista Newton Goto queria levar para dentro da galeria, continha enorme carga ideológica decorrente de extraordinário poder simbólico a serviço da emancipação, representando por isso séria ameaça com repercussões importantes na vida cotidiana. Daí o medo e a conseqüente autocensura que geralmente encobre a censura disfarçada e não assumida.
“É sempre mais fácil a autocensura, pois esta não deixa pistas desagradáveis”. (6)
O caminho, de fato então, era totalmente oposto, todavia coerente, justo e, sobretudo, verdadeiro. Nos varais montados pelo artista, no mesmo chão do MST, podemos conferir algumas questões inquietantes e pontuais como:
“Por que um artista pode se apropriar de uma imagem de refrigerante e não pode fazer o mesmo com o símbolo de um movimento popular?”;
“Por que o senso crítico sobre a sociedade só parece ser válido para a produção artística de outros países?”;
“Por que a censura e a repressão continuam existindo numa sociedade teoricamente sem ditadura e supostamente democrática?”;
“Por que as pessoas haveriam de ter medo de um movimento popular organizado?”;
“Por que o que está próximo nos parece tão proibido e perigoso?”;
“Toda arte é um ato político”;
“E não seria função da arte criar novos pensamentos, gerar debates críticos, propor novas relações da obra com o público?”.
Rechaçado pela impostura da galeria e pressionado, o artista, solidário í causa dos sem-terra, monta seu barraco no mesmo lugar onde estava o MST, confirmando o ideário projetado e consolidando seu verdadeiro lugar: a obra estava “em casa”. Aí sim, o debate se amplia sem restrições e a proposta encontra seu ponto notável. No cruzamento do contexto arte-política, a rua é o ponto central onde essa discussão deveria confluir, motivada pela presença – envolvimento de seus personagens principais: o cidadão comum e o artista mediador.
Preocupações sociais, sonho da casa própria, liberdade, justiça, saúde, espaço social, necessidades básicas, reforma agrária, enfim cidadania, são questões vitais para o homem comum que se somam í s expectativas que desafiam todo artista contemporâneo.
Arte na rua, interferência na cidade, liberdade criativa, provocação estética, autonomia da obra de arte (7), cultura de massa, panfletagem ideológica, inquietações que caracterizam tempos passados onde os cidadãos eram bem mais conscientes e informados, tudo isso pode banhar-se nas mesmas águas, pois apontam para o mesmo alvo – o sonho que todo ser sensível e todo artista devem cultivar – imaginando possibilidades e meios de construção de melhoria da vida em sua comunidade bem como ao mundo global.
“A pergunta pela função da terra traz subjacente a pergunta pela função da arte. E a arte se abre como um sistema de possibilidades” . (8)
“A função da arte, como questão, foi proposta pela primeira vez por Marcel Duchamp. Realmente é a Duchamp que podemos creditar o fato de ter dado í arte a sua identidade própria. Com o ready-made não-assistido, a arte mudou seu foco da forma da linguagem para o que estava sendo dito. E toda arte (depois de Duchamp) é conceitual (por natureza), porque a arte só existe conceitualmente”.(9)
A obra Ocupação reúne um conjunto de instalações que se prolongou por diversos lugares, depois que o artista teve vetado sua exposição no local anteriormente previsto. Ao acampar na Praça Nê Srê de Salette, em maio de 1999 onde ficou durante três (3) semanas, no Centro Cívico e em frente a sede do poder público, o artista obtém relativo apoio da população mas conquista relevo maior quando, pela conjunção de ideais próximos – liberdade, igualdade e solidariedade – em comunhão ideológica com o radical movimento social, restabelece o diálogo há muito perdido da estética com a ética social e isso possibilita inclusive ir mais além, transpondo fronteira para alcançar outro lugar. No Rio de Janeiro, em junho do mesmo ano, o mesmo trabalho se fez ver no chão da Funarte. No ano seguinte, em 2000, recebeu sinal verde da Prof. Mê José Justino e de volta a Curitiba, marcou presença na Sala Arte & Design da Reitoria da UFPR.
Na série de instalações o signo reconfigurado, tornado objeto artístico em diversas abordagens que lembram os ready-mades refuncionalizados. Nelas, o artista se valeu dos panfletos reproduzidos com a emblemática logo e tanto na apropriação como na repetição ou no estratégico deslocamento da imagem circulante, não se pode deixar de reconhecer a herança proporcionada por alguns gigantes da arte pop mundial: M. Duchamp, A. Warhol, J. Kosuth, o brasileiro Cildo Meireles, além do teórico Walter Benjamin e da extraordinária e histórica vanguarda DADí.
Estes são alguns dos expoentes referenciais que emprestam significativas contribuições e dá profundidade í s muitas reflexões, acompanhadas de surpreendente avaliação que o artista faz tanto do mundo da arte quanto da produção artística.
“Por sua vez, a estética do desequilíbrio, a que afeta estruturas, que precisa de total participação ou total rejeição, não dá espaço para o conforto da alienação. Ela leva ao confronto que trará mudança. Ela leva í integração da criatividade estética com todos os sistemas de referências usados na vida cotidiana. Ela leva o indivíduo a ser um criador permanente, a ficar em um estado de percepção constante. Ela o leva a determinar o seu ambiente de acordo com as suas necessidades e a lutar para alcançar as mudanças”. (10)
REFERÃ?Å NCIAS BIBLIOGRíFICAS
1 GOTO, Newton;Texto – projeto: Ocupação, 1999
2 Idem;
3 BATTCOCK, Gregory; A Nova Arte, Col. Debates 73, Ed. Perspectiva;
4 SONTAG, Susan; Contra a interpretação, Porto Alegre, 1987;
5 LEBEL, J. J; Happening, Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1969;
6 BOURDIEU, Pierre e HAACKE, Hans; Livre -Troca, Diálogos entre Ciência e Arte Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995;
7 “Talvez a característica mais distintiva das atitudes estéticas práticas, hoje em dia, tenha sido a concentração da atenção na obra de arte como coisa independente, artefato de padrões e funções próprias, e não instrumento fabricado no intuito de favorecer propósitos que poderiam ser igualmente favorecidos por outros meios”.
OSBORNE, Harold; Estética e Teoria da Arte: uma introdução histórica; Editora Cultrix, São Paulo, 1974;
8 JUSTINO, Mê José; Texto: A Pele Social da Arte – O que a arte tem a ver com o MST, 2000;
9 KOSUTH, J.; A arte depois da filosofia, Escritos de Artistas (Glória Ferreira e Cecília Cotrim) anos 60/70 Jorge ZAHAR Editor, Rio de Janeiro, 2006;
10 CAMNITZER, L.; Arte contemporânea colonial, Escritos de Artistas ( Glória Ferreira e Cecília Cotrim) anos 60/70 Jorge ZAHAR Editor, Rio de Janeiro, 2006.